Depois do Crepúsculo escrita por FSMatos


Capítulo 18
Capítulo Nove




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805783/chapter/18

BELLA

 

Jasper deu um giro rápido para a esquerda, enganchando o braço dele no meu, como se fosse uma cobra, e me empurrando para baixo, me obrigando a ficar de joelhos. Estava imobilizada e com a nuca exposta, de novo. Era impressionante a sua destreza. Uma amostra clara que experiência bem aplicada poderia superar a força bruta.

Era o vigésimo sexto erro consecutivo. Jasper não estava facilitando para mim. E o dia ainda nem tinha amanhecido.

Na ponta do grande salão, Natalie assistia tudo com entusiasmo, batendo palmas sempre que eu conseguia algum acerto e um muxoxo sempre que eu era derrubada ou imobilizada. Ainda não tinha sido a vez dela de tentar aprender na prática, mas seus olhos não deixavam passar nada. - Ao seu lado, um dos guardas, Santiago, observava tudo atentamente também, demonstrando sinais claros de perplexidade e absorvendo tudo que via e ouvia, tanto para informar Aro mais tarde sobre o treino quanto para aprender. Querendo ou não, Jasper tinha um estilo de luta bem diferente dos guardas, pensando mais do que agindo, poupando qualquer movimento desnecessário, não sendo tão agressivo ou mecânico. Os Volturi contavam muito com os poderes da guarda, principalmente os de Jane e Alec, para imobilizar as forças a serem neutralizadas, então as técnicas de luta italianas não eram as mais evoluídas, diferente de Jasper que havia feito parte de grandes exércitos de recém-criados um dia. O campo de batalha estava em sua essência e em suas práticas.

Jasper me soltou e deu um passo para trás. Não tentei avançar. Estava mais frustrada por ter falhado de novo.

— Bella, o que eu espero de você agora? - perguntou, remetendo a nossa conversa inicial assim que cheguei ao torreão e ele estipulou as nossas metas.

Olhei para ele.

— Perseverança. - respondi com um grunhido.

— Por que…?

— Porque disciplina e perfeição são para quem está acostumado com elas. - completei. - E para que eu as tenha, preciso primeiro buscar por merecê-las.

— Exatamente. Este é o nosso primeiro dia. Não espere cometer acertos logo de primeira. Na verdade, seria um marco e tanto se você conseguisse derrubar as minhas defesas. Mas está indo bem. Ao menos já sabe onde colocar os pés. - Jasper parecia estar sendo sincero em sua observação, o que fez eu me sentir um pouquinho melhor. - Só um adendo: confie mais no seu corpo. Está contida demais.

— Estou tentando não te machucar. - confessei.

Jasper ergueu uma sobrancelha, dando um pequeno sorriso irônico.

— Nesse ritmo, a única coisa que conseguirá é fazer que eu perca o meu tempo tentando treinar você. - Ele revirou os olhos. - Estou aqui para isso, para conter o seu descontrole. Não precisa temer em me ferir. Acredite, muitos que tentaram não conseguiram e a maioria estava há mais tempo neste mundo do que você. Pode vir. - E se posicionou novamente, aguardando.

Respirei fundo, puxando a força de vontade de volta e montei a minha posição de ataque. Esquadrinhar rapidamente a posição de Jasper; ele estava perfeito em sua guarda: mãos erguidas na altura dos ombros, uma mais a frente do corpo do que a outra, pés separados, olhos atentos, respiração tranquila. - Sabia que se eu quisesse derrubá-lo, precisava fazer com que ele vacilasse. Uma tarefa quase impossível contra alguém tão versátil e experiente.

Pelo canto do olho, vi Natalie abrir e fechar a mão na minha direção e tocar atrás da própria cabeça. Foi um gesto rápido e ela estava tão vidrada em nós que não sei se notou os próprios movimentos por aparentar ser uma movimentação inconsciente, mas decidi levar aquilo como uma dica, fora que já tinha notado antes: Jasper era um cara precavido, portanto, nunca dava as costas para mim. Este deveria ser o seu ponto fraco, as costas. - Tinha que esquecer de tentar agarrá-lo e o contornar rápido o suficiente para que ele não conseguisse me acompanhar. Era uma vampira jovem, portanto, mais rápida. Teria a vantagem se eu conseguisse pensar e executar tudo da maneira correta.

Jasper notou a mudança em mim. Ele avançou, pela primeira vez me atacando.

Fiz a primeira coisa que me veio à cabeça: pulei, dando uma cambalhota sobre ele e aterrissando logo atrás de onde ele estava. Por um décimo de segundo, Jasper estava indefeso e exposto. Bastava uma passada e eu o teria pego.

Um baque no meu estômago me assustou, como uma onda forte e invisível, e eu paralisei neste minúsculo espaço de tempo. Jasper se virou para mim em um giro rápido, usando a perna direita para me lançar longe. Não foi um golpe forte, mas conseguiu tirar uma pequena lasca de pedra da parede assim que bati contra ela.

Quando me recuperei do choque e fiquei de pé, rosnei para ele:

— Isso é trapaça!

Tinha entendido o que Jasper havia feito: ele usou o seu poder em mim, me fazendo sentir medo de atacá-lo.

— Uma luta de verdade nunca é justa, Bella. - explicou ele, sem remorsos. - Tenha isso em mente quando estiver de frente para o seu oponente. Venha e tente de novo. - disse ele em um tom autoritário.

Bufei. Estava farta disso. Não queria continuar me estressando. A raiva irracional vibrava no meu peito como um pequeno motor dos infernos ligado e funcionando a todo vapor.

— Pode dar a sua vez para Natalie, se preferir. - sugeriu ele quando viu que eu não me mexia.

Natalie, ao ouvir o seu nome, deu um pequeno salto de entusiasmo e se ergueu do chão. Diferente de mim, ela estava com uma roupa mais normal: uma camiseta de alças finas, shorts e descalça, o cabelo preso em um rabo de cavalo. Lembrava as roupas que usávamos para ir à praia em Jacksonville, apenas as cores eram diferentes: estas novas roupas eram escuras, nada das cores quentes que ela amava usar.

— Fique à vontade. - grunhi, indo em direção onde ela estava. Natie veio saltitando na minha direção e me abraçou.

— Você foi ótima. - sussurrou no meu ouvido e me deu um beijo na bochecha.

Não pude deixar de sorrir.

— Obrigada. Boa sorte. - falei e fui me sentar onde ela estava sentada e assistir.

Não pude deixar de ficar boquiaberta com a agilidade de Natalie. Por mais que ela tenha falhado mais vezes do que eu havia falhado, ela era mais solta e mais ousada, como Jasper havia pedido para mim anteriormente. Seus saltos acompanhados de giros eram delicados e velozes, ao mesmo tempo astutos e perseverantes. Assisti-la foi como ver um personagem de desenho antigo, por causa dos movimentos cartunescos.

Diferente de mim, Natalie não se frustrou com nenhuma derrota; muito pelo contrário, ela ria em muitos momentos como uma criança feliz e era nessas ocasiões que ela não poupava esforços para tentar alcançá-lo.

O dia amanheceu e eles não haviam parado ainda. Quando o relógio da praça soou às oito horas da manhã, Natalie somou ao todo quarenta e nove derrotas.

— Eu poderia fazer isso o dia todo! - gargalhou, batendo palmas e girando como uma criança que acabou de comer dois quilos de açúcar, um olhar alucinado estampado na cara.

Jasper riu e colocou as mãos sobre os ombros dela, fazendo-a parar. A respiração de Natalie se acalmou e ela voltou ao normal.

— Eu imagino que sim. Mas acredito que vocês tenham tarefas para cumprir.

— Sim, hoje é o dia em que Natalie e Heidi coordenam a próxima pescaria. - disse o guarda presente conosco.

“Pescaria” era o nome que eles usavam ao se referirem às vítimas que seriam atraídas ao castelo para alimentar a todos, geralmente, uma vez por mês. Ninguém fazia questão de sair para caçar, não com Heidi aqui. Tornava a viagem desnecessária. E sumiços na Europa eram corriqueiros, na maior parte do tempo, por culpa de outros humanos gananciosos e que ganhavam a vida com tráfico humano. Ninguém de fato ligava a essa altura. Havia uma investigação aqui ou ali, mas com os contatos certos e pagando bem, tudo era classificado como “inconclusivo”.

Natalie assentiu, uma expressão séria no rosto.

— E Bella irá fazer a averiguação de rotina com Jane.

