O Necessário para Viver escrita por Linesahh


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

SAHH NA ÁREA

Resolvi trazer esse "monstrinho" que tava guardado na gaveta já há uns meses. Minha primeira obra pra categoria, que mesmo meio parada, não resisti em tirar um pouco do meu tempo para escrever sobre esse tigre e emo-gótico maravilhosos

Espero que gostem ♥



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O Necessário para Viver

Por Sahh

 

Dentre todas as coisas que já ocorreram em sua vida, Akutagawa Ryūnosuke jamais imaginou que seu destino estaria selado na visão que tinha diante de seus olhos.

A coloração lusca-fusca denunciava o fim de um árduo dia de trabalho. Tons dourados e uma leve lembrança da cor violeta misturavam-se entre o azul marinho que as nuvens iam adquirindo conforme a noite caía. O Sol, distante, logo acessaria seu esconderijo, cedendo espaço à sua fiel e belamente misteriosa amante, a qual era incumbida a tarefa de iluminar as noites com sua luz esotérica e um tanto mística.

Uma suave brisa presenteou-o com um frescor agradável, criando um calafrio quando se uniu às pontas úmidas e esbranquiçadas de suas mechas laterais, tornando o leve roçar em seu queixo num contato um tanto gélido. A pele muitíssimo pálida não havia adquirido tons rosados mesmo considerando as horas periódicas que passava trabalhando embaixo da luz solar. Mas, em compensação, nunca havia se alimentado tão bem quanto naqueles últimos dois anos.

Uma tosse acometeu-o por alguns segundos, como de costume; todavia, sabia que sua saúde havia apresentado melhoras desde que saíra da cidade grande. Seus pulmões protestaram por mais um tempinho, até enxergar um copo d'água estendido rente à face. Não hesitou em apanhá-lo, sorvendo vários goles até que o desconforto passasse. A cadeira de balanço ao seu lado foi ocupada, e, ainda que não olhasse, sentiu a considerável preocupação inserida na cor roxa e âmbar que o mirava.

Atsushi Nakajima. Como sempre, alguém totalmente preocupado com a vida alheia.

Ele fez menção de abrir a boca, certamente objetivando expor a ideia que Akutagawa já sabia o que seria — e exatamente por isso voltou a fechá-la, desânimo e chateação evidentes. Afinal, ainda que contrariado, não tinha como vencer sua teimosia inabalável.

Akutagawa definitivamente não tinha interesse em receber uma visita da doutora da cidade mais próxima, uma tal de Yosano. Aquilo era apenas uma tosse crônica — sempre havia sido assim. E não seria agora que alguma descoberta ruim aconteceria. Aquele Jinko idiota sempre fazia uma tempestade num copo d'água...

Um silêncio mais confortável estendeu-se durante alguns minutos. A calma e monotonia do interior era agradável, mas lhe fizera ponderar que devia ser tarefa difícil viver sozinho. Possuía plena ciência de que se não tivesse Atsushi ao seu lado, já teria considerado deixar aquelas terras há tempos, ainda que tal perspectiva fosse algo terminantemente improvável se estivessem falando de outra época.

No fim, depois de conversas e discussões idiotas, sempre havia aquele momento em que usufruíam do silêncio e da paz que a natureza e aquela vista esplendorosa lhes proporcionava, ainda que soubessem que, na realidade, o real aproveitamento advinha de escutar um ao outro mesmo sem nenhuma palavra proferida. Achava que talvez tinha sido dessa maneira que passaram a se conhecer tão bem.

Tudo estava em paz, mas, no fundo, o morador mais recente daquele fim de mundo sentia-se torturado. Julgou que tal sensação demorou até tempo demais para chegar, considerando tudo o que já tinha feito. Quem sabe seria daquela forma que lidaria com seu carma?

A voz gentil e simplista de Atsushi, que soou de repente, desviou seus pensamentos para outros tópicos. Escutou-o comentar sobre o fato de estar bastante dolorido após horas tirando ervas daninhas das plantações, e que na manhã seguinte, teria que acordar cedo para ordenhar as vacas e comprar mais farinha.

Respondeu que essas tarefas ficariam aos próprios cuidados, e por mais que tivesse reclamado, Atsushi não conseguiu lhe fazer mudar de ideia.

— Você é um tremendo idiota — ele resmungou, mas acabou gelando com o olhar fixo e fatal que recebeu dos olhos cinza-assassinos.

— O que você disse?

— E-Eh... — Atsushi, como de costume, acovardou-se por um e segundo. A seguir, porém, invocou uma coragem que só serviu para colocar um ponto final na dúvida de Akutagawa sobre como o destruiria. — Ah, você ouviu bem. Você sabe qu— ouch!

A cadeira frágil foi virada com um chute simples e certeiro, e, em um instante, Jinko jazia no chão, rosto afundado no piso de madeira e lábios esmagados, os quais traduziram a dor sentida através de gemidos lamentosos. Akutagawa não desperdiçou mais que um segundo analisando o cenário da conclusão de sua raiva já evaporada; endireitou a postura, cruzou as pernas e levou uma mão à boca. A tosse dessa vez foi falsa.

Logicamente a discussão a seguir foi bastante estressante, e só foi finalizada quando decidiu ignorar e deixar o pateta do Jinko falando sozinho — o que, no caso, tratava-se de seguir apreciando a vista como se ele não estivesse ali. Atsushi desapareceu para dentro da casa por algumas horas; entretanto, sendo alguém que esquecia desavenças cedo demais, regressou com uma travessa de chás e bolos.

Observou-o rapidamente, capturando o semblante pirracento e as sobrancelhas franzidas. Aquela atitude infantil costumava desaparecer bem rápido, mas ainda era engraçado o contraste em vê-la unida à outras de índole atenciosa, como oferecer um lanche depois de uma briga. Desde que se conheceram, ele nunca mudou aquele jeito de ser.

E talvez, fosse isso que estivesse, atualmente, atormentando-o.

As palavras saíram sem que Ryūnosuke pudesse impedi-las, mas, de toda forma, já tinha seu rosto direcionado para a xícara fumegante, a qual mexia o líquido com uma pequena colher, reservado:

— Me diz, Jinko — soou desinteressado, e ao longe, pôde ser escutado um relinchar de cavalo. — O que pensa de mim?

Sentiu-o pousar os olhos em si, surpresos e curiosos, mas nem por isso retribuiu-o. Passou-se um longo minuto até que Atsushi, enfim, abriu a boca:

— ... Eu não entendi.

Revirou os olhos. Sim, claro que ele não entendeu. Ele não passava de um Jinko lerdo e burro, como esquecer-se disso?

— Deixe pra lá.

— Oras, claro que não — Atsushi retrucou, interpretando-o com aqueles olhos brilhantes e desconfiados. — Vamos, você que começou com isso, então me diz. Como assim, "o que eu penso de você"?...

— Como sempre, você torna o fácil em algo acima do complicado — o moreno soltou um breve suspiro, mas não estava surpreso. Era engraçado como às vezes achava Atsushi a imprevisibilidade em pessoa e, de uma hora para outra, tinha de repensar completamente tal julgamento.

De toda forma, havia mentido na parte de afirmar que o assunto levantado lhe era perfeitamente "descomplicado". E a coragem reunida para continuar tratou-se de um perfeito exemplo de sua desonestidade.

— Eu... estava perguntando se é certo alguém como eu estar vivendo assim.

Dessa vez, Atsushi pareceu acompanhar seu raciocínio.

— Akutagawa, você... — uma parcela de admiração invadiu seu rosto por um momento, mas ele tratou de se recompor, pigarreando. Jinko certamente daria um péssimo ator. — É claro que qualquer um pode viver, e... seguir em frente.

— Não me refiro a qualquer um, falo de mim — finalmente encarou-o, sério. As mãos, agora dentro dos bolsos do casaco, cerraram.

A queda do clima fez com que Atsushi fosse incapaz de dizer alguma coisa. Estava óbvio que os pensamentos giravam com pressa por sua cabeça de vento, mas, daquela vez, até Akutagawa notou que ele não tinha as palavras certas.

E isso o irritou.

— Como eu disse, esquece — voltou-se novamente a paisagem, pegando o chá que anteriormente tinha repousado sob o pirex. Sabia que não era culpa dele, mas não pôde frear a decepção que invadiu seu peito. Como se Jinko fosse uma fraude.

Entretanto, o único que a vida toda não agiu com verdadeira honestidade era Ryūnosuke. Só foi descobrir o real significado daquela palavra recentemente, na verdade — e através daquele rapaz de atos e palavras amáveis e jeito curioso, ainda que estabanado.

Atsushi não respondeu mais nada, olhos púrpuros e dourados apresentando inconfundível melancolia. Afinal, Akutagawa, mais do que ninguém, tinha ciência de que ele se tratava do único que atualmente sabia a verdade. Sua verdade.

Atsushi sabia que ele era um ex-mafioso da cidade grande. Alguém que tinha a ficha atolada até o limite de crimes e sujeiras, que tinha os ombros cansados do peso de tantas mortes para carregar.

Que havia se tratado do monstro de muitas pessoas antes de estas terem o fio de suas vidas partido para sempre.

Akutagawa lembrava-se perfeitamente que fora o acúmulo de todos esses tópicos a impulsioná-lo a abandonar aquela vida. Quando saiu da máfia, foi informado que seria necessário desaparecer por um tempo até que sua ficha atolada na lama fosse purificada o suficiente para que pudesse viver sem o cansaço e estresse da perseguição, e assim o fez. Ponderou que a melhor opção seria sumir para algum lugar remoto, longe da agitação da cidade, e achou que havia encontrado o lugar perfeito.

Era uma terra do interior, montanhosa e bastante atrasada em questões tecnológicas. Em compensação, um verdadeiro paraíso na terra. Diversos sítios e fazendas calmas e acolhedoras constavam na lista de atrativos, além de um centro comercial vantajoso para se fazer troca de mercadorias, bem como comprar artefatos que algumas lojas adquiriam de fora.

Na verdade, achou que não era capaz de haver um lugar daqueles no século atual, mas realmente existia.

E seria lá que aguardaria a "limpeza" de sua ficha.

A princípio, achou que tudo seria bem fácil. Tinha dinheiro o suficiente, pegou uma carona e, já perto do campo, hospedou-se numa pensão barata. Notou que só havia ele e mais um homem hospedado ali, além do dono do estabelecimento e dois empregados. Imaginou que não devia haver muitos turistas...

De toda forma, seus planos começaram a desandar assim que foi atacado no meio da noite e, para sua surpresa, tratava-se do mesmo hóspede que havia chegado um pouco antes de si e que estava ocupando o quarto ao lado.

