Em qualquer dia num possível futuro escrita por Nemui


Capítulo 1
Capítulo 1




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            “Senhorita Korina Galanis?”

            “Sim. Em que posso ajudá-lo?”

            “Bom dia. O meu nome é Sísifo de Sagitário. Fui enviado pelo Santuário de Athena para ser seu guarda-costas.”

            Ainda com uma fornada quente de pães nas mãos, a jovem fitou o homem na sua frente, sem entender nada de nada daquela situação. Athena? Guarda-costas? O que fazia aquele cara na sua padaria, dizendo aquelas palavras? De onde ele a conhecia? Seria um ex-cliente? Mas jurava nunca tê-lo visto em vida! Confusa, olhou em volta, com a esperança de encontrar a resposta em sua mãe, logo atrás. Contudo, esta se mostrava igualmente confusa.

            “Desculpe. Deve ter tido um engano.”

            “A senhorita é Korina Galanis, certo? Filha de Jocaste e Silas Galanis, não é?”

            “Sim. Sou eu.”

            “Então não há um engano. Eu vim aqui para cumprir a missão de protegê-la, a pedido de seu pai.”

            “Meu pai morreu há mais de dez anos!”

            “Sim. Foi um pedido feito antes de seu falecimento.”

            “Por quê?!”

            “Não fui informado do motivo.”

            “Como é?!”

            Havia algo de muito errado naquela história. Korina inspecionou o suposto guarda-costas, com roupas de viagem, gastas, mas com certeza caras, indicando não ser um sujeito de qualquer lugar. Apresentava bons modos, boa linguagem, aparentava ser estudado; o tipo de indivíduo que não se misturava muito com pessoas comuns de um vilarejo qualquer, ainda mais com a filha de um padeiro sem graça.

            “Infelizmente não tenho mais informações. Sei apenas que o Santuário de Athena fez uma promessa para o seu pai e que cabe a mim cumprir o pedido de protegê-la nas últimas semanas antes de seu aniversário de dezoito anos. Então aqui estou.”

            E ela continuava sem entender nada. Sua mãe enxugou as mãos no avental e aproximou-se do estranho.

            “Conhece o meu marido?”

            “Não, senhora. Não tenho nenhuma relação com ele. Apenas recebi a ordem de proteger sua filha nas próximas semanas. Não se preocupe, não pretendo atrapalhar o andamento do seu trabalho. Permanecerei por perto para proteger a sua filha e garantir que nenhum mal recaia sobre ela até a data de seu aniversário. Essa foi a ordem que recebi.”

            “Senhor… Sísifo, é isso?”

            “Sim.”

            “Pode me dizer então qual é o relacionamento entre o meu marido e esse tal… Santuário de Athena?”

            “Também não sei muito a respeito. A informação que eu tenho é que meu irmão, o falecido Ilias de Leão, prometeu, em nome do Santuário, proteger a senhorita Korina nesse período. Vim no lugar dele, embora não saiba qual seja o motivo para protegê-la. Tinha esperança, na verdade, de descobrir a razão quando a encontrasse… embora isso seja desnecessário. O mais importante é que eu cumpra a promessa. Há algum perigo que a ronda ultimamente?”

            Confusa, Korina apontou para o forno:

            “A coisa mais perigosa perto de mim é aquele forno, e eu o controlo muito bem… E talvez os ladrões de estrada, o que vale para todos aqui. Ainda acho que houve um engano.”

            “Por que acha que estou enganado?”

            “Por quê? Não é óbvio? Você está numa padaria.”

            “Sim, eu sei onde estou.”

            “Então! Não deveria estar oferecendo proteção nas portas de algum senhor de terras por aí? Na casa de um nobre? Se ficar por aqui, vai morrer de tédio!”

            “Minha missão é especificamente proteger a senhorita Korina Galanis, e ninguém mais. Isso não tem a ver com dinheiro ou posição social, apenas com a promessa que o Santuário assumiu e que cabe a mim cumprir. Rezo para que sejam semanas, como a senhorita disse, entediantes.”

            “Mas… O que quer em troca disso? Vai ficar aqui por tanto tempo a troco de nada?”

            “É uma promessa que devo cumprir. Não quero nada em troca. Apenas ficarei por perto e oferecerei minha proteção à senhorita.”

            “Proteção… contra o quê?”

            “Contra qualquer coisa que ameace a sua segurança.”

            “De graça?”

            “Sim.”

            Estupefata, ela só conseguia pensar em um possível golpe. Aquele cara não era segurança coisa alguma! Devia ser algum estelionatário, algum bandido querendo tirar vantagem sobre os pobres…

            “Tem algo nisso! Tem algo de muito errado! Eu não quero sua proteção coisa alguma! Estou muito bem por aqui.”