“A averiguação de rotina” - um jeito técnico, beirando a inocência, de dizer que iríamos fazer uma visita aos comerciantes e donos de estabelecimentos locais, a fim de firmar o domínio dos Volturi por meio do medo e de nossa presença. Não que estes humanos soubessem o que somos, mas têm ciência de que o que acontece dentro desses muros diz respeito somente aos anciãos, e que se não desejavam um destino parecido daqueles que entram no castelo e nunca mais saíram dele, deveriam manter sua lealdade intacta. Praticamente uma máfia ao estilo de “O Poderoso Chefão”, com direito a recolhimento de pagamentos e conversas sobre problemas cotidianos que poderiam ser resolvidos sem recorrer aos trâmites humanos comuns, além da falsa sensação de segurança. Eram gerações e mais gerações de humanos treinados para ficar de bico calado e fingir que não estavam à mercê de seres medonhos, de pele pálida e olhos muito escuros. - Evitávamos andar por aí com os olhos vermelhos à mostra, usando lentes de contato que escureciam nossas íris.

Fiz uma careta e grunhi. De todos no castelo, Jane era quem mais me odiava, acredito que desde quando eu ainda era humana, tanto por ciúmes quanto por frustração. - Ciúmes pois, aparentemente, eu tinha me tornado a nova favorita de Aro. Frustração por ser a única que não podia ser ferida com o seu dom de causar dor nas pessoas. - Teria que suportar de três a cinco horas de seu olhar irritado sobre mim, como se eu fosse o ser mais desprezível do mundo apenas por existir e respirar perto dela.

Santiago, vendo a minha expressão, deu uma risada e alguns tapinhas no meu ombro, o que me fez rosnar para ele. Aparentemente isso não o abalou, pois ele permaneceu com o semblante relaxado de quem se divertia.

— Boa sorte com a tampinha! - disse ele, sorrindo.



— Senhorita Jane, bem-vinda. - disse Antonieta para a garota envolta de um manto quase negro e poucos centimetros mais alta do que o meu ombro. Eu também estava usando um manto, mas este era cinza claro, um dos destinados aos níveis mais baixos de hierarquia na guarda. Jane que havia arranjado para mim, é claro! Era provisório e necessário, devido ao protocolo: não podíamos sair sem um deles durante excursões oficiais. - E a senhorita Isabella. É bom vê-la novamente. - Ela carregava em sua voz um tom de culpa e remorso; ela sabia quem eu era e que tinha estado em sua pousada antes com Natalie, antes de toda nossa vida mudar drasticamente. E não, ninguém precisou falar nada para ela. Antonieta simplesmente me reconheceu. Em uma ocasião anterior, disse que era boa com rostos. Talvez fosse verdade. A esta altura, não me importava.

Assenti, sem dizer uma única palavra. Eu não tinha permissão para falar com ninguém. Estava ali somente para fazer o papel de escolta de Jane, o que na minha visão era um absurdo. Jane era forte o suficiente para se virar com meia centena de mortais. Estávamos nos esgueirando pelos esgotos até os comércios e estabelecimentos e estava plena luz do dia lá fora, então duvidava que houvesse riscos de um ataque inimigo àquela hora (se alguém fosse louco o bastante para invadir). Fora que qualquer outro guarda poderia fazer aquele trabalho melhor do que eu. 

Bem, pelo menos Jane já havia parado de tentar achar brechas na minha cabeça que permitissem que ela me derrubasse.

O que me fez pensar que talvez Natie estivesse certa sobre os mantos e estávamos em teste agora. O próprio Aro, mesmo se esquivando, não negou quando o questionei. A ideia de ficar presa àquele lugar ainda me causava calafrios, mas eu precisava me manter firme. Continuava pensando em como contornar a situação com os Cullen da melhor maneira possível, e a única afirmação da qual tinha certeza era que precisava colaborar. Felizmente, Jasper era um cara paciente e prático; não me deixaria derrubar a peteca.

Pensar em Jasper me fazia lembrar de Alice e a conversa que ela queria ter comigo. E pensar em Alice me fazia pensar em Edward. Nas últimas horas, eu havia conseguido deixar este tema longe do meu foco central, mas ele sempre estava ali, orbitando meus pensamentos, procurando a oportunidade certa para vir à tona. - O que me irritava era que Jasper não havia falado nada sobre ele querer vir falar comigo. Desejando ou não, minha mente idiota estava semeando esperanças, contradizendo quaisquer verdades que a minha mente tivesse criado e das quais ainda estava tentando me convencer.

Eu sabia o porquê disso estar acontecendo, tinha que admitir: queria explicações. Não por ele ter ido embora, mas por ter voltado à minha vida daquele jeito. Tinha consciência de que ele e sua família não tiveram escolhas sobre o tal “convite”, mas toda aquela proteção, todo aquele cuidado, mesmo que distanciado, e a conversa estranha sobre o tal inconveniente pelo qual teve que se desculpar. - Me irritava ter esperanças, mesmo que os sinais fizessem com que os meus pensamentos as agarrassem com força. Não poderia ser só por culpa; seria?

Se ainda pudesse ter reações humanas, estaria me coçando de puro nervosismo. Teria que ter a conversar com Alice o quanto antes. Talvez ela tenha as explicações das quais eu preciso e talvez minhas velhas paranóias finalmente sejam solucionadas, ou ao menos apaziguadas.

— Olá, Antonieta. - disse Jane, arrancando-me de meus pensamentos loucos voando na velocidade da luz. - Vejo que este mês está bem vazio aqui. - Ela deu um passo à frente, saindo mais dos fundos da cozinha pelo qual entramos, indo para uma parte mais iluminada, mas sem abaixar o capuz do manto. A pouca luminosidade da cozinha pequena e antiga, área particular de Antonieta, ainda podia fazer nossas peles cintilarem. Não queríamos assustar mais ainda a dona da hospedaria, mais do que ela já estava.

— As altas temporadas são em Florença. - A mulher foi até o armário de panelas e tirou de dentro de um dos utensílios de cobre uma pequena bolsa que parecia pesada. - Mas o pagamento está em dia. Tenho fundos reservas bem organizados, graças aos seus senhores. - Ela tentou sorrir, mas estava muito aflita para parecer real.

Antonieta lhe deu a bolsa e Jane a entregou para mim. Eu a coloquei na mochila em minhas costas, tendo o cuidado de manter os movimentos em velocidade humana.

— E os meus senhores agradecem por sua lealdade. - disse Jane docemente, tão doce que quis vomitar pois sabia que estava sendo falsa. - Em cinco semanas chegará um novo lote. Esperamos que esteja pronta para recebê-lo.

O coração de Antonieta se acelerou e a mulher engoliu em seco. Uma fina camada de suor em sua testa apareceu, mas ela fez de tudo para soar normal:

— Os quartos estarão limpos como sempre, senhorita.

— Ótimo. - Jane se virou para sair, porém, ouvimos passos do lado de fora da porta dos fundos. Eles vinham naquela direção. Era um beco sem saída atrás da hospedaria e não havia nenhuma outra porta de acesso senão aquela e o buraco na calçada que levava aos esgotos.

Puxei Jane para o canto mais afastado da cozinha e nos escondemos na sombra de algumas prateleiras, longe das janelas. Ela não reclamou do contato. Sinalizei para Antonieta ficar atenta a porta. Cinco segundos depois, uma mão pesada socou a madeira.

A humana foi até a porta e a entreabriu. Um homem de meia idade falou com ela em italiano, uma pergunta.

Antonieta olhou para nós.

— É um dos policiais da cidade. - anunciou. - Está procurando por vocês.

— Deixe-o entrar. - ordenou Jane.

Antonieta assentiu e sinalizou para que ele entrasse. Saímos das sombras assim que a porta foi fechada novamente. O pobre coitado tomou um susto com a nossa súbita aparição, mas logo começou a balbuciar e gesticular como um louco e suando mais do que um porco no sol. - Eu ainda não havia aprendido italiano, mas as únicas duas palavras que pude entender dele foram “Interpol” e “Amber”.

Eram palavras muito conhecidas por qualquer estadunidense nascido e criado na América. Só não conseguia aplicar em um contexto. Foi apenas quando ele disse “Isabella Swan”, “Natalie Estrada” e “Xerife Swan”, que as peças se encaixaram: Charlie havia acionado o Alerta Amber para pessoas desaparecidas e contatou o governo norte-americano para acionar a Interpol, a Polícia Internacional.

Ele estava atrás de mim. Estava atrás de nós duas.

Um calafrio subiu pela minha espinha. O desespero tomou conta dos meus nervos, gritando que Charlie estava em perigo e que era culpa minha. Charlie seria morto. Charlie logo estaria aqui me procurando. Charlie, Renée, Jacob… - Estava tão atônita que paralisei como uma estátua. Jane começou a bravejar com o pobre policial, cuja alternativa para tentar se proteger de sua fúria era se encolher e choramingar ainda mais, como um cão sendo maltratado.