No meio segundo em que levou para virar o jogo, sufocando-o na cama com um travesseiro, sacou a pistola, prensou-a contra o tecido felpudo e atirou. O silenciador fez seu trabalho com maestria, mas isso não o impediu de enfurecer-se. Enquanto recolhia seus pertences e saía na madrugada, especulou que o homem que o confrontara devia ser daquela região, afinal, parecia ter intimidade com o dono jovem e baixinho da pensão; além disso, a surpresa que ele esboçou ao ver um "forasteiro" foi evidente, e certamente especulou que Akutagawa estivesse cheio da grana.

Bem, ele não estava de todo errado, mas por conta disso, o ex-mafioso tinha mais um crime para lhe aborrecer. E justo quando decidiu o lugar perfeito para passar os próximos meses...

De toda forma, uma tempestade horrível tomou conta dos céus, e não sabia como iria embora dali. A pé seria impossível. Milhas e mais milhas de lama e descidas e subidas perigosas o esperavam. E, como pensou, não passava um único carro na avenida antiga próxima à hospedaria.

O jeito seria se esconder na charrete da cobertura dos fundos e deixar ser levado. Não a roubaria, pois chamaria atenção demais, e sequer saberia para onde seguir, se o fizesse. Se arriscar numa montaria naquela escuridão enevoada e chuvosa também era o mesmo que pedir para ser atingido por um raio ou sofrer um acidente nada amistoso.

Assim, fez como planejado, ainda que não gostasse nada de sua atual conjuntura. De fato, não era sempre que se via sem opções. Ao menos, sabia que a charrete não pertencia ao morto da pensão, pois ouviu quando ele comentou sobre ter chegado ali de carona.

Na verdade, sua sorte acabou por ser grande: mais cedo, enquanto bebia um vinho bastante saboroso até — preferia chá, mas não podia esperar muito de um bar no fim do mundo, além de que vinhos pareciam ser a especialidade do lugar —, escutou quanto o baixinho ranzinza e de cabelos cor-abóbora avisou ao empregado que o carregamento devia ser feito bem cedo.

E, no caso, cedo para aquelas pessoas devia significar umas duas e meia da manhã.

Os legumes e frutas amontoados por debaixo do tecido da carroça devia ser o carregamento mencionado, e isso foi o suficiente para julgar aquela sua escápula de fuga ideal. Não dava a mínima se, fazendo isso, adentraria mais no ninho que deveria evitar — visto a morte por sua autoria —, mas quantas enrascadas, afinal, já não tinha lidado perfeitamente bem?

Como previsto, bastou uma espera de meia-hora, e logo o funcionário medroso tomava a direção do cavalo, mal imaginando que, no carregamento, havia um criminoso. Fora impossível segurar a tosse algumas vezes, mas sabia que o som da chuva o salvaria.

Felizmente, a mercadoria estava muito bem embalada. Presumiu que o dono da hospedaria investia nas plantações das fazendas próximas para trocar no comércio por carnes e bebidas, e estipulou que o "ponto" onde deveria descer tinha que ser tudo, menos no destino daquele carregamento.

De tal modo, utilizou daquele meio de transporte até a aurora do dia seguinte cair, e saltou sem que o jovem sonolento o percebesse. O comércio ficava mesmo longe, afinal... mas a paisagem que viu também não representou uma vasta possibilidade para sua situação.

Estava escuro, muito escuro, mas ao menos não chovia como na noite passada. Considerando que o empregado deixou a hospedaria com o único meio de transporte acessível, ainda tinha um tempo até que o homicídio fosse espalhado por aí. Afinal, o dono da pensão não poderia fazer muita coisa além de surtar até que seu empregado enfim retornasse.

Tinha um dia. Dois, no máximo. O suficiente para encontrar comida e uma rota de volta à cidade mais próxima.

Suspirou, e as tosses ficaram um pouco mais fortes. Sabia que teria problemas por ter pegado chuva e, agora, sua principal preocupação era arranjar um lugar em que pudesse passar a noite sem que mais uma cena de crime precisasse ser criada. O celular informava uma da manhã, e o fato de ter um aparelho daqueles num local que remetia ao século XIX era quase cômico — assim como era ainda mais cômico pensar que, se ainda estivesse na máfia, bastaria um telefonema para que um helicóptero fosse requisitado na região e o assassínio de todas as testemunhas fosse solicitado.

Mas agora estava sozinho. Totalmente por conta própria.

E sorriu pelo desafio que tinha à frente.

Pôs-se, então, a caminhar. Tudo o que viu por um bom tempo foi uma vasta extensão de terras e talvez a sombra de alguns pomares próximos — a escuridão definitivamente não estava ajudando. Havia pulado exatamente nas regiões tranquilas e de propriedades bastante afastadas uma das outras, como ranchos, sítios e algumas fazendas, mas até agora não havia encontrado nenhuma dessas três opções para tentar se abrigar.

No fim, teve de andar bastante para finalmente se deparar com um baixo cercado e, ao erguer a visão, avistou um enorme casarão e um celeiro de ampla estrutura.

Perfeito para alguém que procurava descansar por algumas horas.

Adentrou a construção ao lado da casa silenciosa, avistando feno e mais feno para todo o lado. Havia alguns cavalos adormecidos também, e refletiu que seria muita falta de sorte se eles acordassem. Felizmente, tratava-se de alguém silencioso e ágil o suficiente para, por muito tempo, ter executado missões de infiltração — seguidas de assassinatos.

Em todo caso, aquela não era nenhuma missão de risco incalculável. Só precisava descansar um pouco e, antes de amanhecer, daria o fora. Afinal, não precisava ser um gênio para saber que tinha invadido uma fazenda de uma família grande e ingênua, e que antes do sol despontar, já estariam todos cumprindo com seus deveres.

Entretanto, como tudo parecia estar indo contra seus planos, não só dormiu demais, como, também, seus sentidos foram despertados justamente pela presença de alguém no celeiro.

Não hesitou. Camuflado perto de um montante de feno, ainda deitado, bastou que seus ouvidos captassem os passos que passaram ao lado para que seu corpo se movesse no automático. Com uma rasteira perfeitamente calculada, um ofego surpreso, seguido do som alto de um corpo despencando ao chão, foi escutado.

Num instante, Akutagawa jazia postado sobre o azarado, o cano da arma afundado na bochecha alva.

No fim, não passava de um rapaz. Estatura magra e esguia, altura normal... não representava nenhuma ameaça relevante, especialmente pelo fato de ter apagado total com a queda brusca.

Ergueu-se, retirando um pouco do feno de seu corpo e buscando desfazer os amassados no sobretudo — no fim, sempre seria alguém de classe. Guardou também a arma e, pela abertura do celeiro, enxergou o casarão. Será que viria mais alguém?... O pai ou irmão do rapaz desmaiado, talvez?

Julgou que, se tivesse que vir alguém, já teria acontecido, e então uma ideia surgiu.

Não faria mal checar a casa. Ainda precisava arranjar comida, e não era como se precisasse se preocupar com algum flagrante. Fazendeiros podiam andar armados, mas duvidava que uma espingarda fosse mais rápida e precisa que sua habilidade com pistolas.

Acabou que tudo o que encontrou foi um lar totalmente deserto. Checou tudo — cada cômodo, corredor e até os armazéns. Serviu-se de alguns brioches no caminho, e sentiu-se intrigado. Aquele rapaz era o único a habitar aquela residência?

Rá, mas apostava que ele não trabalhava sozinho, e isso despertou um certo alerta em seu espírito já acostumado com a vigilância. Desejava pegar pelo menos uma bolsa de mantimentos, mas isso seria complicado se os colegas de trabalho do desacordado o vissem naquele estado lá no celeiro.

E pior que lá seria o primeiro lugar que eles veriam...

Formulou, então, um plano para ganhar tempo. Regressou ao celeiro e, após checar os batimentos do desfalecido — ele parecia tão frágil e patético que Akutagawa não se surpreenderia que tivesse morrido —, pegou-o nos braços e, com certa dificuldade, levou-o ao casarão. Quando o colocou sobre a cama que acreditou tratar-se do cômodo certo, sentiu-se mais satisfeito.

Ótimo. Agora, se os colegas daquele jovem chegassem e vissem o celeiro vazio, julgariam que o dono da casa ainda não estava acordado e iriam embora. Em tese, tinha um tempinho para ajeitar um pouco daquela situação que nem em mil vidas teria imaginado que passaria algum dia.

Como de costume, agiu num misto de rapidez e despreocupação. Podia se considerar um rapaz atento, mas não era como se fosse ser pego. Desde a época da máfia era assim. Remexeu o guarda-roupa do guri da franja torta, e após apanhar alguns casacos — ao menos, eles tinham constituições parecidas, logo, serviram bem —, desceu para a cozinha e encheu uma mochila de pão, queijo e uvas. Pegou também uma garrafa de vinho para poder espantar o frio na viagem, e não soube por que, mas o simples ato de encará-la deixou-o meio quente.

Com tudo pronto, foi até a sala principal. Não tinha parado para analisar bem, mas todos os cômodos e mobílias estavam em ótimo estado considerando que, por fora, aquela moradia remetia a um simples casarão antigo. A prataria também estava excelente... aquele pirralho cuidava de tudo sozinho?

"O pirralho!". Como um aviso, o pensamento soou no exato instante em que puxou a arma, se virou e atirou.

Como previsto, o barulho do tombo foi alto, mas sabia que o garoto havia caído pelo susto; a bala passou de raspão, exatamente o que objetivou com o disparo.

De fato, tratava-se do rapaz anteriormente desmaiado, e admirou-se com o fato de ele ter acordado antes do estipulado.

"Péssimo erro ter decido...", aproximou-se dele, afastando a mesa pequena que os separava com um chute. O jovem estava encolhido no chão, costas contra o sofá e semblante paralisado. Estava óbvio que congelou frente a imagem de um desconhecido armado.

Akutagawa ergueu a arma mais uma vez, a mira exatamente no rosto que já constava com um leve corte do tiro anterior.

Bastou tal gesto para que o rapaz de mechas alvas levantasse os braços em rendição.

— Espera, es-espera! S-Se é dinheiro o que quer, eu mostro onde fica. Por favor, não me machuque!

Com a rogação, Akutagawa crispou os olhos.

— Não estou atrás de dinheiro.

A informação não pareceu ser bem-vinda para o jovem fazendeiro. Seus olhos, de uma estranha mistura entre violeta e dourado, inundaram num brilho lacrimoso e, pateticamente, ele afundou as mãos e a cabeça no chão e pôs-se a implorar pela vida.