            “Isso é um problema, porque eu preciso cumprir essa promessa. Garanto que não desejo nenhum mal, falo apenas a verdade e juro que tudo o que quero é protegê-la. Não pretendo incomodá-la.”

            “Em algum momento me obrigará a fazer algo! Assinar um documento ou qualquer coisa do tipo para roubar a padaria.”

            “Eu jamais faria algo assim. Tudo o que preciso é de sua permissão para ficar por perto. Eu sou o que chamam de um cavaleiro de Athena. Sigo um código de honra e jamais trairia ou mentiria.”

            “Nunca ouvi falar sobre cavaleiros de Athena. Não espera que eu acredite nessa história, não é?”

            “Não precisa acreditar, senhorita. Não precisa fazer nada além de permitir a minha presença.”

            “É estranho!”

            “Bem… Ele sabe sobre o seu pai”, interveio a mãe. “Por que não damos um voto de confiança?”

            “Mãe, não vê que ele é muito suspeito?”

            “Suspeito é… Mas o que ele tiraria de nós? Não é como se tivéssemos muitas posses.”

            De fato, não havia. Tudo o que tinham era a rústica padaria, com seu forno de lenha, os animais e alguns clientes. Quase todo o dinheiro, bastante escasso, era usado para comprar tecidos, ingredientes e outras necessidades. Por que um homem como aquele desejaria um pedaço de terra tão miserável quanto aquele, num lugar tão pouco valorizado? Korina precisava admitir que não faltavam alvos melhores para um vigarista.

            “Não quero tirar nada de ninguém, garanto”, insistiu Sísifo. “Apenas ficarei por perto, sim? Se acontecer algo ou precisarem de minha ajuda, basta pedirem, pois vim aqui para protegê-la.”

            Durante os segundos de silêncio disponíveis, Korina tentou pensar em todos os esquemas sórdidos que aquele estranho poderia pôr em prática, mas foi interrompida pela insistência do homem:

            “E então? Posso ficar por perto?”

            “Faça como quiser, só não atrapalhe”, respondeu a garota, secamente.

            “Obrigado. Estarei do lado de fora caso precise de algo.”

            Com um educado cumprimento, Sísifo saiu da padaria e sentou-se sobre um muro do lado de fora, ao lado de uma caixa dourada que carregava nas costas. Tal com um guarda, permaneceu quieto naquele canto sem soltar nenhum ruído, quase como se não existisse. Como prometera, não atrapalhou os negócios e ficou o tempo todo observando a movimentação dos clientes, pacientemente, por horas.

—_____________________________

            Era noite. Depois de guardar os restos de pães, Korina deu uma espiada no lado de fora. Lá estava Sísifo, na mesma posição sobre o muro, aguardando o fechamento do estabelecimento. Voltou-se pra dentro, irritada.

            “Aquele cara ainda está lá.”

            “Ele disse que ficaria até seu aniversário, não é?”, respondeu sua mãe. “Não irá embora tão cedo.”

            “E ele ficará a noite inteira sentado naquele muro?”

            “Por que não o convida para entrar? Não podemos deixá-lo assim, não é?”

            “Essa não é a brecha que ele procura pra ganhar a nossa confiança e depois nos enganarmos? Muitos pilantras por aí podem querer tirar vantagem de nós.”

            “De que jeito? Afinal, a terra e a casa são nossas. Ele não conseguiria nada, mesmo se nos matasse. Você pode ir lá e avisar que servirei o jantar?”

            “Isso é sério? Vai mesmo aceitá-lo aqui?”

            “É o mínimo que podemos oferecer depois de ele ficar o dia inteiro guardando a padaria, não é?”

            “Mas não é como se algo fosse acontecer!”

            “Korina… Seu pai pode não ter sido um homem rico… Mas ele viveu, viajou muito e conheceu muitas pessoas. Pode ser que ele não esteja mentindo. Não pensou nessa possibilidade?”

            A garota voltou a espiar o lado de fora. Sísifo observava as últimas pessoas entrando em suas casas, em silêncio. Durante o dia inteiro, não fizera nada de errado. Pelo menos um lanche merecia, certo?

            “Está bem… Vou conversar com ele.”

            “Diga para entrar. Vou reservar o quarto de visitas para ele.”

            “Tem certeza?”

            “Tenho. Vá, querida. Nem todas as pessoas são ruins, sabia?”

            “Isso não significa que ele não seja!”

            “Deixe essa conclusão para depois, está bem? Vá.”