Jane saiu andando para o sol sem olhar para trás, sem me dar ordens, não se importando de não parecer bizarra com sua velocidade anormal ou que vissem sua pele luminosa. Levei meio segundo para conseguir fazer meus pés se movimentarem. Logo eu estava dentro dos esgotos de novo, correndo para alcançá-la.

— O que vai acontecer? - perguntei, a voz embargada.

— Cala a boca! - gritou ela, furiosa e algo a mais. Medo? - Aquela estúpida…! Aquela estúpida! - Era só o que conseguia falar, contraindo as mãos como se estivesse esmagando algo ou alguém.

Pisquei.

De quem diabos ela estava falando?!

Enquanto íamos em direção ao castelo, notei quando Jane passou a farejar o ar, como se estivesse caçando. Porém, não seguimos o rastro de um humano, mas de outro vampiro. Saímos direto para os elevadores, parando de andar em andar até ela encontrar o cheiro certo. Estávamos na ala norte, onde ficavam as galerias com quadros e esculturas. Não paramos para bater na porta, como de costume, e entramos diretamente em um delas. Ali estavam os quadros do século XIX. Sentados em uma mesa de madeira comum e jogando um jogo de cartas, estavam Félix, Demitri e um novato chamado Simon.

Eles se assustaram com a nossa repentina presença.

— Bella, dê a mochila ao Simon, ele cuidará do resto do trâmite. Demitri e Félix, venham comigo. - ordenou, a voz seca.

Os três estavam confusos. Olharam para ela atrás de respostas, mas Jane já estava indo embora, sem rodeios. Olharam para mim, mas apenas fiz o que me foi dito e a segui com os outros dois. Não estava gostando do rumo que as coisas estavam tomando. Jane não convocava seus escudeiros preferidos senão para algo especial ou muito urgente. Alguém estava prestes a ser punido, tinha certeza disso.

Continuamos percorrendo as alas de andar em andar, até que estávamos no corredor dos cofres. Natalie estava saindo de um deles, carregando consigo uma pequena prancheta, suspirando de tédio. Tinha trocado de roupa, usando um vestido florido soltinho e cor de vinho, mas ainda estava descalça. Quando viu Jane andando em sua direção, paralisou, assustada, respirando rápido e os olhos arregalados de pavor. Mas Jane a ignorou, entrando no cofre sem pensar duas vezes. Menos de um décimo de segundo depois, um grito tortuoso saiu de dentro dele.

— Sua desgraçada! - gritou Jane, e o berro se intensificou. Natalie olhava para dentro do cofre e com as duas mãos cobrindo a boca, horrorizada, sua prancheta e caneta no chão.

Como nós três estávamos a uma certa distância de Jane, só pudemos ver de quem se tratava um segundo depois: jogada no chão e se retorcendo em agonia, Heidi gritava a plenos pulmões enquanto Jane com uma expressão alucinada sorria, mas não era um sorriso feliz, e sim de pura cólera.

— Você vai queimar na fogueira!



O silêncio no torreão era sepulcral. Em mais de três séculos, nenhum outro guarda havia sido punido. Ninguém ousava tecer comentários com medo de terem destinos parecidos. Por mais que a princípio eu não tenha entendido o motivo do ataque de Jane contra a própria colega, não demorei muito para juntar os pontos, como fiz antes. - Um dos muitos assuntos que eu havia aprendido sobre as dinâmicas de proteção dos Volturi era nunca deixar rastros quando se tratava de dinheiro, artefatos e sangue. Sobretudo, sangue. Heidi tinha que fazer uma pescaria perfeita, convencer os humanos atraídos a não falarem nada sobre a viagem final de suas vidas até Volterra e assim nunca mais serem vistos. Desaparecer como fumaça.

Mas Natalie e eu não havíamos desaparecido como fumaça. Tínhamos contado aos nossos familiares aonde iríamos, quando íamos e quando estaríamos de volta. A questão é que jamais voltamos e nem iremos. Cortamos todos os contatos. E agora os humanos que deixamos para trás queriam respostas, porém, elas não existiam, somente o silêncio. Entretanto, eu conhecia Charlie. O silêncio para ele nunca seria o suficiente. Ele iria até os confins do mundo para me encontrar. Ele era um sujeito teimoso e eu herdei sua teimosia, portanto, sabia como funcionava. - Seria catastrófico para todos, especialmente para ele, se Charlie chegasse perto demais da verdade. Ele teria que ficar longe ou morreria. Estava chamando atenção demais. Humanos que chamam atenção demais só causam problemas. E Heidi tinha cavado a própria cova.

No centro do salão de pedra, uma Heidi assustada estava ajoelhada e de cabeça baixa, com Demitri e Félix de cada lado para não deixá-la fugir, apesar de duvidar muito que ela tivesse essa ousadia toda. Ela tremia sem parar e tentava não chorar. Jane estava mais tranquila depois de ter descarregado toda a sua fúria inicial, agora aguardando pacientemente a chegada de seus mestres, com Alec ao seu lado segurando sua mão. - Juntinhos assim, era fácil se enganar com suas aparências juvenis. Se não fosse pelos olhos tenebrosos e expressões mortais, eles poderiam ser adoráveis. Mas eram os “irmãos bruxos”; sua fama tornava suas presenças algo a ser extremamente temido, até mesmo por aqueles que serviam aos seus mestres, sob o mesmo juramento.

A porta de madeira abriu em um rompante, com Caius ardendo em ódio, atravessando a distância entre ele e a prisioneira subjugada, na velocidade de um fantasma. Ele desferiu um tapa em seu rosto tão forte que lhe arrancou um gemido de dor. Ele a agarrou pelo o cabelo com uma mão e pelo pescoço com a outra, erguendo-a até que estivesse no mesmo nível de seus olhos.

Ao meu lado, Natalie tremeu, provavelmente sentindo o desejo de Caius e de Heidi. Segurei sua mão com força. Também não estava gostando em nada daquela cena. Heidi, que sempre foi tão confiante e desinibida, de repente parecia quase tão frágil quanto uma mortal.

— Como ousa ser tão desleixada?! - gritou ele. - Você tem noção do que fez?!

— Me desculpe… - balbuciou ela, aos prantos.

Caius largou o seu pescoço e deu mais um tapa nela para calá-la.

— Não tente me tratar como ingênuo. - sussurrou.

Caius a soltou e ela caiu no chão como se estivesse desfalecida.

Nesta hora, Aro entrou acompanhado de Marcus e de Carlisle. Pela expressão de indagação, não deveria estar sabendo do que estava acontecendo quando foi chamado às pressas. Demonstrou clara surpresa quando viu Heidi sendo posta de joelhos de novo pelos guardas. Ela chorava de soluçar.

— O que está acontecendo? - disse Aro, passando por eles enquanto ia em direção a Caius.

Eles fizeram um breve contato, os olhos de Aro se arregalando no final.

Heidi começou a chorar mais alto.

— Por favor, Mestre, me perdoe! - Ela implorou, sem forças.

Natalie respirava com dificuldade, me deixando mais aflita. Ela parecia prestes a ter um colapso, um muito pior do que durante a caça.

Aro deu um passo à frente, mantendo o contato visual com Heidi. Ele estendeu a mão, tocando o seu rosto com carinho.

— Heidi, Heidi. - Aro parecia lamentar profundamente. - O que vou fazer com você? - Sua voz era pura decepção.

Heidi negava com a cabeça, os olhos fechados, como se tentasse afastar qualquer mal que pudesse acontecer a ela naquele momento.

— Qual o problema, Aro? Por que estão fazendo isso? - perguntou Carlisle, seu olhar indo de um ao outro, tentando entender o que estava acontecendo.

— Heidi comentou um erro. - anunciou Jane, a voz fria feita gelo e cheia de desprezo. - Permitiu que houvesse um rastro de sangue às nossas portas.

— Um erro que custará a nossa paz por um tempo e que por muito pouco não custou o nosso segredo. - Aro anunciou, pezaroso. - Um erro que não pode ser tolerado. Minha pobre Heidi! - Sua voz estava aguda de estresse.

Caius deu passo à frente, entendendo a deixa de Aro. Demitri e Félix agarraram os braços de Heidi, imobilizando-a.

Natalie escondeu o rosto com as mãos, temerosa de ver o que estava prestes a acontecer.

— Parem!

Todos olharam para mim, paralisados em uma mudez perplexa. - Minha boca tinha falado mais rápido do que o meu raciocínio, porém, eu não conseguia suportar Natalie e Heidi desabarem na minha frente. Por mais que a vampira subjugada não fosse nada para mim, não conseguia deixar de sentir pena. Já tinha estado no lugar dela antes e entendi o seu medo.

Aro me encarou.