Só com aquilo, Akutagawa sentiu-se tentado a disparar uma bala na testa dele. Entretanto, encontrava-se um pouco confuso. Devia matá-lo?

Não... isso só lhe traria mais problemas. Na realidade, sua mente começou a trilhar um esquema que poderia ser vantajoso. Um tanto arriscado, mas vantajoso.

Aproximou-se um passo.

— Ei, Jinko — o rapaz ergueu rapidamente a cabeça com o chamado, e Akutagawa julgou o apelido de última hora como totalmente coeso. Algo naqueles olhos lembrou-lhe um tigre.

De toda forma, continuou, postura e voz ordenantes:

— Alguém morreu na hospedaria perto da avenida, há duas noites. Vá até o comércio e descubra o que estão falando sobre isso.

O garoto piscou, surpresa invadindo suas feições assustadas.

— O comércio?...

Sem um pingo de paciência e clemência, estreitou seus olhos tempestuosos. Não estava para brincadeira.

— Eu tenho um comparsa por aqui — soltou a mentira sem o menor pudor. — Um que posso entrar em contato a qualquer momento — mostrou a ele o celular tirado do bolso; uma perfeita evidência para fazê-lo compreender que estava sem saída. — E acredite. Se me entregar, falar qualquer coisa sobre mim, que estou aqui... considere-se com os dias contados. Posso facilmente mandar matá-lo.

Tais palavras foram o suficiente para fazer o fazendeiro se apressar e apanhar o cavalo mais veloz à disposição, e disparou rumo à missão imposta. Akutagawa ainda fez questão de informá-lo que aguardaria seu regresso exatamente ali, então que voltasse rápido.

Observando a partida dele pela janela, só fez soltar um longo suspiro. No fim, era um bom plano. Precisava saber se as pessoas já tinham alguma pista de seu paradeiro, e com essa informação, seria capaz de montar o melhor trajeto para uma retirada em segurança daquele fim de mundo. Felizmente, não tinha mostrado seu rosto para ninguém da hospedaria. O máximo que deviam saber era que se tratava de alguém de fora.

... O que não tornava sua situação um total consolo.

Suspirou. Admitiu que apostar naquele garoto para obter informações foi a melhor escolha no momento.

Algumas horas mais tarde, bastou escutar o som de algo que não fosse galinhas cacarejando ou vacas mugindo para que soubesse que o rapaz tinha voltado. Naquele meio tempo, havia permanecido na sala, acomodado no sofá e, a cada segundo, sentia-se mais estressado. Aquele Jinko realmente tinha demorado, mas, ao menos, agora tinha uma vaga noção da distância que cortava o comércio daquela fazenda.

No fim, o jovem avisou, temeroso, que não havia escutado nada sobre alguém ter morrido na hospedaria, e a notícia lhe agradou. Seu raciocínio de fato provou-se certo — o dono da pensão não pôde fazer muita coisa sem uma montaria além de esperar seu empregado retornar, o que, àquela altura, já teria acontecido.

Agora, tinha no máximo um dia inteiro para escapar, e aquele era um bom momento. Entretanto...

Que indisposição absurda era aquela que sentia?

— Er... você está bem? — Jinko perguntou, cauteloso, e isso lhe irritou bastante. Pelo visto, seu mal-estar era visível até mesmo aos olhos alheios, mas talvez o ato de enxugar a testa sucessivamente com paninhos da prataria dissesse muita coisa.

— Cale a boca — mandou, e o fato de sua voz ter saído com uma nota de dificuldade só serviu para se zangar ainda mais. — Diga ou tente qualquer coisa estúpida e atiro em você.

O jovem fazendeiro fez uma careta. Akutagawa já havia percebido que ele devia ser do tipo medroso/imbecil, mas, no momento, ele não parecia estar com tanto medo se comparado à mais cedo.

— Escuta... — ele começou, sem importar-se de estar desafiando a própria morte ao abrir a boca sem permissão. — E-Eu... eu acho que ninguém morreu, você deve ter se confundido. Então, pode me liberar?

Akutagawa crispou os olhos, o suficiente para fazer o jovem desviar e disfarçar. Um breve silêncio abateu o recinto, e aproveitou para pensar em sua péssima situação.

Mas, por incrível que pareça, o simples ato de raciocinar estava bastante complicado, então foi inútil. Teria o rapaz envenenado algum dos pãezinhos da cozinha sem ele perceber?

Impossível. Ele não havia se aproximado da cozinha desde cedo, pelo motivo de ter sido obrigado a ir ao comércio. No fim, Jinko realmente retornou com notícias vantajosas para sua situação...

Mas, com aquele incômodo e moleza em cada um de seus membros, sabia que não conseguiria dar um passo a lugar algum.

Por isso, limitou-se a ofertar uma única resposta às preocupações daquele pateta, e teve ciência de que, com ela, começaria a trilhar, aborrecidamente, um plano que se tratava do "caminho mais demorado."

— Amanhã as notícias se espalharão, Jinko — as palavras saíram com uma pitada de arrogância em meio ao cansaço em pronunciá-las, e julgou que definitivamente precisava descansar. — ... E verá que não estou mentindo.

Sua previsão acabou por ser certeira no dia seguinte, quando Jinko regressou do comércio cheio de novidades para contar.

Ao que parecia, o infeliz que Akutagawa tinha matado era bastante conhecido nas redondezas, pois estava sempre zanzando para todo o lado e socializando com todo mundo. Infelizmente, as procuras pelo criminoso de tal crime hediondo estavam bastante acirradas, visto que o jovem de nome Mark Twain tinha relações com as famílias ricas e influentes da região.

— Americanos? — indagou àquele Jinko estúpido, buscando transpassar a postura de alguém sério e intimidador mesmo debaixo de lençóis quentinhos. Literalmente não possuía forças para sair dali.

— É, são algumas das famílias ricas que ficam mais a leste... — Jinko elucidou, mãos nas costas e olhos atentos circundando o suor crescente nas regiões da testa e pescoço de seu "convidado". A camisa branca também parecia úmida... estava óbvio que Akutagawa transpirava, mas depois do corte grosseiro que ele recebeu quando ofereceu ajuda, o rapaz preferiu ficar quieto. — Ele basicamente era um deles, e... puxa, não acredito que você o matou! — arregalou os olhos, impressionado.

Akutagawa desviou, tossindo.

— Ele tentou roubar meu dinheiro. Duvido que fosse alguém decente.

— Hã... mas eu não falei que ele era — o fazendeiro decidiu se explicar. — Quer dizer... ele já surrupiou algumas galinhas minhas, mas isso porque estava passando fome. A família dele acabou falindo há alguns anos.

O pesar na voz dele foi bastante explícito, e isso só serviu para impacientar ainda mais Akutagawa, que mandou-o desaparecer dali.

Agora, sozinho, respiração curta e desconforto em cada região do corpo, amaldiçoava terminantemente a chuva que o havia deixado doente.

Pelo visto, sua situação não estava boa. Por a vítima ter relações com os outros americanos, seus empregados estavam todos atrás do assassino. Havia sido muito sortudo de matar justamente o tipo de pessoa que não devia matar naquelas terras...

O jeito seria esperar, e assim o fez durante alguns dias.

Atsushi Nakajima — mal lembrava-se quando passou a ter conhecimento do nome daquele rapaz irritante, mas, de toda forma, continuou a utilizar o apelido "Jinko" —, por incrível que pareça, jamais deu a entender que o trairia ou algo assim. Nas duas semanas que se passaram, ele continuou com a própria rotina normalmente, unida à obrigação de visitar o comércio para obter informações de como a procura por seu visitante estava indo e, totalmente intrometido, passou a cuidar de Akutagawa, que, no fim, realmente tinha contraído uma gripe bem feia.

Atsushi fez-lhe canjas de galinha e compressas para diminuir sua febre e, com raiva da própria vulnerabilidade e talvez por conta de seu orgulho ferido, Ryūnosuke constantemente fazia questão de lembrá-lo do destino que teria caso o delatasse, o que devia ter funcionado. Um pobre rapaz da roça devia manter na mente que caras da cidade eram capazes de qualquer coisa.

Após mais alguns dias acamado, em que tudo o que fazia era dormir, ler alguns livros que mandava Jinko trazer e receber visitas do próprio, que checava sua saúde e oferecia as refeições do dia, finalmente Akutagawa estava novo em folha, e melhor: pelo que Jinko tinha informado, as buscas por sua pessoa, por terem sido fracassadas, culminou na decisão dos americanos em deixar o assunto para lá.

Isso era tudo o que precisava saber para "fazer as malas" e bater em retirada. No entanto, Jinko interceptou seu caminho quando estava em frente ao armazém de queijos e compotas, e levou um tempo de intensa discussão até suas palavras adentrarem a cabeça do criminoso:

— Você foi o único forasteiro que entrou nessas terras desde o incidente. Eles podem ter desistido de procurá-lo, mas as recomendações são claras: qualquer pessoa suspeita que não for reconhecida pelos moradores da região, ou que estiver com o rosto coberto, será delatada e perseguida.

A expressão azeda de Akutagawa pareceu deixá-lo um tanto tenso, mas ele permaneceu firme no próprio raciocínio. Após alguns segundos em silêncio, os olhos cinzentos estreitaram em direção aquele rapaz estúpido, e a pergunta que saiu de seus lábios foi carregada de malícia e desagrado:

— E o que sugere, então, Jinko?

Sabia muito bem as providências a serem tomadas considerando as informações coletadas, mas queria ouvi-las dele. Desejava analisar, com os próprios olhos, se Atsushi realmente estava sério sobre a decisão que tomaria.

E, no fim, ele realmente estava.

— Espere a poeira baixar. Fique aqui.

Patético. Mas — admitia — querendo ou não, havia um pouco de coragem envolvida.

Sendo assim, aceitou a ideia. Ignorou a surpresa que encobriu aqueles olhos que, naquela tarde, constavam com uma coloração mais amarela que lilás. De fato, aquela era uma condição visual que jamais tinha visto na vida...

Em todo caso, aguardaria sem reclamar. Afinal, não era como se estivesse com pressa ou algo semelhante. Em tese, seu objetivo inicial sempre foi arrumar um lugar onde pudesse relaxar enquanto esperava a situação de sua ficha ser amenizada, e, por pura falta de sorte, sua primeira opção acabou totalmente arruinada pela interferência do tal americano na pensão.