            Sua mãe podia ser bem teimosa quando o assunto era confiar nos outros. Por isso, Korina aprendera a não ser como ela, pois precisava ficar esperta quanto a possíveis vigaristas. Ao mesmo tempo, admitia que Sísifo, até aquele momento, nada fizera de errado. Saiu da padaria e aproximou-se dele. Não sabia como começar uma conversa amigável, então optou pela ainda teimosa desconfiança:

            “Ainda não foi embora, não é?”

            “Eu mal cheguei”, respondeu Sísifo, sorrindo. “Ficarei até que faça dezoito anos, então estará livre de mim. Mas não se preocupe, pode fingir que não existo. Não irei incomodar.”

            “Quanto a isso… Você pode entrar.”

            “Na padaria?”

            “Sim… Temos restos de pães… e minha mãe vai preparar um quarto para você.”

            “É muita gentileza da parte dela. Sei que você não deve estar de acordo, então talvez seja melhor eu recusar.”

            “Não… Pode entrar.”

            “Posso? Mesmo?”

            Relutantemente, Korina assentiu. Sísifo levantou-se e recolheu a caixa metálica, que aparentava ser pesada, mas foi erguida sem o menor esforço. Sorrindo, entrou na casa e cumprimentou sua mãe, novamente.

            “Obrigado por me aceitar aqui.”

            “Não tem de quê. Aposto que está cansado. Sente-se. Estou esquentando a comida.”

            Sendo uma casa comandada por duas mulheres, Korina precisava ficar alerta duplamente perto de homens com más intenções. Mesmo os mais educados podiam esconder-se sob a pele de um cordeiro, fingindo ser boas pessoas. Por isso, ainda relutava quando aparecia um pretendente, embora já estivesse na idade de casar-se. Em parte, recusara todos até ali porque estava muito bem com sua padaria, junto de sua mãe. Muitos comentavam sobre sua falta de escolha enquanto pensava, secretamente, que seria bom conhecer a verdadeira índole das pessoas apenas olhando para elas.

            “Este pão é excelente”, elogiou Sísifo. “Nunca experimentei um igual. Essa casca tem crocância, mas não é dura e nem gordurosa em excesso. E este recheio é fantástico.”

            “É receita de família”, explicou Jocaste. “Faz o maior sucesso no vilarejo, mas não a ensino a ninguém. Os negócios foram sempre suficientes por causa dele.”

            “Não é por menos. Os pães que minhas servas assam são deliciosos, mas este é especial. Adorei.”

            “Suas… servas?”, repetiu Korina, incrédula. “Você tem servas?”

            “Sim… Dentro do Santuário de Athena, assumo muitas responsabilidades, como executar missões, treinar futuros cavaleiros de Athena e soldados, montar guarda e verificar a segurança da região... Se eu tivesse de assumir as tarefas domésticas, pouco tempo sobraria para os meus deveres. Por isso, tenho servas que me auxiliam bastante no cotidiano. Sem elas, eu não conseguiria desempenhar bem minhas funções.”

            “E vai gastar semanas aqui com a gente, sendo tão ocupado?”

            “É uma promessa que meu irmão assumiu, então é meu dever cumpri-la no lugar dele. Só gostaria de entender melhor por que ele a fez. Conhecendo-o, tenho certeza de que existe um motivo por trás. A senhora não tem mesmo nenhuma informação, senhora Jocaste? Ajudaria muito saber contra o que devo proteger sua filha.”

            A padeira negou com a cabeça, pensativa.

            “Silas era um homem intrigante. Antes de nos estabelecermos nesta vila, ele viajava fazendo trabalhos perigosos, e deve ser por isso que ele contou tão pouco para mim, porque não queria me preocupar. Quando Korina nasceu, nós não estávamos aqui. Nós viajávamos por muitas terras, fazendo trabalhos aleatórios, quando percebi que fiquei grávida. Precisamos interromper nosso modo de vida e foi a partir dessa receita que ele teve a ideia de construirmos uma padaria. Silas era um homem engraçado, empolgado… Foi um ótimo pai. É uma pena que tenha partido cedo.”

            “Se não se importa, poderia me dizer qual foi o motivo da morte dele?”

            “Tuberculose.”

            Sísifo não escondeu a surpresa:

            “Meu irmão também teve peste branca… É uma doença terrível.”

            “Mas ele nunca maldisse a vida. Sempre se mostrou alegre. O único arrependimento dele era não poder vê-la crescer. Dizia que queria ver Korina tornar-se uma mulher adulta.”

            “Ele não estaria decepcionado. Ela é esperta, não baixou a guarda pra mim em nenhum instante.”

