Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 2
Piratas, vaquinhas e pausas


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente! Cá estamos nós no segundo capítulo ♥ fico feliz que vocês tenham gostado da Cecilia! Hoje o capítulo é do Matt, que, comentários à parte, é uma pestinha. Boa leitura ♥



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Minha cabeça latejou pela quarta vez no dia. Era impossível não ser tão específico, não quando a cada onda de dor era uma linha que fugia do meu controle no papel. Pela quarta vez, errei meu rascunho de Alcatraz. Entendendo o provável recado do universo de que aquele não era um bom momento para treinar exercícios visuais, deixei o caderno de lado e repeti os gestos que se tornaram uma espécie de ritual nos últimos dias: esfreguei os olhos e massageei as têmporas, finalizando tudo com um suspiro.

Como parte do ritual, aguardei até que Gilbert resolvesse se pronunciar a respeito da minha situação. Era incrível como em pouco mais de um ano de convivência tinham me ensinado diversos sinônimos de uma frase que significava a mesmíssima coisa.

— Acho que já está na hora da sua pausa, Matt — Gil ergueu os olhos de seu próprio caderno apenas para cumprir com a sua parte. — Mais um pouquinho e sairia vapor das suas orelhas.

— Ah, sim. Desenhos animados são muito estressados. Aliás, essa da pausa foi nova.

— Cansei de falar das férias, você nunca me escuta. Queria saber se você ainda estava me escutando, aí tive que usar uma tática diferente.

— E deu certo! Meus parabéns!

Gilbert gargalhou com maldade, fechando o caderno para olhar por cima de meus ombros. Tive de reprimir um suspiro, mas para minha sorte Gilbert não se deu conta disso.

— Não me diga que estava rascunhando Alcatraz — ele ergueu uma sobrancelha num misto de incredulidade e ironia.

— Eu sabia que deveria ter me arriscado com Libertalia... — neguei com a cabeça, agora soltando aquele suspiro que ficou preso na garganta. — Alcatraz é muito mórbida para exercício visual.

— E uma colônia pirata difere de Alcatraz em morbidez em quais aspectos, Carpenter?

Apesar de minhas reservas emocionais – por favor, eu não era nenhum Spock –, me deixei rir de sua tentativa. O problema principal de ser o melhor amigo de um extrovertido piadista e não corresponder inteiramente com sua personalidade era quase sempre correr o risco de passar batido. Ainda mais tendo nascido com feições carrancudas, era difícil convencer os outros de que eu não era antipático, apenas... Reservado. Por sorte, igualmente, Gilbert pouco se importava com a opinião alheia.

— Hum... É uma colônia pirata fictícia. Acho que é autoexplicativo — me espreguicei. — Além disso, Madagascar e bem mais viva em cores do que Alcatraz. No sentido artístico da coisa, não é nada mórbido.

Gilbert deu-se por vencido, erguendo as mãos em defensiva. Na verdade, era ótimo ter alguém que falasse a mesma língua que você.

— Fico me perguntando se os piratas tinham algum código de moral — Gilbert especulou enquanto levantávamos do gramado. Já começava a escurecer e, apesar do Golden Gate Park ser um local pacífico, eu não confiava muito no restante da cidade. — Tipo, se algum subordinado vacilasse tinha direito a um julgamento e uma prisão ou era tudo na base da pena de morte?

— Olha, cara, eu não tenho a menor ideia. Mas o que eu acho é que em qualquer grupo de indivíduos, com moral limpa ou questionável, haja os mais argutos e os mais imbecis.

Gilbert gargalhou uma vez mais, trocando o peso dos pés enquanto chamava um Uber. Meu estômago roncou, porém torci silenciosamente para que ele não tivesse notado. Cerca de uma hora atrás dei meu lanche para ele, e não estava no pique para fazer alguém se sentir culpado por nada.

— Estamos mesmo teorizando piratas?

— Estar até estamos, mas se parar para pensar que tem gente na internet que discute e até ameaça outros por causa de ficção... — dei de ombros. — Acho que estamos muito bem.

— Ainda bem! Já pensou argumentar com quem usa “argutos” e “imbecis” no mesmo segundo? Já disse que quero morrer seu amigo hoje?

Ri pelo nariz, empurrando-o de brincadeira com o ombro.

— Ah, não... Trolls na internet não merecem o meu tempo.

— Você é mesmo um cavalheiro — Gilbert sorriu fingindo afetação, acenando para a motorista quando esta encostou o carro. — Boa tarde!

A moça retribuiu o cumprimento com um sorriso simpático, aproveitando a pausa para tomar um gole d’água. Eu e Gilbert nos ajeitamos no banco de trás, relaxando consideravelmente ao botar o pé na estrada.

“Estrada” parece um termo patético de se utilizar, uma vez que a distância entre o Golden Gate Park e Nob Hill era praticamente de três milhas de meia, porém em pouco mais de quinze minutos eram suficientes para se transportar de um lugar arborizado e rico em cultura para outro que era uma completa selva de pedra. Fazendo essa comparação, era impossível não se sentir um pouco como um pássaro enjaulado – melhor dizendo, como um pássaro dando seu último adeus à natureza antes de submeter-se à jaula.

Talvez Gil tivesse mesmo razão e eu precisasse de férias. O lado bom de trabalhar com pincéis e tintas era não ser necessário um local fixo para estabelecer como escritório. Porém, o lado ruim eram os prazos e a infinita sensação de estar encurralado. E as comparações. Trabalhar sob encomenda vinha com correntes, mas doía bem menos em saber que eram prisões confortáveis e espaçosas.

Suspirei pela segunda vez no dia, atraindo a atenção de Gilbert apenas quando anunciei o óbvio:

— Você tem razão, Gil. Acho que vou unir o útil ao agradável.