— Está tentando dar ordens, Srta. Isabella? - perguntou ele educadamente, o tom falso que usava sempre que tentava soar amável. - Até para as suas atitudes existe um limite.

— Não estou tentando mandar em ninguém. Apenas… apenas não é justo.

— O que não é justo?

— Que Heidi não tenha direito a uma segunda oportunidade como eu e os Cullen tivemos.

Caius gargalhou.

— Está garota só pode estar brincando. - riu.

— Bella, isso é… - Carlisle tentou encontrar palavras que pudessem descrever a minha atitude, porém, não conseguia encontrá-las.

— Absurdo! - completou Caius. - Isso é uma situação completamente diferente.

— Não, não é! - Sai de perto das paredes. Natalie tentou agarrar o meu braço enquanto sussurrava que era perigoso, entretanto, afastei a sua mão, ignorando-a. - Se fosse, você não teria ofertado a redenção para a quebra da lei, certo? Não teria me transformado, ou a Natalie, em troca de perdoar a família Cullen, certo? - Me aproximei até estar a poucos passos de Aro, mantendo o contato visual. - Tenho certeza de que, assim como o Dr. Cullen e sua família, Heidi não teve a intenção de falhar.

— Mas teve intenção de esconder. - disse Aro secamente.

— E o fez isso por temer as consequências. Até nós, seres “perfeitos”, somos passíveis de erros. Muitas vezes, inclusive. - ironizei, lembrando de todos os meus ataques de fúria até ali. - Você mostrou misericórdia pelos seus amigos e por quem mal conhecia. Pode fazer o mesmo por quem lhe é mais leal. Não pode?

A pergunta pareceu ter pego Aro de surpresa. Podia sentir nas minhas costas os olhares de todos os outros guardas, inclusive Heidi que havia parado de chorar, além de Natalie.

— Bella tem razão, Aro. - disse Carlisle quando o ancião não respondeu nada, somente permaneceu mudo e olhando para mim como se eu fosse o ser mais anormal do mundo. - Heidi é uma peça valiosa aqui. Acha que vale a pena descartá-la por algo que em breve será contornado?

Aro comprimiu os lábios em uma linha fina.

— Não. - murmurou, parecendo se sentir contrariado e sem tirar os olhos dos meus. - A questão, Bella, tem algo a oferecer em troca da vida dela? - Seu tom era provocativo.

Engoli um rosnado.

— Não.

— Exatamente. - Ele riu, sem humor.

— Mas só a existência dela já vale o risco - argumentei, me recusando a deixar as circunstâncias simplesmente me vencerem. - Esse castelo não funciona sem ela. Não nos alimentamos nem nos camuflamos sem ela, e você sabe disso.

— Aro… - Caius começou a protestar, porém, uma mão magra tocou o seu ombro.

Era Marcus.

— Deixe que a garota viva, Aro. - disse ele. - Logo os humanos estarão com suas vistas longe daqui. Não é como se estivéssemos lidando com este tipo de problema pela primeira vez. Este é o meu voto.

Caius rosnou para ele, tirando violentamente a mão do irmão de cima de si com desprezo.

— Este será um erro terrível. - Anunciou Caius e este partiu, abandonando o torreão sem fazer questão de permanecer ali e ouvir a decisão de Aro.

Todos aguardavam.

— Espero que esteja empenhada em se redimir da melhor maneira possível, Heidi. Podem soltá-la. - murmurou. Demitri e Félix o obedeceram no mesmo momento.

Aro seguiu o exemplo de Caius ao se retirar, com uma Jane e um Alec muito confusos com o que acabou de acontecer em seu encalço. - Foi uma saída estranha, mas senti o meu corpo inteiro relaxar de alívio. Apenas Carlisle e Marcus permaneceram.

Carlisle veio até mim. Sua expressão era amorosa e orgulhosa.

— Fez um bom trabalho, filha.

Suas palavras me deixaram sem jeito.

— Obrigada. Eu só… - Antes que eu pudesse formular uma frase, braços se fecharam ao meu redor e uma Natalie muito chorosa se pendurava em mim, como criança fazendo birra.

— Por que você fez isso? Podia ter morrido! - brigou.

— Desculpa, não quis preocupar você. - murmurei, passando a mão nas costas dela, tentando consolá-la. - Para de chorar, ainda estou inteira.

— Por que fez isso? - Agora era Heidi quem falava comigo, agora de pé e recomposta. Ela estava claramente com raiva. Talvez não esperasse ser salva por mim.

Dei de ombros.

— Apenas fiz o que achava ser certo. - Tentei soar casual.

Heidi ficou boquiaberta.

— Você é estranha. - E deu as costas, indo embora como se não tivesse estado prestes a morrer menos de dois minutos atrás.

— Um “obrigada” seria ótimo, vagabunda. - resmungou Natalie, ainda presa a minha cintura. Se Heidi ouviu, não retornou para tirar satisfações com a ofensa gratuita.

Félix, até o momento catatonico, começou a rir.

— Acho que por essa, ninguém esperava! - disse ele a todos os guardas com um bom humor que não combinava com ele. - Vamos, voltem aos seus afazeres. O show acabou.



Na hora em que os guardas foram dispensados, muitos ainda olhavam para mim, mas não com a falta de paciência ou desprezo de sempre. Era algo diferente. Alguns olhares lembravam admiração, outros somente assombro. Félix ainda ria e Demitri o encarava como se fosse louco.

— Ele nunca bateu bem da cabeça. - disse quando Félix também partiu e ele ficou para trás. - Mas eu nunca pensei que um dia fosse defender um de nós, garota problemática. Achei que nos odiasse. - Demitri estava sendo franco, era evidente.

— Ter salvado a pele de Heidi não diminui em nada a minha opinião. Muito pelo contrário. - respondi amargamente. Sabia a impressão que tinha passado, porém, isso pouco me importava. - Só precisei fazer o que achei que seria certo.

— Eu ouvi antes. - Ele assentiu, pensativo. - Apenas quero entender o porquê.

— Nunca sentiu compaixão por ninguém?

Demitri ergueu a sobrancelha, surpreso.

— Não que eu me lembre.

Estreitei os olhos.

— Então de nada adianta perguntar. Teria que ser capaz de se pôr no lugar de outra pessoa. - Não pude evitar demonstrar que estava com raiva dele por ser tão indiferente.

Ele sorriu com a minha reação.

— Foi o que ensinou para ela, quando era humana? - Agora ele falava com Carlisle.

Carlisle gesticulou negativamente.

— Bella sempre foi assim, tanto com os humanos como conosco. - Ele parecia feliz ao falar sobre mim. - Que bom saber que a transformação não mudou isso em você. A notícia deixará todos mais tranquilos.

Demitri fez uma careta.

— Meloso como sempre, Carlisle. - Ele sacudiu a cabeça e fechou os olhos, com que para afastar a ideia. - Tenham um bom dia. - E foi embora, mas antes fez uma pequena reverência a Marcus, este sentado em sua cadeira, inabalável.

— Tenho que ir, também. - Anunciou Natalie, finalmente desgrudando de mim. - Não sei se Heidi voltará aos afazeres logo. Talvez queira se recuperar do susto primeiro. De qualquer forma, não quero correr o risco de me atrasar.

Assenti.

— Tudo bem. Não acho que Jane esteja de bom humor para continuar com a averiguação. Terei muito tempo livre. - E estarei com a cabeça dando voltas e mais voltas. Já não bastava o espaço extra, meu cérebro agora ele estava lotado com todo o tipo de questionamento e medo idiota. Precisava me distrair.

— Quer ir comigo e saber sobre o que está acontecendo lá fora? - ofertou Natalie, os olhos brilhando de empolgação.

Era uma proposta tentadora. Era a oportunidade que eu tinha para saber como andava Charlie, Renée, e quem sabe Jacob, também. Conhecendo Jake, deveria estar prestando todo o apoio para encontrar a namorada. Se ele soubesse que este era um covil de vampiros, mobilizaria a matilha para vir atrás de mim? Não, conhecendo-o bem, seria louco o bastante para vir sozinho. Eu o expulsaria com as minhas próprias mãos. Mandaria ele quebrado e remendado de volta para casa se fosse necessário, porém, ele entenderia o que aconteceu comigo e não poria os pés ali de novo.

Era uma oportunidade tentadora.

— Vá sozinha. Sei que será um trabalho árduo. - respondi por fim. - Estarei na biblioteca. - Era a distração que eu precisava: livros. Eles sempre serão universos a parte de toda essa realidade grotesca e virada de cabeça para baixo.

Ela fez beicinho, mas não tentou me convencer do contrário.

— Acompanharei você, se não se importa. - Carlisle falou. Ele ainda irradiava felicidade enquanto me olhava, como um pai emocionado com a filha.

