Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 1
Balzac, idosos e papagaios


Notas iniciais do capítulo

Oi gente! Lá venho eu postando mais uma fic, muito sem-noção xD mas essa aqui já tem 20 capítulos prontos, então vou postar um capítulo por semana. Tô muito nervosa porque até o momento foi a fic que eu mais gostei de escrever em 2021, então espero que vocês gostem!

Os capítulos serão intercalados no ponto de vista, mas pra vocês não se perderem os modelos de capítulo são diferentes por narração.



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Eu não era o tipo de leitora ávida que desejava ser quando era adolescente. Querendo eu ou não, as preocupações da vida adulta tinham roubado meu tempo livre, fazendo com que eu substituísse “hora da leitura” por “hora do cochilo”. Ou então, não tão orgulhosamente, “hora da novela”. Veja bem, Nona dizia que eu tinha a alma de uma idosinha... Secretamente, até que concordava com ela. Mas nem todo mundo sabia dar o valor merecido a Velvet e a Gran Hotel, então eu abraçava minhas novelinhas espanholas com afeto excessivo.

De volta ao que interessa – melhor dizendo, ao assunto, uma vez que o conceito de interessante pode ser bem relativo –, a leitura ainda era uma companhia agradável, ainda que ficasse frequentemente em segundo plano. Em meio à ocupação do tempo com as atividades que me categorizavam como sendo parte da sociedade feminina de Healdsburg – ah, meu Deus! –, tais como o Clube de Costura e, implicitamente, a fofoca (coisa que eu e Noelle andávamos pelas beiradas como atividade essencial, uma vez que fofocar significava receber informações e passá-las para frente, e julgávamos isso como perda de tempo), sobrava pouco tempo para ir até a livraria frequentemente e “explorar”... Ou seja lá qual for a expressão que os jovens estejam usando hoje em dia. Entretanto, a sombra dos meus trinta anos trouxe um termo digno da curiosidade dos meus ouvidos, suficiente para que eu fosse até a livraria do senhor Bell para procurar sua origem. O termo era balzaquiana.

Balzaquiana. Balzaquiana. Elegante, não? É, eu sei. De início, por contar com a bênção da ignorância, apliquei ao termo mais lisonja do que o necessário. Era divertido o jogo de associação de palavras: eu, Cecilia Lewis, florista, 28 anos, balzaquiana. Meu Deus, eu entrei em delírio! Logo eu que era tão comum que podia ser confundida com qualquer outra na rua, sendo atribuída a algo tão chique! Noelle surtaria comigo, com toda certeza. Antes que entremos nos termos de quem é que me designou o tal termo extraordinário, vamos fazer um retrospecto da minha cena quase – quase, hein? – penosa com o senhor Bell.

O senhor Bell, consagrado por mim como guardião do conhecimento de Healdsburg, era uma representação californiana do livreiro bonzinho de A Bela e a Fera. Apesar de termos bem mais que um leitor do que “essa minha aldeia do interior”, o senhor Bell fazia um esforço considerável em tentar decorar os nomes de seus clientes que pipocavam com mais frequência. Por isso, logo após eu ser anunciada pelo sininho pendurado à porta, ele abriu um sorriso impecável e cumprimentou:

— Senhorita Celine Lewis! A que devo a honra de sua visita?

— É Cecilia, senhor Bell — corrigi de muito bom-humor. As pessoas por aqui erravam tanto meu nome que ser chamada de “Cecilia” logo de cara chegava a ser até estranho. — Como vai o senhor?

— Ah, minha querida, minha cabeça já não anda bem há anos. Queira perdoar esse velho bobo, sim?

— E quem de nós não é bobo, senhor Bell?

O livreiro soltou uma gargalhada genuína, e adiantando para segurar minhas mãos com um carinho quase paternal. Senti meu coração ficando mais aquecido no ato.

— Você é uma menina de ouro, querida Cecilia.

— Imagine — sorri com as bochechas coradas pelo elogio. — Então, eu vim, pois... O senhor tem alguma ideia do que significa o termo “balzaquiana”? É algo bom ou ruim? Ou não é nenhum dos dois?

O senhor Bell apenas sorriu, soltando minhas mãos para ir atrás de algo em meio às fileiras de livros. O lugar, que servia tanto como venda quanto empréstimos, contava com alguns gatinhos pingados aqui e ali estudando em completo silêncio. Permaneci esperando, e logo o montinho de cabelos brancos voltou trazendo um volume fino em mãos.

Sem dizer mais uma palavra, o livreiro deixou a finura sobre o balcão. Aproximei-me dele e o segurei, analisando o autor e o título.

A Mulher de Trinta Anos, de Honoré de Balzac. Fazia sentido, afinal de contas.

— Oh — foi tudo o que disse ante as minhas expectativas terem descido pelo menos uns três degraus.

— É uma expressão muito cultural, é verdade. Nunca tinha a escutado antes?