Com a decisão tomada, sua rotina não sofreu grandes alterações se comparado às últimas duas semanas. Ainda não podia sair, considerando que existia o risco de os vizinhos enxeridos de Jinko lhe verem. Não reclamava daquela espécie de "confinamento" — ao menos, de vez em quando, conseguia aproveitar o frescor da noite relaxando na varanda dos fundos.

Quanto ao Jinko, confessava que ele era até bem esforçado. De fato, ele era o único dono daquele terreno imenso, e cuidava da casa, dos animais e das plantações sozinho. Visto que era um só, não necessitava de uma penca de animais e, pelo que entendeu observando-o em sua rotina de trabalho, sua criação de morangos era um sucesso no comércio, rendendo-lhe a grana que precisava para viver confortavelmente.

Por sinal, estranhava o quão despreocupado ele parecia estar considerando que abrigava um sujeito que matou um conhecido de infância. Mais impressionante ainda: Jinko parecia gostar do fato de ter uma companhia, ainda que Akutagawa não o ajudasse em praticamente nada. Nem conhecimentos culinários ele possuía, tirando a preparação de chás — concluiu que a grande variedade de ervas e grãos era, de longe, a única virtude existente em Jinko.

Em verdade, os períodos em que mais usufruía da calma e silêncio do casarão era durante as manhãs e um pouco das tardes. Atsushi costumava acordar às cinco da matina, deixava o café pronto e ia cuidar de suas devidas obrigações, e só regressava horas depois para preparar o almoço. Após isso, ele desaparecia novamente para tomar conta das plantações, e à tardinha, já estava de volta, macacão e botas abarrotados de lama e rosto repleto de exaustão. Entretanto, desconfiava-se que ele tinha energia limitada, visto que, após se banhar, ele se enfiava na cozinha e lá ficava, assando inúmeros bolos, tortas e biscoitos — sem falar que ainda preparava o jantar.

Observando tudo isso, Akutagawa só conseguia indagar-se como aquele garoto continuava a ser tão magro...

Bem, Jinko realmente alcançava um nível de imprevisibilidade admirável, mas não significava que isso fosse algo bom. Podiam estar vivendo juntos, mas não era por isso que tinha interesse em dar a ele alguma confiança ou ser um "amiguinho". A última pessoa com quem teve uma relação que se encaminhou para algo parecido terminou morta junto dos comparsas de uma organização inimiga da máfia.

Uma traidora, no fim.

Não que ainda estivesse certo de que uma hora Atsushi lhe entregaria. Tinha certeza de que ele já o teria feito na primeira oportunidade, e ainda que fosse alguém tremendamente chato e irritante e não conversassem sobre quase nada, confessava que ele se tratava de um bom parceiro de jogos de cartas e tabuleiros.

Todavia, era exatamente por isso que não poderia baixar sua guarda, e tratou de refrescar a memória inepta daquele Jinko em uma tarde — ocasião em que estranhou vê-lo se preparar para sair, sendo que já tinha completado as tarefas diárias.

Sem cerimônias, interrogou-o, e foi como se uma cantiga de mau-gosto ressoasse por seus ouvidos ao ouvir a resposta:

— Meus vizinhos têm me convidado para tomar chá há semanas, e pensei em ir vê-los hoje — ele falou, simplista; entretanto, a sombra interrogativa prevaleceu em suas feições apuradas e insontes.

E Akutagawa, mais do que nunca, detestava quando a ingenuidade inundava aquele rosto.

— E quem disse que você vai? — retrucou, visando expor uma posição irrevogável de uma vez. — Que piada... como vou saber se não está indo lá pra falar de mim?

Sua desconfiança definitivamente o pegou de surpresa, e o leve desconforto e decepção captados nos olhos brilhantes revelou-lhe que havia escolhido a hora certa para evocar a cognição de que não — não eram amigos, colegas ou até mesmo conhecidos, e que, por isso, a semeação de toda e qualquer confiança era algo a ser totalmente desprezado.

Pois não eram nada.

Atsushi, instantaneamente, assumiu uma postura vacilante.

— Eu achei... achei que já tivesse provado mais que o suficiente que não é preciso desconfiar de mim, poxa...

— Mas eu desconfio, Jinko. Desconfio muito — frisou, e sua voz adquiriu notas cada vez mais ameaçadoras conforme se aproximava e segurava o cordão do chapéu de palha que ele tinha amarrado em volta do pescoço. Os olhos, sólidos e estáticos, exalavam a promessa de uma cominação na qual não se dava para contrariar. — E continuará assim até o dia da minha partida. Fui claro?

Após isso, Atsushi não pronunciou nenhuma palavra até a hora de se recolherem. Se não o conhecesse, apostaria que ele estava chateado, mas o que se passava naquela cabeça oca, afinal? Não estava ali tirando férias, e não era culpa sua o Jinko estúpido ser louco o bastante para lhe oferecer abrigo. No fim, só não fora embora por conta da recomendação que ele decidiu evocar. Poderia muito bem ter despistado qualquer um que tentasse lhe perseguir, não necessitava de nenhuma preocupação supérflua como aquela.

Dois meses se passaram, e após os avisos de Jinko sobre não haver mais ninguém comentando sobre o caso do "forasteiro assassino", Akutagawa julgou que finalmente o momento de seguir seu caminho havia chegado.

Achou que ficaria aliviado, mas, na verdade, sentiu-se normal como sempre, como se somente lidasse com mais um acontecimento corriqueiro em sua vida. Em tese, não tinha como tratar-se de nada diferente disso.

Na véspera de sua partida, notou uma certa tensão circundando o tonto do Jinko. Parecia que ele queria falar uma ou muitas coisas, mas sempre perdia a coragem quando o olhar interrogativo de Akutagawa entrava em cena.

De toda forma, ficou surpreso quando, na manhã seguinte, Jinko acompanhou-o no café pela primeira vez, e foi seguidamente informado sobre sua decisão de ter tirado uma folga do trabalho — no fim, Atsushi era seu próprio "patrão". Akutagawa nada comentou, e passaram um dia particularmente tranquilo e sem desavenças. Jogaram todos os jogos da casa em silêncio, comeram em silêncio, leram em silêncio, apreciaram o silêncio do próprio silêncio. Akutagawa pensou que nunca tinha gostado tanto dele quanto naquelas últimas vinte quatro horas.

À tarde, mais uma vez o jovem fazendeiro ocupou-se na preparação de doces e compotas, entretanto, a quantidade de iguarias foi tamanha que chegou a pensar que ele havia chamado a vizinhança toda para um lanche vespertino. Talvez, a enfim partida de seu "inquilino" pedia uma grande festa de comemoração, no fim das contas.

Contradizendo seus achismos, acabou que todas as gostosuras preparadas foram embrulhadas e guardadas em uma bolsa para que levasse na viagem, e aquele Jinko até mesmo tinha lhe separado algumas mudas de roupas. Caipiras, mas, ainda assim, roupas limpas e confortáveis.

Já de noite, Akutagawa, bem agasalhado e cruzando a porta de entrada, equilibrava intermináveis bolsas nos braços enquanto era seguido por um Atsushi preocupadíssimo e ofertante de mil e uma recomendações sobre os perigos que ele poderia encontrar no caminho e como evitá-los, assim como as melhores e mais seguras rotas para chegar na cidade mais próxima etc.

Retirou tudo o que cogitou no dia anterior. Era terminantemente impossível nutrir alguma simpatia por Atsushi Nakajima.

E, infelizmente, bastou dar os primeiros passos rumo à liberdade para que aquele Jinko estúpido finalmente proferisse as palavras que, notou, ele tinha segurado por todo aquele tempo:

— Não vá!... Fique... fique aqui. Comigo.

De costas, Akutagawa franziu o cenho. Antes que o turbilhão em sua mente aumentasse a nível que, pela primeira vez, teria um impasse a lidar — e justamente por causa daquele Jinko —, fechou os olhos, relaxou cada um de seus músculos faciais e, calmo e centrado, virou-se e encarou aquele rapaz de vontades tão... estranhas.

— E por que eu faria isso? — a pergunta saiu impassível, assim como seu dono.

Atsushi, como era de se esperar, hesitou. Era engraçado como ele sempre tinha receio de se pronunciar após Akutagawa destruir sua linha de raciocínio com sua aura glacial, mas, mesmo assim, ele deu seguimento a própria lógica:

— Você... não tem para onde ir. Eu percebi isso. Para ter saído da cidade a fim de se fixar num lugar como esse, sua intenção devia ser a de se esconder ou encontrar um lugar para ficar sossegado, o que acho difícil vindo de alguém que matou um homem quando poderia simplesmente tê-lo machucado. Você... hã, também anda armado — engoliu em seco. — Mas não acho que tenha matado Mark por capricho, e sim, que seus reflexos somente foram automáticos demais. Só penso assim porque ainda estou vivo — a cor púrpura de seus olhos sofreu um lampejo mais determinado. — E, de toda forma, seus planos de ficar aqui foram atrapalhados pelo crime que cometeu, e por isso agora quer ir embora. Entretanto — ele ergueu o queixo, como que para invocar mais firmeza. — Eu... você pode ficar aqui. Eu deixo.

Uma brisa fria e violenta balançou as mechas cinzas e pretas, simultaneamente, como se sua potência houvesse sido alimentada pelas palavras firmes e precisas soltas no ar. A princípio, Akutagawa refletiu sobre diversas respostas que poderia conceder àquele rapaz que, agora, definitivamente considerava um louco.

Entretanto, a única indagação capaz de traduzir sua desconexidade atual foi:

— Não está com medo de mim?

Atsushi, pura e simplesmente, sem hesitar, negou com a cabeça. Provou, ali, que realmente não estava sob efeito de nenhuma substância alucinante.

E Akutagawa creditou tal informação como sendo mais que o suficiente.

▪️▪️▪️

O plano de Atsushi era mirabolante e trabalhoso, confessava, mas não era como se Akutagawa pudesse exigir muito. E, se bem executado, atingiriam exatamente a meta a ser almejada.

No fim das contas, Atsushi seria responsável por colocar a maior parte do plano em prática. De acordo com seu raciocínio, para Akutagawa viver ali e se tornar um morador público e legítimo, precisaria de um álibi para que não o vissem como o "forasteiro assassino".

— Para isso, as pessoas precisarão ver o exato instante em que você colocar seus pés aqui, pela "primeira vez" — Atsushi explicava enquanto escondia seu corpo debaixo de vários sacos de farinha vazios. Pelo visto, lá vinha mais um round de desconforto e impaciência metido no compartimento traseiro de uma charrete. — ... E, acompanhado de um residente conhecido como eu — ele piscou. — Não vão desconfiar de nada.