— Ainda estamos falando de piratas ou...?

— Ah, desculpe — ri fraco, coçando a nuca com sua confusão de pensamentos. — Não, eu... Falava das férias. Colocando numa balança, faz tempo que eu não faço “uma pausa”.

— Não zombe dos meus termos, Carpenter. O que tem em mente? Malibu? Disney? SeaWorld? Santa Monica é uma opção também, se estiver aceitando sugestões.

Sorri de escanteio, apertando a alça da minha bolsa com cuidado.

— Na verdade, eu... Pensei em passar um tempinho no interior. Tenho uma tia que mora lá... Tia de consideração — fui logo esclarecendo, antes que Gilbert me castigasse com perguntas. — Era uma vizinha nossa que se mudou para o interior com a aposentadoria. Eu... Hum... Poderia ligar e pedir uma estadia.

— Meu Deus — Gil primeiro riu para depois me levar a sério. — Interior com mato e vaquinhas?

— Acho que não. Certamente a cidade tem mais de dez mil habitantes, dá bastante margem para comércio.

— Que triste... Eu adoraria o quadro de uma vaquinha no meu quarto.

— Se eu encontrar uma eu prometo fazer um retrato.

Nós dois rimos, e logo Gilbert voltou dos seus ares paternais – apesar de ser mais novo que eu. Irônico, não?

— Bem, desde que não seja o fim do mundo e que não se esqueça do velho Gil aqui enquanto se hospeda no hotel rural, não vejo por que achar ruim algo que vai te fazer bem em longo prazo. Conte comigo nessa, Matteroo.

Sorri ao ouvir o apelido. Gilbert poderia ser um pavão excêntrico de tempos em tempos, mas era um ótimo amigo.

— Vocês formam um casal muito bonito — a motorista sorriu pelo espelho retrovisor, e confesso que foi muito difícil não rir. Pobre mulher... Quem seria eu a tirar dos seus devaneios românticos? — Boas férias, moço. Aproveita para relaxar os ânimos.

— Obrigado — também me segurei para não dar um peteleco no meu amigo risonho quando estacionamos. — Bom trabalho para você.

Ela nos presenteou com uma piscadela antes de ir, então Gilbert pode soltar a gargalhada que estava quase o fazendo engasgar.

— Um baita partido, Carpenter. Eu não sei como nunca tinha reparado em você antes!

— Faz todo sentido porque não levo jeito com mulheres... — simulei um suspiro frustrado, fazendo com que Gilbert segurasse a barriga em meio às gargalhadas. — E você nem me venha com isso, foi você quem começou com o papo emocional.

— E eu falei sério! Tem que admitir que isso foi muito engraçado.

— Foi... Foi mesmo.

Continuamos rindo sobre aquele evento até chegarmos a nossas casas. Gilbert sempre me deixava na portaria do meu apartamento antes de dobrar a esquina e retornar para os braços dos pais. Com dois empregos, garçom e pintor de quadros, Gilbert dizia de boca cheia que era mesmo o bebê da mamãe. Afinal, existia uma grande diferença entre um homem mimado e grudado nas saias da mãe e um homem que tinha profundo respeito e gratidão pelos pais. Gilbert era parte desse segundo grupo.

Isso pode trazer à tona a pergunta: onde me encaixo nessas especificações? Bem, nem tudo é resumido em preto ou branco, então podemos um adendo de um terceiro grupo seleto, bem no meio-termo. É claro que eu respeitava meus pais, só estava longe de ser considerado mimado por eles. Meus pais fizeram o modelo de respeito imposto pelo medo, então não posso dizer nada muito produtivo a respeito. Mantemos contato, mas nunca passa de conversa trivial... Para não dizer conversa fiada.

De qualquer maneira, ao chegar ao meu lar doce lar, deixei meus materiais sobre a mesa e sentei-me no sofá, aproveitando para relaxar enquanto procurava os fones de ouvido para ligar para a tia Georgie. Não demorou muito para que ela atendesse, afinal conversávamos mensalmente – por mim, até seria mais, porém o custo das ligações pesaria no aluguel.

Matty, querido! Como vai? — tia Georgie equilibrou o celular na orelha, pelos ruídos do outro lado da linha. — Faz tempo que você não me liga, senti saudades!

— Eu sei disso, tia Georgie, e sinto muito por isso. Eu... Vou bem, obrigado. Também senti saudades.

Não minta para mim, querido, eu farejo na sua voz que há algo errado. Vai me contar ou vou ter que usar meus artifícios de chantagem?

Foi impossível não rir de seu comentário espirituoso. Era bem verdade que tia Georgie usava a cartada de velhinha adorável com frequência.

— Sabe, tia Georgie, acho que podemos estabelecer relações diplomáticas, assim nenhum de nós precisará usar “artifícios de chantagem”.

Ah, é? Estou ouvindo.

— A senhora ainda está com aquela oferta de visitas em pé?

Senti que ela sorriu do outro lado da linha. Após tanto tempo prometendo que iria e jamais cumprindo, era bom finalmente tirar o peso da consciência, afinal de contas.

Para você, Matty, o convite está sempre de pé — ela confirmou, num tom de voz gentil. — Quando pretende vir?

— Mês que vem, pode ser?

Vou deixar um quartinho pronto para você, meu bem. Anota aí o endereço.

Após isso, desliguei o telefone pronto para cair nos braços de Morfeu. Meu senso de higiene, porém, falou mais alto. Com mais resmungos do que seria capaz de admitir para mim mesmo, tratei de me obrigar a tomar uma ducha antes.

Eu realmente esperava que a tia Georgie tivesse algum artifício mágico que curasse a falta de inspiração que me assombrava.


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Notas finais do capítulo

Até a semana que vem, bebês!



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