Reflect escrita por Kurai


Capítulo 1
Εκ λόγου άλλος εκβαίνει λόγος


Notas iniciais do capítulo

O título significa 'Uma palavra traz a próxima', e é a linha de abertura da música Reflect: https://www.youtube.com/watch?v=WGgEFoI9MhE

Essa história se passa no período de tempo entre o capítulo 29 e o 30 de Convergência: https://fanfiction.com.br/historia/803622/Convergencia/



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O brilho do raio de sol solitário que alcançou a profundidade em que estava dançou na água por alguns segundos, redirecionado ao capricho das correntes. Ela nadou de costas, devagar, quase preguiçosamente, acompanhando a corrente mais próxima enquanto encarava o que podia ver da superfície.

Tinha já mais de cinco mil anos. Cinco mil anos em que era conhecida como a ‘Gema do Mar’, Gawr Gura, a princesa azul de Atlantis, querida pelo povo em seu reino absoluto submarino. Como superpredador, era perfeitamente capaz de proteger o reino, e ninguém enfrentaria sua autoridade no dia em que tomasse posse no lugar do pai – coisa que não devia acontecer tão cedo, Papa Tubarão já tinha algumas dezenas de milhares de anos.

Já conhecia todas as correntes do Mar Mediterrâneo, e tinha sido a única em eras a chegar a atravessar o estreito para o Oceano Atlântico vez ou outra. Conhecia todas as criaturas marinhas, e vencera de todas elas.

O raio de sol se moveu e acertou seu rosto, a fazendo franzir o cenho.

O fundo do mar era... Tedioso, na verdade.

Ela tinha energia demais para aquele lugar. Nada nunca acontecia ali. Os tritões estavam sempre com a mesma rotina, presos às mesmas leis, contentes em viver a eternidade um dia após o outro. Não criavam nada. Não exploravam nada. Não havia aventura.

“Parece que eu sou a única pessoa a querer algo diferente...”

Ela suspirou, falando sozinha. Não era a primeira nem a última vez que o pensamento lhe ocorria. Ninguém mais queria novidade, ninguém ansiava por uma aventura ou tinha vontade de conhecer mais. Ela nem sequer sabia por quê exatamente pensava assim. O que a tornara especial? O que despertara nela essa diferença?

Não se lembrava. Já tinha mais de cinco mil anos, e nesse ponto, as coisas começavam a ficar confusas quando se tratava de memórias antigas.

Seus pais lhe contavam uma história engraçada. Quando era um bebê tubarão, seus cabelos e olhos eram vermelhos. E ela era uma criança bem diferente do que era hoje. Apática, de julgamento frio, e tão habilidosa como superpredadora que chegara a pedir ao pai se podia realizar as execuções no coliseu ela mesma. Era a criança mais forte que já tinha sido registrada na história do reino, e ainda assim, seus pais tinham medo. Ficavam preocupados com o tipo de adulto que ela se tornaria, especialmente quando recebesse a coroa. Alguém impiedoso e frio podia ser bom para o reino, mas certamente ela não seria feliz. Papa Tubarão queria sua princesa feliz.

E então, de um dia pro outro, mais ou menos quando tinha uns 500 anos, ela mudou bruscamente. Deu um passeio um pouco mais longo que o normal, cerca de um ano, e quando voltou, estava azul. E ria. E fazia perguntas. Não quis responder o que tinha acontecido, mas seus pais estavam tão felizes e aliviados com a mudança que não pressionaram.

Gura não se lembrava do que tinha acontecido, mas sempre que tentava, um vislumbre vermelho e uma forte dor de cabeça a impediam de tentar mais seriamente. Parecia algo que ficaria melhor no passado. Gostava de como era agora. Gostava de ser curiosa, e de cantar, e até de ser um pouco burra ou lenta pra entender coisas fora de sua bolha em Atlantis.

Ainda assim, talvez se lembrar do que foi o gatilho pra toda essa situação a ajudasse com sua sede por aventuras. Talvez ela devesse, uma vez na vida, tentar pra valer.

Enquanto ponderava, algo perturbou a superfície calma do mar, criando ondas na água. Gura vislumbrou um ser vivo. Não reconheceu a nadadeira da distância em que estava. Curiosa, nadou pra mais perto devagar, o mais silenciosamente que pôde. Não viu pelos nem escamas. Não era uma nadadeira. Era... Uma perna. Parecida com a dela própria e dos tritões. Nunca tinha visto essa perna sem pelos em outro ser vivo. Parecia macia...

Abriu a mandíbula, os dentes serrilhados expostos, e se aproximou ainda mais. A batata da perna parecia particularmente macia. Mordiscou ali, sem pensar duas vezes.

Ouviu um grito aterrorizado, e o dono da perna se afastou, nadando o mais rápido que conseguia. O sangue manchou a água... Gura conseguiu sentir seu cheiro. Sua barriga roncou.