Um aspecto levemente pensativo tomou conta das feições contrariadas do criminoso, que buscava controlar a aversão em pensar na dor de cabeça que aquele plano traria.

No fim... havia se surpreendido com o quão observador aquele rapaz conseguia ser. Como na vez em que ele praticamente desconstruiu a realidade na qual sua atual situação se encontrava, ainda que jamais tivesse dito uma palavra sequer a ele sobre isso.

— Você... devia ser detetive, Jinko — foi o único comentário que fez antes de uma pequena e conveniente tosse dar o assunto como encerrado.

Iniciou-se, então, a longa viagem com destino à cidade mais próxima. Como ensaiado nos dias anteriores, Jinko espalhou pela vizinhança que um parente seu havia falecido, e que, por isso, passaria uma ou duas semanas fora para ir ao enterro. Como estipulado, ele recebeu a comum atenção de seus vizinhos — que não tinham muito com que se entreter —, assim como uma enxurrada de perguntas que objetivavam saber tudo sobre o falecido imaginário.

Atsushi fez seu trabalho muitíssimo bem, e quando foi a vez das perguntas de caráter curioso acerca do "legado" que o azarado deixou, sentiu-se supersatisfeito.

Era exatamente o que estava esperando.

— Ah, infelizmente ele deixou um filho pra trás, sabe, primo meu. O problema é que o coitado ainda é menor de idade, então terá de haver um debate entre a família para ver com quem ele ficará...

E, nessa história, não era tarefa difícil adivinhar quem seria o sortudo a levar o pobre órfão para casa.

— Se acha que irei te tratar com formalidade na frente daqueles seus vizinhos, pode jogar todo o plano no lixo — foi a única condição que viu necessidade em estabelecer, e Atsushi não fez reclamações.

Ademais, o ex-mafioso sabia que daria certo. O Jinko estúpido — por mais incrível que pudesse parecer — já era maior de idade, e por mais torturoso que seria ter de se fingir de mais moço que ele, não enxergava ali qualquer desvantagem.

No fundo, sentia que já não compreendia mais suas próprias decisões.

Após alguns dias de muito cansaço, dores no corpo pelas noites mal dormidas naquela charrete desconfortável, discussões bastante feias na estrada e o constante pensamento de jogar todo aquele plano idiota para o alto, finalmente chegaram à cidade mais próxima. Pelo fato de a noite já ter caído, decidiram ficar num hotel modesto, e Akutagawa teve de admitir que era prazeroso encontrar-se de volta a um tipo de "civilização".

O único problema é que tiveram de gastar mais dinheiro, visto que, mesmo que fosse recomendado não se separarem, recusaram compartilhar um quarto por conta de não estarem se falando — a briga para ver quem comeria o último brioche recheado realmente atingira um limite de seriedade avançado, e a expressão emburrada, juntamente com o olho roxo bem feio que compunha o rosto de Jinko, tratava-se de uma bela e dolorosa prova.

Eles realmente faziam uma péssima dupla.

De todo modo, foi a partir desse ponto que chegou a vez de Akutagawa comandar a "operação". Considerando que aquela era a cidade mais próxima das terras montanhosas, e que, por algum acaso ou falta de sorte, existia a possibilidade de alguém que conhecia Atsushi flagrá-lo com o tal "primo" mesmo antes de comparecer ao enterro que, pelos boatos, seria "numa cidade muito, muito distante", precisariam cair fora por alguns dias. E Akutagawa, sendo um conhecedor da civilização, tinha a missão de guiar um caipira como ele por lá.

Assim, para se distanciar o máximo possível de tudo relacionado à "terra-do-fim-do-mundo-onde-Atsushi-e-logo-mais-Akutagawa-moraria", na manhã seguinte, trataram de pegar um ônibus de viagem com destino à cidade mais próxima que tivesse um aeroporto, e de lá, partiram para a cidade de Yokohama.

Yokohama. Cidade dona de um dos primeiros e mais importantes portos do Japão, que prometia diversos passeios românticos pelas pontes e ruas ao lado das águas cristalinas ou visitas ao conhecido Jardim Sankei-en.

Atsushi, compreensivelmente, ficou embasbacado com tudo, e sofreu o risco de ser atropelado uma ou duas vezes nas ocasiões em que o ímpeto automático e maléfico de Akutagawa fazia-o fingir que não estava o vendo, mas isso não vinha ao caso. Tudo o que importava era que, na primeira oportunidade, arrastou Jinko para um hotel de luxo e, após uma primeira e proveitosa noite de sono em dias, certificou-se de sempre mantê-lo em seu campo de visão.

Tudo o que precisavam fazer era esperar alguns dias para que pudessem retornar ao campo como o planejado, e Akutagawa sabia que escolher Yokohama fora um certo risco para quem certamente possuía alguns cartazes com os dizeres "procurado" pelas ruas.

Mas não fazia mal. Bastava um confiável óculos escuros, e ficaria bem.

Na segunda manhã hospedados no hotel chique — evitaram sair por conta das precauções de Akutagawa, sobre esperar para ver se nenhuma denúncia sobre si havia sido feita naquele endereço —, enfim puderam descer para a cafeteria do primeiro andar ao invés de pedir o café da manhã em seus respectivos quartos — a convivência ainda não se encontrava das melhores.

O movimento por ali estava bastante ameno e agradável, e o ponto principal: o chá estava mais que excelente.

Atsushi parecia estar sempre no mundo da lua, e sabia que ele se encontrava ansioso para passear pela cidade. Entretanto, naquela manhã, descobriria a existência de alguns pensamentos interessantes que vagueavam pela cabeça daquele Jinko.

— Escuta, Akutagawa — ele chamou sua atenção, e o moreno refletiu que ainda era um tanto estranho escutar seu nome saindo da boca de uma pessoa que, meses atrás, considerou matar. As panquecas de Atsushi ainda estavam pela metade (tinha certeza de que logo mais o restante estaria no lixo, visto que era a terceira vez que ele afirmava, desapontado, que as que fazia em casa eram muito melhores), e seus olhos, que naquela manhã jaziam moldados num ângulo mais atento e "felino", encaravam-no, circunspectos. — Eu acabei de pensar numa coisa... no fim, você ficou livre de ter de pagar pela morte do Mark-san. Pode ficar em algum outro lugar, não? — abriu um pequeno sorriso, bisonho.

Akutagawa afastou a xícara que levaria aos lábios na mesma hora. Não percebeu, mas o olhar fixo e cravejado lançado à Atsushi representou a mesma potência de uma bala no centro da testa.

— Então era esse o seu plano desde o começo? — sentiu que havia matado toda a charada. — Me trazer em segurança?

Os olhos púrpuros e âmbar modificaram para uma condição de desconforto.

— Eh... não — ele balançou a cabeça e, de repente, Atsushi pareceu um pouco preocupado e desiludido. Suspirou. — Mas é uma boa ideia, no fim das contas... não concorda? Acho que, dessa forma, seria mais fácil pra você.

Semelhante à noite em que foi impedido de partir pelo pedido de Atsushi em fazê-lo ficar, muitas informações passaram por sua cabeça.

Meditou que, de fato, ele estava certo. Se não quisesse, não precisaria voltar. Arrumar algum outro fim de mundo, encontrar uma casa, aproveitar a paz e silêncio que certamente teria, considerando que não teria um Jinko chato para lhe irritar... seria fácil. No entanto...

Apanhou a xícara de chá novamente, levando-a à boca num movimento sofisticado.

— Vamos somente continuar com o plano inicial — sentenciou, simples e perpétuo. — Entendeu?

A surpresa no rosto de Jinko foi evidente, mas não estava interessado em ter de responder as já esperadas indagações tolas dele sobre o porquê de tal decisão, se estava sério mesmo etc. Somente ergueu-se e se retirou.

Ademais, aproveitaram agradavelmente — se é que a companhia de Atsushi pudesse se equiparar a algo próximo ao "agradável", mas, ao menos uma vez, isso não vinha ao caso — a estadia em Yokohama antes de irem embora. Após a conversa no café-da-manhã, finalmente decidiu realizar os desejos do Jinko pateta, e levou-o a alguns pontos turísticos da cidade. Não sabia se era impressão, mas desconfiava que a disposição acima do normal que ele passou a demonstrar surgiu quando ele soube de sua decisão em voltar ao interior, mas talvez fosse somente o medo de ter de pegar um avião sozinho.

De toda forma, as "férias" finalmente terminaram e tiveram de voltar ao fim do mundo que seu "eu" de meses atrás tanto quis desaparecer. Atsushi, como um verdadeiro idiota, passou a viagem inteira aconselhando-o sobre a importância de parecer, aos olhos dos moradores, um "órfão infeliz e miserável", forçando até alguns soluços em público. Não foi preciso dizer que repudiou toda aquela ideia de fingir-se de ser humano coitado, e o desapontamento dele foi evidente enquanto, finalmente, passavam de charrete em frente à vizinhança enxerida que os parava para conversar. A única recepção que ela recebeu deles foi a carranca séria e fechada de Akutagawa e algumas palavras e sorrisos tensos de Atsushi, que repetia, várias e várias vezes, que "seu primo ainda estava devastado e negativo com o luto, e que por isso não ligassem para seu mau-humor".

Akutagawa pouco ligava para o que iriam pensar dele. Não necessitava de amizades para alcançar alguma felicidade fantasiosa, e se todas as pessoas da região fossem parecidas com Jinko no aspecto "gentil" e "amigável", duvidava que fosse ter uma conversa decente tão cedo...

Não. Sua decisão em regressar àquele lugar simples e retrógrado não se baseou nem um pouco nos caipiras que encontraria, e sim, na paisagem abrangente que cegou completamente sua visão assim que pararam a charrete frente ao grande e saudoso casarão. De alguma forma, o silêncio, as cores, a calmaria...

Tudo isso havia trazido paz ao seu coração.

Surpreendente, bastou poucos meses para Akutagawa e sua personalidade fria e seca se tornar novos e legítimos membros do campo. Como um fenômeno automático e inevitável, acabou tomando nota e conhecimento de cada habitante da região, guardando especialmente os trejeitos irritantes e invasivos daqueles que considerou terminantemente inconvenientes.

Havia, como bons exemplos, o vizinho à oeste, Kenji, o aborrecente e impertinente que possuía um julgamento questionável sobre vacas e que, com suas sardas infantis e sorriso reluzente, enfurecia Akutagawa mais que tudo; e a vizinha nanica à leste, Kyōka, que, quando fuxicava o "belo" companheirismo durante as tarde de trabalho árduo entre os dois "primos", não podia lhe flagrar esbofeteando merecidamente a nuca do Jinko idiota, que já partia para cima de seu pescoço com uma enxada na mão.