            “Me desculpe por não poder confiar”, respondeu a garota, com aspereza. “Mas como eu posso confiar num sujeito oferecendo proteção de graça?”

            “A senhorita tem toda a razão. Perdão se isso pareceu uma crítica; foi um elogio. Desconfiar é sempre necessário quando se precisa sobreviver neste mundo, apesar de que poder confiar em alguém é sempre muito reconfortante também.”

            Por que Korina tinha a impressão de que aquele “elogio” viera acompanhado de outra crítica? Não, ela não baixaria a guarda para ele! Toda a situação ainda era muito estranha! Aquele tal de Sísifo sequer era conhecido de seu pai para se propor a protegê-la, então por que estava ali, oferecendo um serviço como aquele, sendo um homem com posição alta o suficiente para ter servas? Não, ela não conseguia aceitá-lo tão facilmente.

            “Homens como o meu pai são muito raros. A maioria não passa de babacas que não estão realmente interessados em mim, apenas na nossa terra. E eu não estou interessada em casamento por interesse.”

            “Entendo perfeitamente. A senhorita deve ter um padrão bem alto, considerando a descrição de seu pai.”

            “Eu só não quero acabar como algumas amigas minhas…”

            Afinal, uma delas aparecera com o rosto roxo outro dia, depois de acabar com um péssimo sujeito. Cada vez mais a ideia de seguir como estava parecia mais atraente, mesmo que terminasse sozinha. Acabou mergulhada nas lembranças incômodas de suas amigas com péssimos casamentos, e Sísifo deixou-a em paz ao voltar-se à sua mãe.

            “Mudando de assunto, senhora Jocaste, será que há objetos antigos do seu marido pela casa? Eu gostaria de investigá-los apenas para encontrar alguma pista do motivo de ter que proteger a senhorita Korina nessas semanas. Qualquer informação seria bem-vinda.”

            “Ah, claro… Tem um quarto cheio de tranqueiras das antigas viagens dele, nada de muito útil. Ele disse que eu poderia jogar fora, mas nunca tive coragem. Fique à vontade para verificar.”

            “Muito obrigado.”

            E, mais uma vez, sua mãe aparecia com aquele cego voto de confiança. Korina soltou um pesado suspiro, sem acreditar na sua inocência.

—___________________

            Após o jantar, ela seguiu-o até o quarto, com o mesmo olhar desconfiado. Como poderia permitir que um estranho vasculhasse as coisas de seu pai sem vigília? Sísifo não pareceu se importar com sua companhia; pelo contrário, conversava como se estarem juntos ali fosse algo natural.

            “A maior parte são roupas de viagem, bem gastas… E há muitas lembranças… Pedras, pequeninas esculturas, objetos variados…”

            Toda aquela tranqueira ficava em baús de madeira antigos, roídos pelo tempo, e cheia de poeira. Sísifo acabou com a garganta um pouco irritada ao mexer em cada um daqueles objetos, a maior parte com pouco valor. Inspecionava os bolsos das vestes, avaliava cada pequena lembrança, enquanto Korina se perguntava aonde ele queria chegar com aquela investigação.

            Sísifo deteve-se ao encontrar um brinquedo para bebês e mostrou-lhe, sorrindo.

            “Aposto que ele arranjou isto para a senhorita.”

            “Acho que sim. Ele vivia fazendo brinquedos de madeira para mim quando eu era pequena.”

            “Então ele esculpiu isso…? Quer dizer que há uma chance de ele ter feito essas pequenas figuras de madeira também?”

            “Provavelmente. Minha mãe disse que ele tanto esculpia quanto comprava de alguns artesãos.”

            “Interessante…”, respondeu ele, pensativo. “Diga… O quão forte ele era?”

            “Forte?”

            “Sim. Ele tinha força para carregar coisas muito pesadas? Mais forte do que outros homens?”

            “Ah… sim… lembro que ele era muito forte. Mas acho que tem mais a ver com minhas memórias de criança. Sempre achamos que os adultos são super fortes, certo?”

            “Pode ser…”, respondeu ele, distraído com os próprios pensamentos, sem realmente considerar sua opinião. Em seguida, reuniu as pequeninas esculturas, alinhando-as no chão.

            “Encontrou algo?”          

            Sísifo ignorou-a, continuando a observar as esculturas. Pensou por mais um tempo, guardou todas as pequenas figuras cuidadosamente no baú e seguiu vasculhando os pertences de seu pai, em silêncio. Por fim, encontrou, no fundo de um dos baús, um livro, ilegível até para a sua mãe, por ser escrito em uma língua antiga.