Seja lá o que fosse aquela criatura, tinha cheiro de ser a coisa mais deliciosa que comeria na vida. Sem nem notar o que fazia, nadou atrás dele, acompanhando o passo de lesma sem a menor dificuldade. Os pés que batiam desenfreados estavam bem expostos. Abriu a boca de novo...

“βοήθεια!” ela ouviu, por cima da superfície. ‘Ajuda!’

A criatura não estava falando em nenhuma língua marinha ou sequer animal. Falava grego. A língua de Atlantis. Mas definitivamente não era um tritão. E pedia ajuda a alguém. Ainda mais mordida de curiosidade, Gura fechou a boca e se afastou um pouco, assistindo. Outros dois pares de pernas entraram na água, e pareciam carregar o primeiro pra uma coisa de madeira enorme parada há alguns metros dali. Esperou até que estivessem a uma distância segura, e colocou os olhos pra fora d’água.

Eram...

Naquela coisa flutuante de madeira, montes deles, de pé, com peles de animais e coisas brilhantes sobre o corpo, todos em volta do que estava sangrando tentando ajudar, havia... Criaturas. Não sabia o que eram. Eram como tritões, mas sem caudas, sem presas. Eram...

Eram...

Ela sentiu que já tinha visto aquilo antes. Quando? Onde? O que eram..?

Sua cabeça doeu. Um flash vermelho correu seus olhos, e ela sorriu, as presas manchadas de sangue aparecendo. Devia pular na coisa flutuante. Comer todos eles. Devia...

Um raio de sol ofuscou sua visão por um segundo. Um raio de sol dourado... Seu raio de sol...

Respirou fundo, nadando até um conjunto de pedras escarpadas. Sentou-se ali, os pés na água, oculta da visão ao redor. Precisava se acalmar.

“You are my sunshine, my only sunshine… You make me happy when skies are grey… You'll never know, dear, how much I love you… Please, don't take my sunshine away…” cantou, os olhos fechados. Não se lembrava de que língua era aquela ou onde aprendera a canção, mas sabia o que significava. O vermelho passou. O azul retornou a seus olhos. As criaturas na coisa flutuante agora olhavam ao redor, confusas, tentando achar a fonte da música. Temendo ser vista, Gura pulou de volta pro mar e nadou direto pra casa.

—--

Papa Tubarão fez um pronunciamento oficial para Atlantis naquela mesma semana. Havia um reino, na superfície, em terra firme, chamado Creta. E em Creta, moravam os minoicos. Como os atlanteanos, os minoicos eram uma civilização de seres vivos capazes de raciocínio e fala. Sua raça era chamada de... Seres humanos.

A nova lei em Atlantis era clara. Até que mais fosse descoberto sobre essa nova civilização, se eram racionais, se eram confiáveis, nenhum tritão deveria entrar em contato com eles de forma alguma.

Porém, essa lei só durou algumas semanas, até que alguém devorou um deles e descobriu como eram deliciosos. Depois disso, a caça aos ‘seres humanos’ tornou-se prática comum, a ponto deles começarem a evitar o mar.

A dor de cabeça de Gura também durou semanas. Seja lá o que fosse aquele flash vermelho, não tinha mais ido embora, e sempre que retornava, insistia que ela também os caçasse, que comesse a todos. A voz a lembrava constantemente de como aquela mordida tinha sido gostosa, e de como ela devia provar o resto.

Gura não sabia porquê insistia tanto no oposto. Certo, era contra a lei entrar em contato com os humanos, mas ela tinha certeza que o pai não ia ligar se ela comesse um ou dois. Era sua própria força de vontade que a impedia. Sentia que, se comesse um deles, estaria traindo a si mesma, e cruzando uma linha imperdoável. Era estranho. Teimosa, passou toda a existência do reino de Creta sem jamais comer um deles. O reino prosperou e caiu, e outro surgiu em seu lugar. Os humanos criaram novas coisas enormes de madeira, e novas peles para se cobrir, e passaram a falar um grego esquisito, cheio de palavras novas.

E por fim, nem grego falavam mais. Ela não conseguia mais entendê-los quando os ouvia escondido, então parou de tentar.

Ainda assim, não conseguiu abandonar 100% do contato com os humanos. Engajou no que secretamente chamava de OPSIC, ‘Observação de Pessoas Sem Intenção de Comer’, onde só os assistia de longe. Era mais interessante do que o tédio em Atlantis. Os pais sabiam do hobby da princesa, mas contanto que ela não aparecesse diretamente pra nenhum e não causasse problemas, não falavam nada.