Naquele meio tempo, como um auto desafio — Atsushi intitulava como "loucura certa" —, Akutagawa decidiu sanar a curiosidade em se perguntar se o dono da pensão realmente não o reconheceria caso o visse frente a frente, e, mesmo com as intermináveis preocupações de Jinko, foi até lá para dar uma olhada.

Felizmente, o baixinho jovem e ranzinza, Chuuya, não apresentou nenhuma compreensão em seus traços delicados, e ainda conseguiu assistir à uma sessão grátis de porradaria observando-o expulsar o dono do relojoeiro e da loja de penhores do estabelecimento.

Ele até que era um sujeito bastante vigoroso, o dono da pensão...

Aconteceu também de ter atraído o interesse de bastante mocinhas com seus traços de uma beleza fina e elegante, mas mostrou-se totalmente desinteressado. A convivência com Jinko também foi um ponto a ser considerado em questões evolutivas, visto que, de alguma maneira, passaram a suportar mais um ao outro.

Foi como se tivesse piscado, e deu-se conta de que já se completariam dois anos desde que começou a compartilhar o teto com Atsushi. A situação de sua ficha já havia sido resolvida há tempos, mas a última vez que havia estado na cidade grande fora para doar sua fortuna conquistada com o antigo trabalho da máfia às pobres instituições carentes.

Afinal, a vida que tinha agora não necessitava de nenhuma "montanha de ouro".

Tudo tinha se tornado simples demais. A rotina, a paisagem, as pessoas... mas, ao mesmo tempo, era sempre uma nova descoberta.

Atsushi era uma nova descoberta.

E, agora, acomodados naquela varanda e observando o sol irradiar a paisagem com seus últimos raios solares, Akutagawa não conseguia livrar-se da angústia constante que assolava seus pensamentos, como um disco continuamente arranhado e incapaz de seguir com o curso da melodia programada.

Jamais perdia muito tempo pensando no passado, mas isso não adiantava muito quando o passado parecia estar sonhando frequentemente consigo. Cobrando-o. Mas de quê?

Ah, sim. Havia cometido muitos crimes, muitos assassinatos... talvez a hora do arrependimento enfim tivesse chegado.

E foi exatamente por isso que, após o extremo cansaço em pensar, em refletir, fez aquela pergunta à Jinko. Entretanto, foi decepcionado pela falta de palavras de quem sempre às possuía na hora de consolar alguém.

Enfim, rendeu-se à frustração.

— Sim, talvez eu já esteja condenado mesmo — quebrou o silêncio anteriormente criado, mãos comumente nos bolsos e um semblante de falsa despreocupação no rosto, ainda que o amargor crescente em seu peito fosse algo a se considerar. Com os olhos fixos no horizonte, encolheu os ombros. — Afinal, não é como se tivesse uma vaga nos céus destinada à mim, como um idiota como você certamente tem.

Os olhos de Atsushi pareceram filtrar cada palavra com atenção e certo receio.

— Mas, Akutagawa...

— Jinko — interrompeu-o, e, após uma sucessão de tosses que abafou com a mão, continuou, olhos frios fixos à frente e a palma rente à boca: — A verdade é que, por todo esse tempo, eu sempre achei que minha escolha de sair da máfia se derivou de não querer mais matar e enganar. Entretanto, a realidade é que eu nunca verdadeiramente estive aí com isso. Você viu, minha primeira ação por aqui foi assassinar um homem e manter você como uma espécie de refém, e isso não são atitudes de quem decidiu trilhar um caminho limpo e justo.

"O que só torna tudo pior, visto que, ao que parece, meus motivos para sair daquela vida não se basearam em nenhum arrependimento por ter matado aquelas pessoas. Eu não quis admitir pra mim mesmo, mas... agora sei que foi por causa da partida dele que fiquei sem rumo. Ele me abandonou e, então, fiz questão de deixar pra trás toda a vida que ele se esforçou para me encaixar. Infantil, não concorda?"

Após soltar as palavras entaladas, pela primeira vez, sentiu como se seus pulmões pudessem respirar mais tranquilamente. Atsushi, por sua vez, encontrava-se mais que impressionado.

— Você... está falando daquele homem — ele disse em voz baixa, como uma autoafirmação. — Aquele que te tirou das ruas, não foi?

O ex-criminoso acenou em resposta, ainda sem encará-lo. A verdade era que, há tempos, sentia-se desconfortável com o simples ato de olhar para Atsushi — encarar aqueles olhos repletos de luz e os sorrisos que definitivamente não merecia.

Entretanto, era justamente aquele rapaz o único atualmente a saber dos segredos e tormentos que residiam em si, acabando por ocupar, sem que o próprio percebesse, o mesmo papel interpretado por sua irmã falecida.

Atsushi tratava-se da pessoa que mais lhe conhecia, tendo recebido confidências sobre a vida que Akutagawa levava na máfia e a novidade que escutava agora. O assunto não precisou ser estendido, considerando que até detalhes sobre aquela pessoa ele estava a par.

E, revertendo a situação... Akutagawa ia percebendo que, na realidade, não sabia muito sobre aquele rapaz.

Veja bem, quando chegou na cidade, Atsushi havia lhe confidenciado que o motivo para seu plano em fazê-lo de "primo órfão" ter dado tão certo, dava-se pelo fato de todos pensarem que sua família de fato era enorme. Mas, de verdade, ele não tinha ninguém. Na época, Akutagawa bem tinha questionado o porquê da mentira, mas Jinko somente respondeu que foi coisa de sua finada mãe. De resto, aquela havia sido a única informação sobre o passado dele que havia adquirido.

Atsushi era estranho. Tão gentil e prestativo, mas distraído e assustado na mesma medida. Ele fingia que estava tudo normal, mas Akutagawa estava por dentro dos pesadelos que ele parecia ter durante a noite. Coisas como barulhos e sons engasgados... jamais tinha ido dar uma olhada, mas não significava que conseguia voltar a dormir facilmente depois.

De toda forma, Atsushi parecia guardar algum segredo.

... E, pela primeira vez, deu a crer que ele revelaria algo sobre aquele mistério enigmático.

— Escuta, Akutagawa — a voz dele saiu tensa, receosa de uma maneira que acabou fisgando seu interesse, e o espiou de soslaio. Atsushi tinha as mãos oscilantes sobre as pernas, cabeça baixa e olhos vidrados numa provável miragem de calamidade. As próximas palavras saíram num murmúrio trêmulo: — Eu... não teria tanta certeza de que haverá uma vaga no paraíso para mim.

Aquela declaração foi o suficiente para ser arrancado dela diversos tipos de interpretações; entretanto, com um olhar rígido e centrado, Akutagawa decidiu apontar a mais direta de todas:

— O que você fez?

De súbito, notou a respiração dele tornar-se gradualmente pesada. Jinko, felizmente, regulou-a antes que atingisse níveis mais sérios, fechando os olhos e invocando firmeza em sua postura. Sua insegurança era óbvia, mas admirou-o ao perceber que, talvez, ele já estivesse preparando o próprio psicológico há um tempo para lidar com aquele momento.

E, é claro, o despertar de uma enorme expectativa foi avassalador.

— Minha mãe morreu quando eu era pequeno — Atsushi começou com o relato que prometia duração desconhecida e evocações nada agradáveis de um passado longínquo, e o ex-mafioso, atraído pela chance de finalmente obter a faceta final daquele Jinko que, ao mesmo tempo que carregava total transparência, exalava uma incógnita incitante demais para deixar ignorar, apurou os ouvidos para que cada sílaba fosse absorvida sem erros ou enganos. Atsushi mordeu o lábio, o pé direito batendo no piso num tique nervoso. — Eu... fiquei aos cuidados de um amigo de confiança dela — ele soltou a informação como se tratasse de um peso do qual sempre fugia na hora de deixá-lo ir.

O motivo talvez fosse a então inexistência de uma verdadeira fonte de confiança para mirar. E, desde que tinha Akutagawa por perto, sempre próximo e presente, podia ser que...

A princípio, a decisão de Atsushi em insistir para ele ficar, tratava-se justamente de semear aquele que, no futuro, pudesse ser seu amparo para se abrir e crer no retorno de uma compreensão tão almejada e necessitada. E, se toda aquela teoria fosse válida, Akutagawa apostava que, na cabeça dele, Atsushi finalmente havia se convencido de que o refúgio cultivado em si finalmente estava pronto para a "colheita".

Esperou pacientemente que ele encaixasse a cronologia das informações nos pensamentos tumultuados, sabendo que, no fim, não teria muita vez para falar — ao menos enquanto Jinko não colocasse todos os fatos e omissões não mencionadas sobre a mesa.

Desse modo, observou cada mudança de posição e expressão, como o movimento que ele fez ao pender o corpo para trás enquanto esticava as pernas e punha-se a esfregar os olhos, ao passo que um longo e sufocado suspiro cortava seus lábios. A cadeira de balanço movimentava-se num eterno vem e vai.

Não era hora para qualquer impaciência. Atsushi já era covarde por natureza e, desse modo, necessitava de uma melhor preparação para soltar os pesadelos acumulados.

— Bem... — ele endireitou-se, rosto instável e braços ao redor do corpo. Nunca o tinha visto tão melancólico, o que, em suma, era assombroso. — Esse... homem. Que começou a cuidar de mim — ele respirou. — Ele era bem legal comigo, isso quando minha mãe era viva. Mas... depois — sua voz baixou. — Foi terrível. Ele literalmente era outra pessoa, uma totalmente diferente daquela que brincava e me trazia doces.

Os olhos de aspecto frágil pousaram rapidamente sobre seu ouvinte ainda calado e que assim permaneceu. O entendimento era claro: basicamente um aviso mudo que traduzia "fale tudo, e depois darei minha opinião".

Julgou que Atsushi tinha mais cérebro do que achava, pois ele desviou os olhos para o chão, conformado. Sua boca entreabriu-se por um momento, desistente em proferir qualquer que fosse a sentença, ou talvez o nervosismo tivesse se amontoado.

Observou-o massagear o pescoço até ele finalmente soltar o ar.

— Eu virei um escravo — a revelação franca e sem-rodeios deixou claro que ele escolhera trilhar o caminho "mais rápido" para terminar com aquilo. Sua constituição continuava tensa, mas, com sorte, seria acalmada conforme os sentimentos ruins acompanhassem as palavras asfixiadas. — Ele... ele me batia muito, me torturava, me deixava preso por dias como um animal. Não sei o que deu nele, até hoje não tenho certeza. Ele dizia que era para minha educação, mas... talvez, simplesmente tivesse ficado louco — suspirou.