Tê-lo me olhando daquela maneira trazia um misto de sensações: vergonha, acolhimento, tristeza, timidez, esperança. Esperança, esperança, esperança… Eu não deveria ter esperanças.

Assenti, concordando.

O sorriso dele aumentou.

— Então me espere.

Carlisle, após uma breve troca de palavras com Marcus, agradecendo pelo apoio, deixou o torreão comigo e Natalie. Ainda não conseguia acreditar que tinha parado uma ordem expressa de Aro. - Natalie tinha razão: eu poderia ter morrido ali. Quem seria louca o bastante para desafiar os reis, afinal? Tinha apostado todas as minhas fichas naquela intervenção, porém, tinha provado um ponto que vinha observando desde o dia anterior: por mais que sua benevolência fosse uma encenação, ele jamais permitiria ser pego na própria armadilha e se contradizendo.

Acabei colocando-o em uma saia justa na frente de todos, o que explica porque ele saiu sem dizer muitas palavras: constrangimento. Eu o havia constrangido. - Não sabia se me sentia orgulhosa pelo o feito ou temerosa de enfim ter alcançado o limite máximo para despertar a sua ira.

— No que está pensando, Bella? - perguntou Carlisle enquanto andávamos a passos humanos até a ala da biblioteca.

O relógio da torre já tinha anunciado meio-dia, portanto, as ruas de Volterra estavam mais movimentadas, com pessoas indo para suas casas para o intervalo de descanso. Daquele lado do castelo, as vozes eram mais próximas. A tranquilidade de suas vidas pacatas eram um conforto diferente para a minha mente; era tudo tão normal e tudo tão certo, ao ponto de eu ter inveja deles. Fazia meses que eu não podia andar pelas ruas a luz do dia sem estar coberta e sem poder olhar para cima e ver o céu. Somente à noite eu estava livre para transitar nos entornos a céu aberto do castelo. A noite era linda, mas também era sufocante neste aspecto por ser tão restritiva.

— Nas consequências dos meus atos e na vida mundana.

— Parecem temas difíceis de digerir. - comentou ele, abrindo uma das portas da biblioteca para que eu pudesse entrar.

Franzi o cenho.

— Por que acha isso?

— Seu rosto denuncia muito do que se passa em sua mente.

Bufei.

— Pelo visto, ter um corpo de pedra capaz de derrubar montanhas e uma mente inacessível não me impedem de continuar sendo um livro aberto.

— E isso frustra você. - Não era uma pergunta. Seus olhos traziam uma franqueza com a qual eu já não estava acostumada.

Neguei com a cabeça.

— Não muito. É só… - Parei em frente a uma estante conhecida. Ali, em pequenos volumes, estava a coleção de Shakespeare. Era uma das poucas histórias em inglês e as únicas que eu gostava de apreciar. De vez em quando pegava Dante, mas somente pelas gravuras, pois estava em italiano. Com Natalie falando comigo de novo, talvez ela me ajudasse a ler e quem sabe me ensinar um pouco. - Como conseguiu fazer isso, viver aqui? - Me virei para ele, olhando em seus olhos dourados e gentis, desistindo de me distrair com a leitura. Seria inútil, de qualquer forma.

Carlisle piscou algumas vezes, pensativo.

— Esperança. - disse por fim. - Quando vim para a Itália para estudar, os Volturi me acolheram. Quero dizer, Aro me acolheu. Ele estava intrigado com o meu estilo de vida, minha filosofia de não matar humanos, e tentou de todas as maneiras me convencer de que estava sendo um tolo. A maioria dos vampiros que cruzam o meu caminho sempre tentam, na verdade. E eu acreditei que poderia fazer o mesmo com eles. - Ele fez uma careta e riu. - Também ficou fascinado pelo fato de todos sempre quererem estar perto de mim. Achou que poderia ser útil para os seus objetivos.

— E serviu?

— Não. Foi mais um debate interminável de ideologias do que uma colaboração mútua, na maior parte do tempo. Mas foi graças a eles e seus recursos que pude fazer diversas pesquisas. Quer que eu mostre uma delas a você? - Carlisle abriu um sorriso orgulhoso e começou a andar pela biblioteca, procurando. - Ali. - Apontou para o alto de uma prateleira mais próxima do centro. Ele a escalou e retornou com um pesado livro de capa feita de couro vermelho. - Sabia que eles ainda tinham uma cópia.

— O que é isso? - perguntei, curiosa e me aproximando.

— Minha primeira tese da universidade. - respondeu, abrindo o livro na primeira página. - Este é um volume único. Fiz quatro deles, apenas. Um ficou na universidade, este eu deixei aqui e outro levei comigo. A quarta cópia foi parar em Milão, em um museu. - continuou, virando as páginas e mostrando as gravuras. - Foi um trabalho árduo, mas valeu a pena.

Era um livro de anatomia, extremamente detalhado, feito à mão. Quis tocar os desenhos, sentir a textura da tinta usada e do papel envelhecido, mas não queria correr o risco de estragar tal relíquia.

— É lindo. - murmurei.

— Obrigado. - Ele fechou o livro assim que chegou até a última página. - Foi uma época crucial para mim. Boa parte do meu autocontrole veio dessa pesquisa. Foi assim que aprendi a ignorar o sangue humano ao ponto de não sentir mais a sua influência.

— É surreal, Carlisle. - grunhi, cruzando os braços sobre o peito, respirando fundo. - Poucos de nós seriam capazes desse feito.

— Acha que não conseguiria, Bella?

— Meu caso é diferente. Sei como é ter o sangue humano no meu corpo. É enlouquecedor. - Engoli em seco, a garganta queimando com a lembrança. - Estaria mentindo se dissesse que, em certo nível, eu gosto. - Quando o sangue descia, aplacando o ardor, era a sensação mais tranquilizadora e alucinante do mundo, enquanto o sentimento de repulsa não me atingia. Como uma droga muito boa nas mãos de um viciado sedento.

— Porém, - enfatizou, procurando por meus olhos quando eu os desviei em direção aos livros na nossa frente. Não queria olhar em seus olhos; sua compaixão me causava vergonha. - isso não a exime de sentir culpa, como está sentindo agora.

— Não sabia que podia ler mentes. - murmurei, amarga.

Carlisle escalou novamente as prateleiras, devolvendo o livro ao seu lugar original. Quando desceu, colocou as mãos em meus ombros, obrigando-me a ficar virada para ele. Tinha os lábios comprimidos e uma expressão determinada.

— Não preciso ler mentes para saber como você é, Bella. E isso não é arrogância. Mas muito do que vi do Edward na época em que ele era um recém-criado, eu vejo em você.

A comparação me pegou de surpresa. Um misto de contentamento e agonia que apenas uma mente espaçosa poderia proporcionar.

— Como assim? - perguntei, ofegante.

— Edward contou a você naquela época em que morávamos em Forks, mas acredito que você não se recorde. A transformação apaga algumas memórias.

— Me recordo de pouquíssimas.

Carlisle assentiu.

— Edward ficou com raiva de mim, do nosso estilo de vida. Da privação de sangue humano. - Seus olhos pareciam vagar por um tempo distante, mas que permanecia fresco em sua mente. - Queria a liberdade para experimentar viver como os outros. Como seu pai e criador, eu não poderia proibi-lo. Nunca o obriguei a ficar comigo. Nunca restringiria as suas vontades. Naquele tempo, eu já havia encontrado Esme e ela ficou arrasada por ter que vê-lo ir embora, porém, concordava com a minha decisão. Estaria sendo desonesto se eu dissesse que não fiquei triste, talvez um pouco ressentido, mas isso tudo ruiu quando ele voltou. Nunca me senti tão aliviado por ter ele conosco. Edward voltou quebrado e arrependido. Olhar para os próprios olhos, injetados de sangue humano, era um pesadelo para ele. Levou um tempo até que ele aceitasse o carinho, o acolhimento que oferecemos e passou todos os anos seguintes tentando se redimir, aprendendo medicina, tentando ser um pouco como eu, - Ele sorriu como se a lembrança o lisonjeasse. - aceitando Esme como sua mãe. Essa vergonha, essa sensação de estar quebrado… é a mesma sombra que está estampada em seu rosto, Bella, desde o momento em que pisou naquele torreão e nos viu, e mais ainda agora em que mal consegue me olhar nos olhos.

Agradeci em silêncio por meu coração não bater mais, senão, ele estaria galopando em meu peito, deixando o meu rosto vermelho. Porém, eu não podia afastar a sensação de sufocamento que subia pela minha garganta, tirando-me o ar, fazendo tudo doer. Não doer fisicamente, mas intimamente, como a cicatriz que nunca sumiu em meu peito.