—--

As coisas mudaram na mesma época que o lixo começou a aparecer. Quanto mais lixo aparecia na água, mais as coisas de madeira ficavam maiores e mais ameaçadoras, e mais os seres humanos ficavam perigosos. As espadas e lanças de anos atrás desapareceram, e agora eles vinham para a água com coisas pontudas que se pareciam com os tridentes, que atiravam mesmo nos maiores peixes. E então a coisa barulhenta. Os tritões estudiosos declararam se tratar de ‘pólvora’, era o nome que usaram. Não tinha nada a ver com polvos. Pelo contrário, eram fedorentas, barulhentas, e matavam até o maior dos tubarões sem muito esforço, disparando coisinhas de chumbo ou bolas gigantes de forma igualmente mortal.

A pólvora mudou a forma como Papa Tubarão administrava leis sobre humanos. Era perigoso demais fazer vista grossa agora. Os humanos eram uma ameaça séria. Os tritões sempre souberam que humanos eram fascinados com eles, e sempre que pegavam algum desprevenido, tentavam captura-los. Era raro que conseguissem, com toda a velocidade e força que tinham, mas as histórias se espalharam, e sempre havia caçadores novos nas águas. Agora que os humanos tinham como machuca-los de verdade, não podia mais ter esse risco. Não podiam mais se deixar capturar. Uma única prova da existência de Atlantis e Papa sabia que os humanos mandariam um exército com ‘pólvora’ pra capturar e matar todos eles. Atlantis era poderosa, e os tritões fortes, mas poucos. Não resistiriam a uma invasão dessas.

As bordas de Atlantis se fecharam. Recifes e corais foram posicionados de forma a não deixar nada do reino visível, caso algum humano de alguma forma sobrevivesse à pressão de um mergulho tão profundo. A luz do sol se tornou ainda mais rara do que já era. Tritões não tinham mais permissão de explorar fora do reino sem autorização. Caça a humanos foi proibida.

Atlantis ficou ainda MAIS tediosa.

No começo, Gura obedeceu. Não queria causar problemas. E era a princesa, devia dar o exemplo mais do que todos. Mas depois de alguns séculos, estava perdendo a cabeça. O tédio estava a enlouquecendo, e o flash vermelho nunca foi realmente embora, vez ou outra vindo a atazanar com alguma ideia absurda.

Por fim, sentiu que se ficasse mais um dia sequer parada, perderia o controle. Já mal conseguia manter a voz no fundo da cabeça, mais alta a cada dia. Decidiu que sairia do reino uma vezinha só. Só uma noite. Nadaria até a superfície, praticaria um pouco de OPSIC, e voltaria. Nada podia dar errado. E ela podia respirar em paz por mais uns séculos.

Depois de sair da segurança das águas profundas, não demorou a ver uma das coisas flutuantes cheias de humanos. Eles gritavam ordens uns aos outros à distância, e ela se aproximou pra ouvir e ver melhor.

E então travou.

Reconhecia algumas daquelas palavras. Não era grego. Não era nenhuma língua que tivesse aprendido em Atlantis.

Era a língua daquela canção. A que falava sobre raios de sol e felicidade. A língua que ouvira pela última vez há tantos milênios... Quem a estava falando naquela época..?

Os flashes vermelhos a assaltaram, junto da dor de cabeça. Tentou se impedir de lembrar, mas ainda ouvia os humanos falando aquela língua, e decidiu que QUERIA lembrar. Suportaria a dor. Suportaria a voz. Dessa vez, só dessa vez...

“Em 9000 anos, seremos idols. Você cantará pra três milhões de pessoas.”

Era essa língua de novo. A pessoa que falava... Era um humano. Estavam deitados na praia, olhando pro céu. Quem era..?

“Você terá amigas, nenhuma tubarão. Bom, uma é meio-polvo.”

Amigas..? Seus súditos a adoravam, e ela sempre podia contar com Papa Tubarão, mas amigas? Do que estavam falando? Ela não... Conhecia ninguém assim. Conhecia?

E eu... Sou o amor da sua vida.”

Cabelos dourados. Como raios de sol. Um sorriso brilhante. O rosto avermelhado sempre que se lembrava de que Gura não usava roupas, os olhos azuis cheios de vida sempre se virando para cima, tentando nunca olhar abaixo de seu rosto.

“You are my sunshine, my only sunshine… You make me happy when skies are grey…”

Meu raio de sol…

Ame.

Sua cabeça parecendo que se partiria ao meio de dor, ela se lembrou. Do ano que passou com a detetive. De tudo que ela lhe contara. Dos seres humanos, da música, da terra firme, de animais, plantas, jogos, amigos. Lembrou-se de Amelia Watson, o amor da sua vida.

E então, o vermelho.

Perdeu a consciência. Gura, o tubarão abobalhado que gostava de comer, cantar, e praticar OPSIC, perdera a batalha pelo controle. Gawr, a princesa violenta e sangue-frio, herdeira e protetora de Atlantis, estava oficialmente de volta.

E aqueles humanos bem à sua frente pareciam particularmente apetitosos.


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Notas finais do capítulo

Ainda não decidi se encerro aqui ou faço um segundo capítulo com o resto do tempo pulado na Drabble...



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