Morgan lembrava de ter feito o impossível. Lembrava do temporizador correndo em seu visor enquanto se aventurava nos destroços da Talos I em busca do remédio que salvaria alguém que não deveria mais lhe importar. Lembrava de correr pelos túneis da estação, desviando de alienígenas que a matariam sem culpa ou remorso, sem se permitir pensar em como aquilo era arriscado, uma grande estupidez. Lembrava de injetar o remédio em Mikhaila quando o temporizador já estava perigosamente perto do zero, e mesmo sem entender o porquê, finalmente conseguiu respirar aliviada.

Só para em seguida colapsar em cima da mulher que acabara de salvar, inconsciente, vítima de toda a radiação a qual se expôs de propósito ao sair da nave. Ela morreria. Por alguém que não lembrava de conhecer.

— Você se acha indestrutível, não é?

Retornando aos poucos para o mundo dos vivos, Morgan reconheceu a voz da mulher que salvara. Mikhaila não fazia mais parte de suas memórias, mesmo assim, aquela era uma voz que conhecia intimamente. O tom de falsa repreensão era apenas para disfarçar o medo. Uma familiaridade que se encaixava muito bem em um espaço vazio de suas lembranças.

Sentia-se fraca e cada movimento lhe causava dor, mas Morgan se obrigou a se sentar e encarar a não tão desconhecida. Mikhaila ignorou seu olhar, concentrada no trabalho de impedir sua morte. Era uma profissional exemplar, mas com o rosto tão perto do seu, mesmo sob as luzes oscilantes da estação espacial avariada, Morgan via claramente os olhos úmidos e o tremor no lábio que Mikhaila lutava para controlar enquanto lhe ministrava toda a medicação antirradiação necessária para manter seu corpo inteiro.

Ser o motivo de tanta preocupação lhe parecia errado. Morgan não tinha lembranças dela, mas a engenheira lembrava de cada dia que tiveram juntas, antes de Morgan aceitar apagá-la de sua vida – junto a todo o resto dos últimos 5 anos. No lugar dela, Morgan sentiria raiva. Mágoa. Talvez Mikhaila se sentisse assim também, mas não chegava perto do terror que sentiu ao vê-la quase morrer.

Mikhaila era uma pessoa boa, e por isso, Morgan não sabia o que ela estava fazendo ali. A TranStar não fazia coisas boas. O que isso significava para ela, Dra. Morgan Yu, vice-diretora daquela empresa?

— Não precisava ter feito isso, Morgan. Eu agradeço, mas…

— Precisava sim.

— Por quê?

Mikhaila levantou o rosto para encará-la. Estava tão perto que Morgan podia ver cada detalhe mesmo com as luzes falhas. As maçãs do rosto, o nariz reto, os lábios finos. E tudo o que Morgan olhava lhe causava a impressão de conhecer bem, como se fosse um quadro que observava todos os dias daquela mesma distância. January tinha razão. Memórias especialmente fortes deixavam resquícios palpáveis, instintos, impressões… Algumas coisas ficavam gravadas não só na mente, mas no corpo. As pontas de seus dedos sabiam exatamente o caminho que costumavam traçar pelo rosto de Mikhaila nas carícias que precediam um beijo de despedida, antes dela se retirar do escritório de Morgan, apressada, porque o relacionamento delas ainda era um segredo dentro da TranStar.

— Eu me sinto… mais perto de mim mesma quando estou com você.

Mikhaila não esperava uma resposta tão sincera, mas tentou não demonstrar.

— Deveria ter pensado nisso antes de deixar ferrarem a sua cabeça.

— Deveria.

— Está me dando razão? – Mikhaila riu. – Você está mesmo diferente…

— Diferente pode ser melhor.

— Isso já é mais a sua cara. – Mikhaila falou em um tom de provocação. Mikhaila lhe entregou um cobertor, e segurou sua mão por um tempo enquanto hesitava em dizer algo. Por fim, espantou os pensamentos e concluiu: – Mas dessa vez, concordo com você. Diferente pode ser melhor. Agora descanse. Não se preocupe, estarei aqui quando acordar.