— Não... Bem, a senhora Sharpe perguntou quantos anos eu tinha. Então, ela colocou o bordado no colo, fez aquela cara solene e disse... — em seguida, me esforcei para imitar o tom de voz da velhinha: — “Oh, então estou falando com uma balzaquiana”. Como não sabia o que significava, vim consultar o senhor. É um livro, então...

— Fico feliz que ainda existam pessoas que não sucumbiram por completo à internet — o senhor Bell murmurou para si mesmo. Eu era mesmo uma idosa no íntimo... — Bem, eu não acredito que a senhora Sharpe tenha lido Balzac na vida. Acredito que tenha se deparado com um caso gravíssimo de disse-me-disse expressional.

— Uau... O senhor é mesmo inteligente, senhor Bell. Obrigada pelo esclarecimento.

— Se considera um monte de informações inúteis até segunda ordem como inteligência, minha filha, então você está certíssima. Sou mesmo um depósito de sabedoria.

Ambos gargalhamos, então permaneci olhando para o livro como se nele contivesse todos os grandes questionamentos da vida. Eu imaginava que não seria possível, visto que o livro em si era muito fininho para isso... A menos que fossem ensinamentos muito objetivos.

— Gostaria de levá-lo, por favor. Fiquei curiosa. Se eu não gostar, dou para Noelle ler... O senhor sabe como ela é.

— E como sei! Aquela mulher é única. Mande lembranças a ela, sim?

— Pode deixar. Ela vai ficar comovida.

O livreiro sorriu e aquiesceu, concentrando-se em separar meu livro e receber o dinheiro em troca. Eu poderia conversar com ele por horas a fio, porém ainda tinha uma casa para cuidar e já havia começado a escurecer. Por sorte, de todos os clichês de cidade pequena, a parte de ser mais seguro de se sair à noite se aplicava muito bem em Healdsburg. Apesar disso, eu não queria me arriscar com as baratas correndo para fora dos bueiros, portanto corri para casa como se fosse meia-noite e eu tivesse me tornado a nova Cinderela.

No caminho, acenei para Pat e Poppy, os irmãos que cuidavam do corpo de bombeiros e vinícola, respectivamente. E também para Nancy e Lyle Goodwin, que eram responsáveis pelos clubes de Costura e Pesca, respectivamente. Também passei pela temida anciã, senhora Sharpe, balançando-se em sua cadeira, porém não fiz muito esforço em ser notada dessa vez. Por fim, atravessei o caminho arborizado que finalmente indicava que eu estava em casa.

Nona, é claro, estava me esperando. Como minha fiel – e única – funcionária, e coincidentemente minha fiel companheira de casa, ela julgava ser seu dever mostrar prontidão até mesmo depois do expediente. Eu a amava por isso. Ainda que passássemos a maior parte do tempo juntas, sempre seria reconfortante saber que, não importava como o dia acabasse: sempre haveria Noelle e suas recepções calorosas.

— Alto! Quem vem lá? — Nona brincou, erguendo seu gatinho marrom e peludo, Walt. Walt, por sua vez, miou em apoio à dona.

— Hoje tive um caso de Celine! Boa tarde, Walt.

— Celine? Céus, isso fica melhor a cada dia. As pessoas estão ficando loucas por aqui, anote o que estou dizendo. Da parte de quem?

— Do senhor Bell. Acho que ele nunca teve a cabeça no lugar, para início de conversa...

Nona ruborizou, como sempre acontecia quando eu mencionava o nome do senhor Bell em casa. Eu podia não ser especialista em linguagem de gato, porém a mim me pareceu que Walt se encolheu mais nos braços da dona. E há quem diga que animais não raciocinam...

— Bem, nesse caso abrimos uma exceção.

— Sim! Eu gosto mais de Celine do que de Cecilia. Significa “sem brilho”.

— E quem é que disse isso? — Nona indagou, franzindo as sobrancelhas.

Aquamarine.

— Por um momento, eu havia me esquecido que a senhorita já foi fissurada nesse filme.

— Bons tempos, Nona. Bons tempos.

Noelle se dignou a rir da minha nostalgia enquanto atravessávamos o portão para entrar em casa. Despretensiosamente, resolvi acrescentar:

— Ele te mandou lembranças, a propósito.

— Quem? — o tom de voz de Noelle aumentou a ponto de parecer um miado fino. Muita convivência com Walt, eu suponho, resultava nisso.

— O senhor Bell?

— Ah! Tá. O que foi fazer lá?

— Pegar um livro? Ora, Noelle, eu não sou tão burrinha assim, pode fazer perguntas mais difíceis.

Nona riu com uma ironia amigável, devolvendo Walt ao chão. Este, como eu esperava que fizesse, caminhou tranquilamente até a poltrona mais próxima e enrolou-se no próprio rabo.

— Você está tão engraçadinha hoje! Vou ver se encontro aquele nariz de palhaço para combinar com você. Menina atrevida...