Um soluço escapou da minha boca. Carlisle me abraçou, o que me fez soluçar mais e tremer em seus braços. Não conseguia entender muito bem o que estava acontecendo, mas sua empatia com o meu estado estranho fez abrir uma comporta que já estava a beira de explodir: a que segurava todos os sentimentos de estar presa naquele pesadelo, mas em vez de ser a mocinha em perigo, eu era o monstro que perseguia os inocentes e que não tinha escolha em optar por um destino diferente. E imaginar que Edward tinha sentido culpa e desgosto consigo mesmo semelhantes tornava a dor mais agonizante. - Levei meio segundo para entender que eu estava chorando, mesmo que não houvesse lágrimas.

Deixei fluir, agarrando-me a Carlisle como se estivesse me afogando e ele fosse um colete salva-vidas. Não sei se o machuquei. Se o fiz, ele não reclamou.

Quando eu me acalmei, Carlisle me soltou.

— Melhor?

— Não. - murmurei, rouca, dando um passo para trás. Nem todo choro do mundo seria capaz de arrancar isso de mim ou mesmo aliviar por míseros segundos, assim como fechar o buraco sob a pele fechada.

— Sabe que pode escolher. Aro não tem o direito de te manter aqui.

Balancei a cabeça negativamente.

— Ele vai fazer qualquer coisa para me prender aqui. Não conseguiu usando Chelsea ou Corin, então ele tentará outras maneiras. Já está fazendo isso, ao acionar os seus recursos e despistar Charlie que acionou a Polícia Internacional para me encontrar. - expliquei, pois não havia ficado claro antes, por mais que Carlisle devesse saber do que se tratava um “rastro de sangue”. Respirei fundo, tentando enterrar o pânico e não estremecer. - Ou mantendo vocês aqui. Se não são prisioneiros como eu, deveriam ir, antes que tudo piore. - Antes que eu piore tudo.

— Edward jamais se perdoaria se fossemos embora.

Bufei.

— Natalie disse o mesmo. Mas, independentemente do que Edward— O nome dele queimava na minha língua. - pense o que deve fazer para se redimir comigo, acabou! Há muito tempo. Ele não me deve nada e eu não devo nada a ele. Já não sou um peso morto que precisa ser protegido. Muito pelo contrário: parece que todos precisam ser protegidos de mim, a vampira maluca e insubordinada. - Eu ri com a ironia, mas queria chorar de novo, porém, não iria performar um momento tão vergonhoso outra vez, não na frente de quem nada tinha a ver com os meus problemas. 

Pelo semblante de Carlisle, minhas palavras estavam lhe causando dor.

Antes que pudesse falar mais alguma coisa, a porta da biblioteca abriu de rompante, trazendo consigo o som de pés rápidos e passos ritmados. Olhei para trás, assustada com a invasão repentina do cômodo, porém, relaxei um pouco quando vi Alice parada a alguns passos atrás de nós. Os olhos denunciavam a sua urgência. Ela estava adorável, o cabelo negro e desfiado em camadas curtas emoldurando seu rosto de fada como se fosse um personagem de conto infantil.

— Desculpe-me pela interrupção, Carlisle. Está na hora de eu falar com ela.



Assim que ficamos a sós, Alice se atirou sobre mim, me envolvendo em seus braços muito magros mas firmes. Por um momento, não tive reação senão apenas registrar o que eu sentia. Não era somente mágoa; também havia conforto, ao mesmo tempo estranheza. Era um abraço inesperado, em paralelo com a impressão de que eu sabia que estava esperando por ele há uma eternidade.

Retribui, sentindo meu coração e pulmões arderem de emoção. O cheiro dela era agradável, como maçãs e alcaçuz. Estava mais estável, portanto, consegui conter a onda de melancolia. Em vez disso, abri um pequeno sorriso triste.

— Perdoe-me. - murmurou Alice, o rosto enterrado no meu ombro e no meu cabelo. - Deveria ter ido até você antes. Se eu tivesse ido… - choramingou.

— Shh! - A silenciei, passando a mão por seu cabelo, consolando-a. - Não precisa se desculpar comigo, muito menos pedir perdão. - Por mais que eu estivesse receosa a princípio, ter Alice em meus braços me fez lembrar um pouco de como era a nossa amizade. A Alice que conheço não iria ficar tão fragilizada se não fosse por um arrependimento sério. Era a Alice, a sempre confiante Alice. Me senti um pouco culpada por desconfiar mais cedo.

Alice me apertou um pouco mais e depois se afastou. O seu rosto agora estava iluminado e um pouco menos abatido.

— Olhe para você! Está tão… - Alice parecia não saber qual palavra usar para me descrever, tamanho era o seu assombro.

— Assustadora?

Alice fez uma careta.

— Ia falar que está linda, mas sim, também está assustadora. - E isso parecia deixá-la mal humorada. - Aquele teimoso do Edward não deveria ter deixado você sozinha. Minhas visões podem ser mutáveis, porém, quase nunca falham. Se ele tivesse sido minimamente sensato sobre vocês dois, sua transformação não teria sido um evento tão traumático.

Eu ri.

— Edward tomou a sua própria decisão do que achava ser melhor. - Dei de ombros, a melancolia me atingindo em cheio, porém, não estava com humor para desabar novamente. A esperança era uma semente que lutava para germinar dentro de mim, mas eu a combatia. - Nem toda argumentação ou desastre que pudesse me atingir não iria fazê-lo mudar de ideia. - Afinal, aquela brincadeira já tinha ido longe demais.

Alice franziu o cenho.

— Ele realmente conseguiu te convencer, não é? - murmurou, parecendo estar dolorida.

— É o que acontece quando a pessoa amada termina com você no meio de uma floresta e depois desaparece sem deixar rastros. - Pois era isso que Edward tinha feito comigo sem demonstrar um pingo de remorso. Minhas lembranças humanas poderiam estar deterioradas, mas ainda lembrava desse pequeno evento que mudou o curso da minha vida de tantas maneiras, e a maioria delas foram bem desagradáveis.

— E você está com raiva dele. - Não era uma pergunta. - E com raiva de mim.

— Não muito. - murmurei.

Alice balançou a cabeça devagar.

— Ainda continua sendo uma péssima mentirosa, Bella. - Suspirou.

Cruzei os braços na esperança de conseguir aplacar a dor e não ficar com falta de ar, mas estava difícil.

— Eu esperei por aquela ligação. Esperei mesmo, todos os dias. - grunhi, lembrando dos dias em que fiquei parada ao lado do telefone da cozinha na casa de Charlie, praticamente rezando para que aquele telefone tocasse e fosse Alice do outro lado, assim como havia prometido.

Alice estendeu a mão para tocar o meu rosto.

— Mas eu liguei, Bella. Eu liguei. - Seus olhos imploravam vorazes, como se a sua vida dependesse disso.

Franzi o cenho.

— Quando?

— Duas semanas depois daquele dia. - Sua boca era uma linha fina de tão comprimido que estavam os seus lábios por causa da tensão. - Liguei por impulso. Os seus amigos quileutes estavam na sua casa nesse dia. Pensei sobre isso naquele dia em que nos falamos, depois que você me disse que Jacob tinha te salvado, então acabei teorizando que o fato deles serem lobos era a causa, que talvez eu não consiga ver o futuro de algo do qual nunca fiz parte. O seu tempo de permanência em Fork, indo a reserva regularmente, me confirmou isso. Portanto, não consegui ver quem iria atender, mas precisava tentar.

Lembrava vagamente do dia mencionado. O enterro do pai de Seth e Leah tinha ocorrido há pouco tempo, portanto, Billy e Sam haviam sugerido um pequeno programa para distrair a mente dos quileutes mais jovens, principalmente de Leah. Contra todas as possibilidades, ela havia se transformado em loba e se juntou à matilha. Foi esta transformação repentina que levou o seu pai a ter uma parada cardíaca e ficar internado. Sentia-se terrivelmente culpada e amargurada com a vida. - Não lembrava de ouvir o telefone tocar, apenas de ter que coordenar vários adolescentes do tamanho de armários para que pudessem se acomodar na pequena sala de Charlie sem esbarrar ou quebrar algo.

— Foi Charlie que atendeu. - explicou ao ver a minha expressão confusa. - Pedi para que ele passasse o telefone para você, mas disse que não.

Contraí a mandíbula, a raiva contaminando os meus sentidos.

Por quê?