"Foi quando decidi que não aguentava mais viver daquela forma. Na época, ele já não ficava muito aqui, ele... aparecia às vezes — àquela altura, Akutagawa teve de se esforçar para ouvir as palavras que saíam em murmúrios inconsistentes e intimamente confusos, como se, ainda hoje, Jinko questionasse as motivações de seu "cuidador" em ter feito as coisas que fez (ainda que, evidentemente, se tratasse de um caso que ia além da compreensão racional, considerou). — Nos fins de semana, sendo mais preciso, ele aparecia. Desse jeito, tive um tempinho para planejar o que fazer, mas... pensava demais, desistia e deixava as oportunidades passarem. Talvez, aguardar atingir a maioridade para finalmente mandá-lo embora fosse o melhor plano a seguir, além de o mais correto, mas... — sua voz falhou. — Foi quando..."

Enfim, o limite foi atingido — e com força. Como se uma ânsia violenta tivesse preenchido cada canto de seu peito, Atsushi levou as mãos à boca e, rapidamente, saiu de cena.

Impassível, Akutagawa continuou sentado naquela varanda e lá permaneceu por horas afins. No fundo, sentia que dar espaço ao coitado era a melhor decisão a tomar.

Jinko estava devastado. Pior: a história poderia ter ficado incompleta, mas não precisava ser um gênio para decodificar seu fim.

Akutagawa, talvez, não fosse o único ali a ter as mãos sujas de sangue.

 

▪️▪️▪️

 

As horas continuaram a passar, e foi quando o relógio bateu às nove que decidiu entrar e checar a situação de Jinko. Sem ao menos passar na cozinha para pegar alguma para comer — aquela história toda havia embrulhado seu estômago de uma maneira nada agradável —, seus pés já lhe encaminharam ao andar de cima, e parou em frente à porta dele.

Sabia que ele costumava dormir a partir daquele horário, como um hábito regrado. Ele, na verdade, parecia estar sempre seguindo praxes que, agora, perguntava-se como teriam sido criados.

Sem cerimônias, bateu duas vezes e entrou. Seu plano havia sido oferecer um simples boa noite com pretexto de analisar se ele se encontrava melhor, e assim o fez.

Atsushi jazia estirado sobre a extensão da cama, cabeça direcionada ao teto e mãos sobre o peito. Sem um único olhar, tudo o que recebeu foi um simples aceno afirmativo dele quando o questionou sobre a melhora de seu estado emocional, e nada mais.

"Bem, estando ele imóvel e quieto, e não surtado, acho que dá pra se tranquilizar.", foi o que pensou antes de deixá-lo e dirigir-se ao próprio quarto.

A noite passou tão rápida quanto a velocidade que os primeiros raios de Sol atingiram seu rosto pelas frestas da janela. Os acontecimentos do dia anterior continuavam frescos em sua mente, mas convenceu-se de que Jinko certamente já estava melhor. Ele jamais permaneceria deitado numa manhã de trabalho árduo.

De tal modo, vestiu-se com roupas simples e propícias para começar com os afazeres que havia se voluntariado na tarde anterior, entretanto, o cenário inédito fez presença assim que pisou na cozinha e não encontrou nenhuma iguaria pronta. Nem mesmo a base dos preparativos do pão caseiro que Atsushi falou que faria estava ali...

A primeira coisa que veio à cabeça foi: comércio. No fim, ele havia saído para comprar a farinha que o próprio Akutagawa decretou que compraria, e que, pelo visto, foi contrariado. Ao menos, essa podia ser a razão da ausência dele e da massa do pão. Entretanto, julgou que ele teria ao menos preparado café antes...

Contrariado com o fato de suas deduções não estarem o levando a lugar nenhum, encaminhou-se até o celeiro. Intrigou-se ao visualizar as charretes e os cavalos todos em seu devido lugar. No fim, a resposta mais plausível era que ele não havia sequer saído do quarto.

Seguindo o raciocínio, voltou ao casarão e, dessa vez, não bateu quando simplesmente abriu a porta vizinha à sua acomodação.

Como esperado, Atsushi de fato continuava no mesmo lugar que a noite passada, mas, em contraste, sentado ao invés de deitado sobre o colchão bagunçado. As costas jaziam contra a cabeceira da cama, joelhos sobre o peito e cabeça afundada nestes.

Era como se ele se escondesse do mundo. Jinko poderia constar com vinte anos, mas nunca remeteu uma imagem tão infantil e indefesa quanto agora.

Não havia dúvidas de que ele tinha escutado sua entrada; o prensar inseguro dos braços em volta das pernas dizia que sim. Entretanto, em momento algum recebeu aqueles olhos, trêmulos e escondidos.

Agiu naturalmente, como sempre. Acreditava que dar corda à qualquer estado de espírito era o mesmo que render-se a ele, e, ainda que este fosse um método que só funcionava consigo, não era como conseguisse lidar de outra maneira. Deu a volta na cama e aproximou-se de Jinko, observando como ele estava encolhido em uma aura de infelicidade. Sentou-se na borda do colchão, e em instante algum, tirou os olhos sérios de cima dele.

A primeira coisa que indagou, baixo, era se ele tinha dormido, e recebeu um abafado e tímido "não". A notícia lhe fez impaciente e, sem se importar, puxou-o pelos calcanhares para que os joelhos voltassem a ficar estendidos.

Agora tinha acesso ao seu rosto. Triste e anêmico, era como estava.

Completamente detestável.

— Jinko, chega disso — mandou, duro e inclemente. Não queria ver aquela luz tão fraca. Agitava-se com o simples pensamento de nunca mais vê-la viva e calorosa como antes. No fim, necessitava dela para sobreviver. — Seu passado ficou para trás, não o traga para o presente. Não precisa mais falar sobre isso, eu não quero saber.

Silêncio. Foi o que, a princípio, achou que receberia, e estava prestes a ofertar umas boas chacoalhadas naquele Jinko estúpido quando brecou toda e qualquer eminência de uma ação após um suspiro fatigado cortar seus ouvidos.

— Você é sempre tão insensível e realista — escutou a confidência com um pouco de confusão. Estranhou ainda mais a expressão de aspecto triste e saudoso na face de Jinko. Atsushi continuou a evitar seus olhos, entretanto, parecia estar razoavelmente calmo. — Estou acostumado a isso. Quando finalmente fiquei sozinho, um homem que chegou na região vinha me fazer companhia. Ele era jovem e bastante excêntrico, mas era alguém bom de verdade — ele ergueu a cabeça, enfim, encarando os olhos cinzas e intrigados à frente. Continuou: — Assim como você, ele também era duro comigo. Na época, eu ainda estava bastante perturbado, e qualquer som me assustava. Isso melhorou com o tempo, mas, no fundo, até hoje sinto medo da perseguição dos meus pecados.

Akutagawa nada comentou. Atsushi, pelo visto, havia pulado os detalhes do tópico de seu maior tormento, mas agora havia adentrado num outro que não estava esperando.

Os dedos dele tamborilavam sobre o tecido da calça do pijama, e seus olhos recuaram novamente.

— Acho... que nunca realmente superei a ausência dele — ele revelou, contido.

— Então ele morreu — Akutagawa confirmou as próprias dúvidas, mas, ainda assim, recebeu um acenar desanimado.

— É. Ele, na verdade, cometeu suicídio — Jinko piscou algumas vezes, num gesto perdido, como se ainda hoje refletisse sobre os motivos de tal atitude trágica. A boca prensou-se numa linha amarga, e a cabeça balançou levemente. — Eu sabia que ele guardava algum segredo, só não achei que fosse sério o suficiente para que terminasse assim.

Durou pouco, mas, de súbito, Akutagawa ficou alheio aos fatos.

Engraçado... aquela palavra, "suicídio" sempre o lembraria daquele que esmigalhou cada camada, cada fibra de seu coração. Tratava-se de um trejeito excêntrico, mas duvidava que aquele homem, algum dia, chegaria a concretizar tal ameaça.

Não. Ele continuava a viver, certamente fazendo o que sempre fez: capturar a confiança e devoção de pessoas que já não possuíam um propósito para viver e, depois de adentrá-las no mundo obscurecido que sempre seria seu ambiente natural, abandonaria-as. Pura e simplesmente, as deixaria.

Assim como foi consigo.

— Eu senti bastante a morte dele, mas, para minha surpresa, Chuuya-san, o dono da pensão, foi quem mais passou por uma mudança — Atsushi continuou com o relato, o cenho minimamente franzido. — Bem... eu sabia que eles tinham ficado bem próximos, mas, em tese, fiquei surpreso com o quão duro e estressado ele ficou. Talvez fossem muito amigos... — suspirou. — De toda forma, no fim, temos o mesmo crime, Akutagawa — a mudança de assunto tirou seus pensamentos do passado, e encarou-o, visualizando cada uma daquelas feições taciturnas. Atsushi puxou o ar. — Vamos para o mesmo lugar.

O ex-mafioso entortou a boca, contrariado.

— Não vamos — falou, e tratou de reforçar sua sentença. — Você certamente só se defendeu. É muito melhor do que eu — os olhos desviaram para outro canto, amargos. — Você já tem permissão pra viver sem culpa. Eu, no entanto...

— Não. Não diga isso... — Atsushi levou as mãos aos olhos, cabeça pendendo para trás em martírio. Murmurou: — Não... não quero que nos separemos. O que desejo, o tempo todo, é estar junto de você.

"Porque... eu o amo."

Silêncio excruciante.

Um por um, cada fio do cabelo da nuca no ouvinte mortificado arrepiou-se de forma violenta; algo que jamais havia sentido.

Não compreendeu aquelas palavras. Não fazia o menor sentido recebê-las de alguém. Recebê-las de Atsushi. Provar do elixir explosivo que criavam quando em contato com a realidade.

Jinko... estava louco.

Entretanto, louco o suficiente para dar continuidade àquela insanidade desmedida. Atsushi baixou as mãos. Seu semblante, de repente, estava determinado de uma forma nunca vista. Bastou uma inclinação decidida dele e um puxar indelicado sobre a nuca formigante à frente, e Akutagawa, estático, tinha agora lábios mornos e macios em contato com os seus.

O coração sofreu uma falha. Os ouvidos fecharam. Cada um de seus traços congelou no tempo. Os membros paralisaram. O peito, sendo o primeiro a dar sinal de vida, moveu-se junto do ar forte e anelante que escapou.

Não soube o que lhe moveu. A textura prazerosa da mão que deslizou para seu pescoço ou o contínuo pressionar tímido e sutil que presentava seus lábios com a primeira experimentação para tal tipo de afeto.