Tudo que tinha para oferecer no momento era gargalhar, então o fiz sem dó. Ao menos minhas piadas ruins serviam para divertir alguém, certo?

— Desculpe. Eu fui até a livraria atrás disso — deixei a frase no ar enquanto buscava o livro dentro da bolsa que parecia infinita às vezes. Quando encontrei, entreguei-o a ela. — A senhora Sharpe me chamou de algo que deriva daí. Fiquei curiosa... Um pouco com a pulga atrás da orelha pensando na probabilidade de ser uma ofensa velada. Nunca se sabe o que esperar das Sharpe, afinal de contas.

Balzac? Duvido que ela saiba quem seja. As Sharpe são como papagaios.

O senhor Bell disse a mesmíssima coisa, foi meu primeiro pensamento. Porém, tive de morder a língua para não provocar Nona além do limite de nossas brincadeiras saudáveis.

Para situar melhor as coisas, vamos dizer que eu e Noelle nos conhecemos desde sempre. Ela havia sido minha babá até eu não precisar mais de babás, minha amiga quando não desenvolvi nenhuma habilidade social chamativa, e minha companheira de casa quando meu pai foi embora e minha mãe decidiu que Healdsburg nunca tinha lhe trazido nada de bom.

Apesar de eu estar em Healdsburg, mamãe não hesitou em passar a casa – e as dívidas – para o meu nome, garantindo que eu já era uma mulher crescida e independente o suficiente para viver bem sem ela. Desde então, Noelle mudou-se para casa e assumiu o papel de figura materna que eu precisava aos 21 anos. Desde então, também, Noelle proibiu que o nome da minha mãe fosse mencionado, embora eu tenha perdoado minha mãe no íntimo. Tudo bem, ela havia amado meu pai mais que a mim, portanto eu ser idêntica a ele lhe fazia mal. Eu a perdoei, mas... Já não fazia questão de tê-la por perto tanto quanto queria aos 21.

Mencionando os clichês de cidade pequena mais uma vez, foi difícil de fazer a transição de “Cecilia, a da mãe louca” para “Cecilia, a florista”. Era difícil ser levada a sério, porém a jardinagem me era terapêutica, então se pudesse tirar dinheiro disso melhor ainda. Nona e eu éramos consideradas solteironas excêntricas àquela altura do campeonato, embora ao menos ela pudesse se gabar que já havia “namorado bastante” se fosse questionada sobre isso por mulheres como as Sharpe. De fato, seu último caso de amor majestoso fora o quase noivado com o senhor Bell há mais de 30 anos – mas isso era quase uma lenda urbana, uma vez que Nona recusava-se a falar sobre isso. Já eu... Se não tivesse vivido minha vida inteira em Healdsburg, poderia receber o benefício da dúvida. Não era o caso, portanto todos sabiam tudo que poderia interessar sobre Cecilia Lewis – ou achavam que sabiam.

Eu, a Cecilia Lewis propriamente dita, não era nenhuma ameaça a ninguém. Além de me considerar inofensiva – uma mosca morta, até –, as pessoas em geral igualmente não me levavam tão em conta por aqui. Era melhor assim. Eu já tinha tudo que precisava: Noelle, Walt, minhas flores, minhas novelas espanholas e meias amizades eram suficientes. Apesar de tudo, ainda tinha de conter minha irritação quando me chamavam pelas costas de “pobre Cecilia”.

Respirando fundo para me recompor, apenas concordei com um meneio.

— Você acabou de me dar uma belíssima visão de uma mulher com bico de papagaio na minha imaginação, Nona.

— Viu só? O que seria de você sem eu na sua vidinha?

Abracei-a de lado, apoiando minha cabeça em seu ombro mesmo que Noelle fosse consideravelmente menor que eu.

— Uma endividada tristonha, quem sabe?

— Esse é um ótimo adjetivo — ela gargalhou se desvencilhando de mim para alcançar a pia. — O que vai querer para o jantar, Celine?

Reprimi uma risada, negando com a cabeça.

— Imagine, Nona, eu cozinho hoje. Você ficou no balcão até agora há pouco. Pode esticar suas perninhas.

— Eu bancaria a teimosa, mas minhas perninhas agradecem. Vamos, Walt?

Walt miou solícito, acordando de seu breve cochilo e seguindo a dona, não sem antes passear animadamente entre minhas pernas. Ri sozinha, me espreguiçando. Noelle deixou A Mulher de Trinta Anos sobre a mesa, atraindo minha atenção para ele. Permaneci observando de escanteio enquanto decidia se faria macarrão ao molho bechamel ou à carbonara. Quando me decidi por carbonara, peguei o livro e estendi-o na janela da cozinha como se fosse uma partitura.

Quem sabe eu pudesse sair da minha rotina só um pouquinho.


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Notas finais do capítulo

E vamos de introduções! Bom feriado pra vocês, não esqueçam de dizer o que me acharam ♥



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