— Charlie falou que você estava bem, que estava feliz e que não queria ver você se remoendo de desespero de novo. - Ela respirou fundo. - Ele me contou como você ficou por meses. Eu sabia que isso iria acontecer, mas ouvir a confirmação… Ah, Bella! Sinto muito. Sei que não sou a única pessoa que deveria estar pedindo desculpa, mas alguém tem que fazer. Você merece essa consideração. O que o meu irmão fez, o que eu fiz…

— Pode parar, tudo bem?! - Não consegui evitar que a minha voz saísse em um rosnado nada agradável enquanto pressionava a ponta dos meus dedos sobre as minhas pálpebras fechadas, tentando me acalmar. - Por que não ligou depois?

— Não queria dar falsas esperanças a você. Estava tudo tão confuso àquela altura. Nem mesmo as minhas visões eram confiáveis, por causa de toda aquela interferência. - disse, se referindo aos quileutes como “interferências”, fomentando sua teoria.

Estava a ponto de explodir de irritação.  - Charlie havia impedido que Alice falasse comigo anos atrás, com a premissa de que eu estava bem e feliz?! Ha-ha! Como ele poderia ser tão tolo ao ponto de não perceber que eu estava morrendo aos poucos, todo santo dia? Que não havia mais nenhum motivo para estar bem ou para desfrutar de uma felicidade que nunca existiu.

Era a cara de Charlie se meter na minha vida, como se eu precisasse ser cuidada, como se fosse a merda de uma inválida! Por mais grata que estivesse por toda sua paciência e assistência, ainda estava enfrentando aquele inferno sozinha e ter Jacob em minha vida só era a porcaria de um remédio paliativo para uma paciente em estado terminal. Porém, ele insistia e insistia, e me incentivava, se aproveitando da minha falta de pensamento lógico para me aproximar mais do filho do melhor amigo. Claro, isso não era unicamente culpa dele, entretanto, não poderia passar por essa sem carregar uma parcela de responsabilidade.

E, para fechar o grande combo de intromissão, havia convencido a minha melhor amiga na época de que eu estava bem e que tê-la em minha vida iria me destruir. Porém, como transformar escombros em mais escombros? Não tinha como me quebrar mais. Alice era a minha última gota de esperança, a que não me deixaria enlouquecer. Bem, eu enlouqueci, ao ponto de confirmar no discernimento de quem achava que estava fazendo um favor para mim.

Mas você poderia condená-lo?, disse aquela antiga vozinha interna que costumava conversar comigo, tentando me fazer racionalizar. Você estava colapsando. Jacob tinha demonstrado ser a melhor opção no momento para te estabilizar. Não poderia desvalidar o desespero de Charlie naquela época. Poderia? Ele mesmo está praticamente às portas da cidade - simbolicamente falando - querendo saber o que aconteceu com você e sua amiga. Poderia desvalidar isso também?

Nessas horas, tornava-me grata por ainda ter tantas partes da antiga Bella vivas e atuantes, ou eu não sei o que seria de mim.

Puxei o ar com força, fazendo os meus pulmões trabalharem. A aspiração mecânica não proporcionava um alívio, como seria quando havia sangue quente em meu corpo, mas era uma pequena atividade que ajudava a distrair a minha cabeça.

Alice esperou pacientemente até que eu estivesse totalmente recomposta, o que levou alguns minutos.

Quando abri os olhos e a encarei, ela tinha um sorriso presunçoso.

— Do que está rindo?

O sorriso se alargou.

— Todos, com exceção de Esme, achavam que você não iria ter um ataque se eu contasse o que aconteceu. Mas Jasper tem razão, você se controla muito bem. E eu sei de todas as possibilidades. - Tocou a têmpora esquerda com a ponta do dedo indicador.

Fiz uma careta.

— Eu não ia atacar você.

— Estava contando com isso. - Ela riu.

Revirei os olhos.

— Veio apenas pedir desculpas? - perguntei, de repente mal humorada de novo. Queria morder a minha língua e parar de ser ríspida de graça, mas era mais forte do que eu; era como se a Alice tivesse mesmo considerado que eu ia atacar ela.

— Bella, está tudo bem. Você é uma recém-criada. É normal que tenha picos de descontrole. - repreendeu-me, como se soubesse o que se passava na minha cabeça. - Ainda que eu tivesse que enfrentar você para me defender, jamais conseguiria me agarrar. Nem Jasper conseguiria. - Ela piscou para mim, brincalhona.

— Então está dizendo que é melhor que Jasper? Deveria dar aulas para mim e Natalie, então. - provoquei.

— Não quero atrapalhar o trabalho de ninguém. Isso acabaria com o orgulho de Jasper. E não, eu não vim apenas pedir desculpas. Quero saber como você está. - Ela pegou a minha mão, colocando em um casulo formado pelas suas próprias. - Passaram-se tantos anos. Me perguntou se ainda nos conhecemos.

— Estou presa em um castelo de pedra e em uma cidade feita do mesmo material. Pode-se chamar isso de “revivendo os tempos medievais”, mas sem a parte divertida de um passeio e sem as fantasias coloridas. - Suspirei teatralmente.  - Teria sido melhor ter ido para a Grã-Bretanha. Falam que lá é cheio desses parques temáticos para atrair turistas.

Foi a vez de Alice revirar os olhos.

— Estou falando sério, Bella.

— Eu também. Tava até vendo umas fotos no Google um dia desses. Fazem campeonatos de montaria e tudo. Achei bem divertido.

Alice estreitou os olhos para mim.

— Está tentando desviar do assunto. - Mais uma vez, não era uma pergunta.

— Só não estou no meu melhor momento para ficar me lamentando. Carlisle já teve essa minha cota por hoje.

— Não deveria se sentir envergonhada por seu sofrimento.

— Minha melancolia é tão útil aqui dentro quanto foi tentar correr para tirar Natalie desse inferno antes que fossemos mortas com os outros. - No momento em que as palavras saíram, quis engoli-las de volta. Estava correndo o risco de inserir Alice em um evento que nada tinha a ver com ela e sua família.

Alice se aproximou um passo, ainda sem soltar a minha mão.

— Eu vi os seus esforços, Bella. - Mais uma vez ela estava com uma expressão de partir o coração, como se estivesse sentindo dor e me fazendo sentir dor também, pois eu não sabia nem mesmo aplacar a minha; quem dirá a dela. - Foi muito corajosa, com a nossa Bella sempre deve ser.

Franzi o cenho.

— Isso não faz sentido, Alice! - Meu corpo formigava com o estresse. - Cinco anos! Cinco anos sem notícias de vocês. Como poderia ver? Não tínhamos mais nada em comum senão um passado desastroso. - Estava desabando de novo. O escombro virando mais escombros. A comporta parecia prestes a explodir de novo.

Alice ficou em silêncio por alguns segundos, escolhendo as suas próximas palavras.

— Lembra do que eu te disse naquele último telefonema? - perguntou em uma voz suave que me tirou um pouco do transe que era a loucura de emoções explosivas e crescentes dentro de mim.

— Algumas palavras. - confessei em um sussurro, temendo não ser delicada se tentasse falar em um tom de voz normal.

— Preciso que seja específica.

Bufei e arqueei uma sobrancelha.

— Isso é alguma espécie de terapia experimental? Porque…

— Bella. - repreendeu-me.

— Tudo bem. - grunhi. - Você disse que eu sempre seria a sua irmã.

— E? - insistiu.

— E que você me amava. - murmurei.

— Então! Aí está a sua resposta. - Ela sorriu docemente para mim. - Não é porque decidi me afastar que eu tenha deixado de me preocupar com você. Quando você quase se lançou daquele penhasco, fiquei apavorada. Por você, por Charlie e por Edward também. Ele não suportaria conviver consigo mesmo se soubesse que você havia tirado a própria vida por ele.

— Já disse, Alice, eu não estava tentando me matar. Foi apenas uma atitude impensada.

— E você acha que ele veria dessa forma? - Sua voz subiu algumas oitavas. - Acha que ele pararia para racionalizar? Eu não vejo simplesmente o futuro, mas as suas probabilidades. Se você tivesse morrido, Edward também morreria. Procuraria um jeito, imploraria a qualquer um que estivesse disposto a ter esse ato de misericórdia.

Contrai o maxilar.

— Está enganada. - Minha voz estava morta. - Ele partiu porque quis, porque havia se cansado de mim.

— Ah, pelo amor de Deus, Bella! Nem você acredita nisso. Está estampado na sua cara. Olhe só para você, como tem vivido estes últimos anos. Acha que foi diferente para ele? - Ela soltou a minha mão e agora gesticulava. Por um momento, achei que ela fosse atingir algum livro com as mãos e danificá-lo, mas não o fez. - Mamãe teve crises de choro por meses a fio achando que Edward jamais voltaria. Tivemos que acalmá-la. Ele tem se enfiado em buracos imundos em países distantes, não tem se alimentado direito. Só depois do que aconteceu, da nossa falha, é que ele voltou para casa. Ainda sim, parece um vampiro de televisão, enfiando naquele sótão e não querendo falar com ninguém. Até Rosalie parecia preocupada! - Ela riu, sem haver graça alguma em sua risada.