            Os olhos correram pelas linhas demoradamente. Korina, sentada perto dele, aguardava qualquer comentário. Sísifo estava conseguindo ler aquele negócio?

            “Hum… Será que eu posso emprestar este diário um pouco?”

            “É um diário? Eu nem sabia o que era!”

            “Sim, é um diário do seu pai.”

            “Você consegue ler?”

            “As letras estão um pouco apagadas, mas consigo ler a maior parte, sim. Eu gostaria de estudá-lo para ver se encontro alguma pista sobre por que devo protegê-la. Isso facilitaria o meu trabalho. Prometo que vou devolvê-lo em breve. Deve ser importante, não é?”

            “Bem… não sei qual é a importância, porque nunca consegui lê-lo…”

            “Que pena”, respondeu ele, sorrindo um pouco. “O que acha de eu ler para a senhorita? Está curiosa?”

            Curiosa com certeza estava. Mas quem garantia que aquele homem não inventaria qualquer coisa, sabendo que era o único capaz de ler aquele diário? Korina ficou em silêncio, ainda em dúvida, mas o cavaleiro interpretou a ausência de resposta como um consentimento e pôs-se a ler:

            “Korina é o presente que todo homem deveria ter ao descobrir o valor do amor. Ela tem os meus olhos, o nariz da mãe, a boca? Talvez da própria Afrodite. Estou enamorado com sua graça, com seu espírito, que também é meu, com sua pequenez e grandeza em poucos quilos e com o peso da responsabilidade de guiá-la na vida. Quero contar-lhe tantas histórias, fazê-la rir, ensinar-lhe a ser feliz e a lutar por seus próprios desejos. Enquanto cruzamos as perigosas estradas, sinto pela primeira vez medo: medo de não ser forte o bastante, de não ter tomado as escolhas certas, de não ser o pai que ela merece ter. Pela primeira vez na vida, penso em comprar uma terra.”

            Ele devia ser um grande improvisador para inventar palavras como aquelas em tão pouco tempo… ou estava, de fato, lendo o diário. Impressionada, Korina tirou o tomo de suas mãos.

            “Como leu isso? Eu quero ler também.”

            “Ele usou uma escrita antiga… Seu pai era bem estudado. E essas estatuetas…”

            “O que elas querem dizer? Descobriu algo?”

            “Sim… Ainda é cedo para afirmar algo, mas acho que descobri uma pequena pista. Ainda preciso investigar mais. Bem, vou emprestar este diário um pouco. Ah, poderia me dizer onde é o quarto da senhorita? Preciso saber, caso precise protegê-la.”

            “Corta essa de senhorita, ok? Essa formalidade toda me irrita, pois até parece que está vindo com intenções ocultas. E você não está pensando em invadir o meu quarto, está?”

            “Longe de mim fazer algo assim! Na verdade, isso está mais para eu impedir qualquer sujeito de aparecer no seu quarto à noite. Você tem estado atenta desde sempre, não é? Por que não relaxa um pouco? Eu prometo que estará bem segura comigo por perto. Fique tranquila. Não sou como esses caras em que está pensando. Serei cuidadoso com a linguagem também.”

            Ele levantou-se, guardou o diário em um bolso dentro do casaco e bateu a poeira grudada na roupa.

            “Acho que vi o bastante por hoje, e já está tarde. Vocês dormem cedo e acordam cedo, não é? Pode ir dormir, ficarei de vigília.”

            “Não vai dormir?”

            “Vou, é claro, mas só depois de garantir sua segurança. Não vim aqui para brincar, afinal. Apenas siga com seu cotidiano. Pode até fingir que não estou aqui.”

            Algo muito difícil, considerando o quanto Sísifo chamava a atenção, com sua estatura, roupas e aquela caixa enorme. Mesmo assim, Korina aceitou a sugestão dele e prosseguiu com seus afazeres normais. O cavaleiro, seguindo com os dele, circulou em torno da casa e por final arranjou-se no quarto de visitas, com porta e janela abertas, a fim de captar qualquer sinal de perigo.

            Enquanto isso, Korina lembrava as palavras de seu pai no diário. Ele parecia tão feliz por tê-la. O que mais teria escrito nas demais páginas? Que outras declarações tinha escrito ali e por que tudo num grego antigo? Havia tantas perguntas, e sua vontade era indagar o visitante, aquele que talvez pudesse lhe fornecer algumas respostas.

            Mas ainda não confiava nele. Nem devia. Contudo, sentia vontade de perguntar mais para ele no dia seguinte. Qual era, afinal, a relação entre seu pai e os tais cavaleiros de Athena?


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