Cada gesto, cada respiração calma...

Akutagawa definitivamente aprovou tudo aquilo.

As mãos agiram, e a ponta do polegar atingiu seu objetivo na carícia ao canto da boca rosada que se entreabriu ao iniciar um aprofundamento lento e concentrado. Atsushi, aliviado, passou a se entregar com pura dedicação, toques ávidos fomentando a paz no interior do parceiro plenamente envolvido na forma com que o encaixe e movimentar se prolongava. O frio no estômago foi sentido em consonância com o inclinar excitante que induziu o corpo frágil à frente a fazer, lábios presos numa união terna e vagarosa. A cabeça de Atsushi repousou gentilmente sob o colchão enquanto suspirava.

Pela primeira vez, sentiu-se pegar fogo. Era uma sensação nova, que traduzia uma inédita forma de experimentação ao medo, em companhia da expectativa em saber que a compartilhava com igual ansiedade — especialmente através dos suspiros dificultosos e toques precipitados. O beijo longo e cuidadoso ia adquirindo uma rapidez que combinava com a agitação fervente em seus peitos, que, ao sentirem o princípio de um sufocamento desconhecido, resultou na separação ofegante dos dois.

Os sons regressaram aos ouvidos anteriormente abafados. Olhos presos um no outro. Respirações exauridas, mas com notas surpresas o bastante para estimular os corações a retumbar com força. O peito abaixo subiu, estimulado pela carga de ar assombrada.

— Minha...

— ... nossa — Akutagawa terminou, atribulado. Os olhos, vidrados, jaziam fixos nos brilhantes a alguns centímetros, que transpassavam a iminência de um colapso nervoso.

Incrível. Atsushi tratou-se do pioneiro para criar aquele cenário, e agora apresentava a fisionomia mais tensa e assustada do mundo.

Ele mordeu o lábio, incerto.

— Akutagawa, eu...

— Calado, Jinko — de súbito, escutou-se uma exclamação surpresa e indignada. A palma de sua mão comprimia cada canto daquele rosto besta que se recusava mirar. O punho livre cerrou-se sobre o colchão, da mesma forma que os olhos e dentes. Estava devastado. — Não... torne as coisas ainda pior, idiota.

Atsushi soltou alguns resmungos não-entendíveis por debaixo da pressão brusca que também abafava parte de sua boca, mas foi só após um minuto inteiro que Akutagawa libertou-o. Os pensamentos giravam num furacão por detrás de sua testa sustentada pela mão, ombros movendo-se juntamente das inspirações desreguladas. Com o conto dos olhos, percebeu o brilho violeta e âmbar preso sobre sua estatura instável. Os olhos bonitos vacilaram, acentuando o desânimo que Jinko certamente previa de uma futura rejeição.

A menção dele em se mover foi impedida de súbito por Akutagawa, que, inclinando-se novamente, prendeu-o no lugar. Os olhos abaixo levaram sua ação com surpresa mortificada, e, antes que aqueles lábios idiotas entreabrissem para soltar alguma idiotice já esperada, agiu mais rápido:

— Quieto, Jinko — os dedos viajaram pela extensão da pele macia do queixo ao maxilar, olhos endurecidos acompanhando cada traço do trajeto. O fim da linha situou-se na curva fina do pescoço, e acariciou-o algumas vezes antes de penetrar por entre as mechas claras da nuca. — ... Você já falou demais.

Aproximou-se e o beijou, uma, duas vezes, ambos toques suaves. Em seguida, partiu em busca de um contato mais lânguido, calma misturada à afronésia que, com o tempo, estimulou-os a se envolver com uma euforia semelhante à de antes. Os ombros hirtos relaxaram com o agarre necessitado dos dedos ansiosos, que subiram às mechas negras e venustas, ofertando puxares suaves e minimamente dolorosos que eram devolvidos com arquejos baixos e investidas mais violentas sobre os lábios que começavam a ficar dormentes.

Com a nova separação, Akutagawa escolheu perder-se na tez alva e lisa, dedicando selinhos e roçares significativos em cada local escolhido. A ponta do nariz trilhou um caminho incitante até a base do pescoço tenso, onde começou a agradar a pele virgem enquanto recebia, de volta, arfares suaves e inebriados pelo calor prazeroso. Cada músculo anteriormente desgastado pela preocupação e melancolia, agora, encontrava-se devidamente amansado.

Não demorou muito, e Atsushi ressonava entregue aos braços de Morfeu, mas não importava. A tranquilidade compartilhada em cada respiração profunda e nas batidas calmas do coração que confirmava ter saciado da fonte original da luz responsável por mantê-lo naquele fim de mundo, revelava que tudo visava fazer com que aquele momento ocorresse.

Akutagawa dispensou-se de todos os compromissos que, àquela altura, já estavam atrasados demais para serem executados. Permaneceu ali, ao lado do Jinko boboca, e cobriu-o com uma manta fofa. Amaciou um dos travesseiros, e teve bastante cuidado ao erguer a cabeça dele a fim de pousá-la sob a textura macia.

Quanto a si, não dormiu; aproveitou o tempo entretido com uma boa leitura, mas confessava que evocar alguma concentração tratava-se de tarefa difícil quando se pegava frequentemente analisando, com o queixo pousado sobre a mão e olhar distante e comedido, as feições adormecidas, rosto sereno e ressonares sossegados.

De alguma forma, tinha ciência da mudança que acometeria aquele relacionamento dali para frente, e assim ocorreu. Em tese, continuaram a ser aqueles mesmo jovens estressados com aspectos da personalidade um do outro, e as discussões infantis continuaram constantes; entretanto, agora, eram permitidas formas mais estimulantes para conciliar-se, nem que fosse por meio de braços que, de repente, rodeavam Akutagawa por trás num gesto de culpa, ou selares teimosos quando visava desaparecer com qualquer semblante tristonho e ranzinza na face do Jinko idiota.

Com o passar dos anos, os comentários começaram a circular pela região, mas não ligavam. Não existia a preocupação em se esconder, culminando em ocasiões que, por entre as pausas que faziam nos terrenos de plantio, entregavam-se à umidade dos ramos em abundância pelo chão. Não se importavam com a terra ou insetos quando entregues a beijos cálidos ou somente pressões afetuosas e propositalmente aliciantes sobre os lábios que se tornavam risonhos. Kyōka e Kenji havia-os flagrado algumas vezes nessas "brincadeiras", mas, após o primeiro estranhamento passar, levaram como algo normal. Na verdade, a maior parte da amizade da vizinhança permaneceu.

Também foi necessário o período de alguns anos para que Atsushi, finalmente, confidenciasse os últimos detalhes do trauma sofrido no passado. No fim, o Akutagawa de anos atrás não estava semeado o suficiente para que ele se sentisse totalmente confortável para lhe confiar seus maiores temores, mas tratou-se de uma simples questão de tempo para que isso mudasse.

Pequeno e inseguro, a criança que Atsushi era na época desesperou-se com as palavras sussurradas e toques cada vez mais estranhos vindos de seu "cuidador", e, movido à insanidade, utilizou da espingarda pendurada atrás da porta para erradicar a fonte de todos os seus medos. Sua atitude, aos olhos da vizinhança, baseou-se puramente no engano cometido por uma criança que se assustou com os passos ouvidos no meio da madrugada, então livrou-se da justiça.

De resto, tudo continuava igual naquela encantadora terra do interior. O pôr-do-sol era igual a todos os outros que já haviam ocorrido, e Atsushi sabia que continuaria a ser daquela forma pelos próximos anos e décadas.

Aproveitando o frescor na varanda, sons de brincadeira infantil preenchiam seus ouvidos com harmonia, pertencentes ao casal de órfãos adotados que traduziam a realidade que Atsushi e Akutagawa vivenciaram um dia e que, no fim, foram salvos pela mesma pessoa excêntrica e misteriosa que desvaneceu com a própria vida ao jogar-se no lago cristalino há quilômetros dali. Naquele ponto, nunca souberam da coincidência envolvendo os momentos de luz e esperança de seus passados trágicos.

Unindo-os sem que ao menos desconfiar, Osamu Dazai provou-se a pessoa mais perspicaz de todas.

A exclamação animada das crianças foi o intermédio para que soubesse que Akutagawa estava em casa, e permaneceu no mesmo lugar, sabendo que logo ele viria até si.

Como esperado, bastou alguns minutos para que a presença dele se fizesse presente e, como um costume adquirido com o passar dos anos, após Ryūnosuke tomar o assento ao seu lado, confortou-se com o toque carinhoso que recebeu no rosto. A mão logo desceu a sua, e um entrelaçar sutil entre os dedos foi feito. Akutagawa ergueu-as e levou a sua aos lábios, onde depositou um beijo casto.

Nunca precisavam de palavras de boas-vindas. Aquilo era o suficiente.

E, em meio ao silêncio confortável onde o único ponto de visão era sobre a lua que ia aumentando seu brilho na noite estrelada, Atsushi cogitou que, realmente, a vida estava em paz. Já não pensava mais no passado amargo, e a tranquilidade fantasiosa não era mais uma constante em sua vida. Havia, enfim, atingido o ápice da calmaria que sempre desejou.

Nada importava. As tempestades que arruinaram as plantações na semana anterior, ou as enfermidades que assolaria vários dos animais da região em breve. Nem mesmo o fato de que, dentro de alguns anos, Akutagawa estaria partindo pela doença que, por enquanto, era totalmente desconhecida aos dois, merecia alguma atenção.

Pois não era sobre o passado que deveria mirar sua principal preocupação, muito menos no futuro. E sim, aproveitar aquela união com respeito e entrega absoluta, ali e agora — no presente.

Haviam se tornado a fonte de luz um do outro e, contanto que jamais se esquecessem do significado de cada entendimento compartilhado através de seus sentimentos e ações, jamais cairiam nas trevas antigas e tempestuosas que, uma vez, os fez querer desistir.

Agora, só desejavam viver um dia de cada vez. Demorou para descobrirem, mas, na realidade, a permissão para isso sempre esteve concedida.


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Notas finais do capítulo

Assisti ao anime há alguns meses, e amei a química MARAVILHOSA que esses dois têm. Eu particularmente amei demais fazer essa obra, foi um clima totalmente novo e super reflexivo. Sei lá, tenho um fraco por histórias ambientadas em campos ♥

Eu ainda tenho um coisinha pequena deles, postarei em breve. Ademais, certamente voltarei a escrever mais sobre Shin Soukoku, eu amei ♥♥

Até, pessoal



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