Se meu coração ainda batesse, ele poderia ser ouvido até por outros humanos a uma distância relativamente curta. - Alice afirmava com todas as letras que Edward tinha ficado arrasado tanto quanto eu durante todo o nosso período de separação (talvez mais, de acordo com o relato de Alice). Era a verdade da qual Natalie havia me dito mais cedo, o que a presença voluntária dos Cullen em Volterra representava, mas que eu ainda não aceitava enxergar: de que a família do Dr. Cullen e, acima de tudo, Edward, não estavam ali pelo simples senso de responsabilidade ou de culpa, mas por mim, por tudo que eu tinha sido para eles antes e para Edward, e que talvez ele ainda me amasse.

Ainda me amasse…

Eu podia sentir a esperança brotando e rompendo a terra, como uma muda despertando para a nova vida e buscando pelo sol. Dessa vez, não tentei combatê-la. Nem sabia se teria força de vontade para tal.

— Sei que precisa ouvir da boca dele para acreditar cem por cento, mas sim, Bella, isso é real. Ele nunca deixou de amar você. - cantarolou, mais uma vez, adivinhando o que estava pensando. Ou a minha cara estava deixando passar tudo, ou Alice de repente tinha virado telepata, também. - Sentia que ao seu lado ele lhe tiraria tudo que havia de bom em você e a tornaria um monstro. Ou quem sabe a mataria.

— A velha aposta. - sussurrei, sentindo-me sem forças. - Morta ou vampira. - A lembrança era como um filme muito antigo e desfocado e com muitos ruídos.

Alice assentiu.

— É o que aconteceria, mas ele não quis me ouvir. Estava determinado a fazer com que você continuasse humana.

— Mas o plano dele falhou.

— A nossa grande falha. - murmurou.

Não entendi aquela expressão e aquela frase não pareciam se encaixar para mim.

— Por que você disse “nossa falha” duas vezes?

— Eu poderia ter avisado a ele mais cedo, mas não conseguia contato. Ele não me atendia. Nas raras ocasiões, quando eu mencionava o seu nome, Edward desligava. Era muito doloroso ouvir sobre você. Tive que recorrer a Esme, mas já era tarde demais. Quando voamos… - Ela interrompeu a frase, como se o que estivesse prestes a dizer fosse um grande erro.

Não gostava disso.

— Voaram para onde, Alice? - Tinha deixado a compostura de lado.

Alice arregalou os olhos.

— Edward pediu para não falar nada a você enquanto estivessemos aqui.

— Dane-se o que o Edward pediu ou deixou de pedir. Já vimos que ele não é muito bom com decisões. - Minhas narinas estavam dilatadas, como se eu estivesse me preparando para a caça. Mas estávamos na biblioteca, não precisava daquela animosidade, porém, o meu senso de alerta havia se apoderado do meu senso de discernimento, aproveitando a ocasião para mandar ao espaço o protocolo de educação e etiqueta básica. - Para onde? - enfatizei.

Alice respirou fundo.

— Tem razão. É tolice. - Ela tentou voltar com a voz tranquila; sem sucesso. - Mas preciso que se acalme primeiro.

— Estou cansada de ter que me acalmar. - grunhi. - Para onde, Alice?

— Quando eu tive a visão sua indo para Volterra, sabia que precisávamos intervir. Mas este era um assunto que envolvia o Edward, também. Acima de qualquer um de nós, era dele que deveria partir a decisão. - As palavras saiam em um tom ansioso, rápidas como balas. - Como eu disse, ele me ignorou por semanas. E quando finalmente consegui dar o parâmetro geral a ele, tivemos que correr contra o tempo.

— Tivemos? - Minha voz saiu estrangulada. Meu corpo estava paralisado no lugar e a raiva tinha sido consumida pelo choque. Sabia o lugar onde Alice queria chegar, mas as palavras não se firmavam; ficavam dançando dentro da minha cabeça, como se eu tivesse dislexia e estivesse tentando ler pela primeira vez. E havia também o nó oco na boca do estômago, algo muito semelhante ao que os humanos descrevem como “pressão baixa”.

— Nós chegamos bem perto. Quase fomos pegos. - Ela assentiu, parecendo estar prestes a chorar. - Tive que nos tirar dali, das masmorras. Edward não queria se mover. Mas nós morreríamos, eu sei disso. Tudo ficou escuro, as linhas das possibilidades sumiram.

Uma luz se acendeu na minha cabeça. A pergunta que não poderia ser esquecida.

— O inconveniente…? - Se vampiros poderiam ficar tontos, aquela era a prova que sim. Nem uma única frase coerente eu conseguia formar.

Felizmente, Alice me entendeu.

— Edward e eu invadimos e rompemos as defesas impecáveis dos Volturi no dia de sua maior festividade. Foi um golpe e tanto no orgulho deles.

— E eles os viram.

— Aro nos viu quando saiu da cela. E de certa forma, deduziu quem éramos. Edward disse que foi por causa dos olhos, então lembrou das Denali e de Carlisle. Era um tiro no escuro. Afinal, não é sempre que há alguém invadindo os domínios deles para resgatar humanos. No mundo vampiro, o que fizemos é uma verdadeira afronta… - Alice se interrompeu, os olhos vagando no vazio. Já tinha visto aquilo antes: estava tendo uma visão. - Bella!

Porém, eu já não estava mais prestando atenção nela. A havia contornado e estava me afastando a passadas largas e rápidas. Quanto mais andava, mais os pensamentos se assentavam melhor em minha mente, permitindo-me racionalizar. Alice tentou me alcançar, mas eu era mais rápida do que ela, graças ao meu corpo jovem.

A dor da transformação é a única parte das lembranças humanas que permaneciam intactas, tamanha é a agonia infligida pelo veneno mudando o seu corpo. Já tinha sentido ela antes, quando James me atacou, e a senti por completo mais recentemente, quando cedi às ameaças de Aro. Me arrependi no momento em que as chamas começaram a me consumir, mas foi apenas algum tempo depois de já estar queimando e que minha mente clareou um pouco, pude aceitar o meu destino. Uma vida pela outra. Meu único arrependimento era Natalie.

E pensar que Edward e Alice, sozinhos, tinham chegado tão perto de nos salvar. Era uma espécie de alívio incalculável, saber que ainda era importante para eles, para ele, e que eu não havia sido esquecida, como ele me fez acreditar que aconteceria.

Ao mesmo tempo, a dor tinha dobrado, triplicado, em meu peito com as possibilidades. Alice tinha dito que os fios das suas visões tinham sumido. Que eles poderiam ser pegos. Que eles poderiam ser mortos por tentarem me ajudar. E então eu viveria como uma vampira, tendo que lidar com este tormento, esta culpa.

Era loucura! Eles tinham se arriscado demais. Eu era apenas uma humana, não valia a pena.

Jasper. Ele ficaria tão destruído quanto eu por perder a sua companheira. Talvez buscasse vingança.

Carlisle. Se Jasper ousasse enfrentar os Volturi em uma retaliação, provavelmente perderia o terceiro filho.

Esme. Ter Edward fora de casa já a afetava grandemente. Não conseguiria nem mensurar como seria para ela.

Emmett, Rosalie… Todos eles.

Eles não mereciam passar pelo mesmo que Charlie e Renee agora passavam, ou o que os pais e irmãos de Natalie enfrentavam com ausência de sua filha estabanada e amorosa.

Continuei andando pelo castelo, agora farejando. Não sabia o que estava procurando até achar. Era o cheiro de lilás e sol que eu havia gravado fortemente em minha mente no torreão enquanto estava sendo contida para não arrancar a cabeça de Aro com os meus dentes; me atingiu como um tiro, nublando mais ainda o meu discernimento. Não liguei se esbarrava em um ou outro transeunte desavisado, nem para as suas reclamações em pelo menos sete idiomas diferentes.

Estava na hora de colocar os pingos nos i’s, era o que cada nervo do meu corpo gritava, movendo os meus membros no modo automático.

Virei algumas esquinas e subi escadas, uma parte da minha mente registrando o trajeto em segundo plano. Era o terceiro andar da ala norte. Ele me ouviu chegar pois parou de falar com quem conversava. A porta da sala em que ele estava encontrava-se aberta.

Seus olhos dourados me encararam, sem desviar, finalmente.

Não diminui o passo uma única vez.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada por sempre estarem acompanhando e comentando.
Leio cada um dos comentários com muito carinho!

P. S.: próximo capítulo será POV Edward ^-^



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Depois do Crepúsculo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.