Gelo e Fogo escrita por BurningWitch


Capítulo 2
Deserto




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Os mapas terminavam no deserto de Korath. Todos eles.

O deserto até então era inexplorado, nenhum grupo retornou das expedições. O que guardava o lugar era desconhecido. E não valia a pena mandar novos grupos de humanos ou feiticeiros naquele lugar, não havia nenhuma garantia de que aquela planície tinha qualquer coisa valiosa. Então só ficou lá, sendo levado pelo tempo.

Se tratava de uma planície pedregosa e arenosa cinza-avermelhada entrecortada por barrancos e fendas, com montes de pedras e enormes rochas. Ao alto, pendia um sol ardente, alterando a visão com seu brilho cegante e a tremulação do ar.

Geralt economizava sua água ao máximo. Assim que entrou no deserto, sentiu seu corpo pesar e suar como nunca, mesmo tendo tomado o elixir de resistência mais forte que Tsarikz possuía. Ele cobriu seu rosto com um manto grosso, deixando apenas os olhos amarelos para fora, para evitar ao máximo as queimaduras de sol. O mago informou que a feiticeira estaria ao leste.

Assim, o bruxo caminhava no deserto escaldante. Depois da primeira noite, ele teve certeza de que a feiticeira - ou o que quer que fosse - já estaria morta. Ele chegaria até ela, se depararia com um corpo inerte, e o levaria de volta.

Geralt possuía uma resistência sobrenatural, além do elixir de proteção posterior. O calor não o afetava como faria com qualquer outra criatura, que com certeza já estaria morta. Seu temor era encontrar criaturas desconhecidas, ainda não catalogadas ou vistas por olhos comuns. Mas, não se deparou com uma criatura viva sequer, nem mesmo pássaros. Não havia vida ali, somente areia e calor, sem fim.

No segundo dia de caminhada, ele passou a considerar voltar. O elixir se consumiria de seu corpo em 7 dias, se ele estivesse no deserto quando isso acontecesse, certamente morreria. Ele observava as alterações que o ar fazia ao se chocar contra a atmosfera, entendendo porque ninguém se atreveria a colocar os pés lá. Somente o mais tolo, pensou.

Então, no horizonte, uma forma começou a se tomar. Havia um ponto vermelho em uma das elevações de areia. Geralt retirou sua espada das costas e a colocou em punho, se aproximando do desconhecido. Ao se aproximar, constatou se tratar de um longo manto vermelho aveludado. É ela! sua mente divagou.

Com cuidado, ele levou uma das mãos até o manto, o retirando com cuidado. Ali se revelou um rosto pálido, mas com as bochechas avermelhadas, assim como as sobrancelhas e o cabelo, que reluzia no sol. Então, os olhos da feiticeira se abriram, possuíam cor de fogo vivo.

— Não! — Sua voz falhou, ela colocou as mãos entre os dois, em uma tentativa vã de se proteger

Se arrastou na areia e encolheu o corpo, como um animal indefeso.

— Não pode me levar de volta! — Ela pediu

Não parecia mais aquela fera (quase) monstruosa que destruiu aquele lugar. Sua aparência era de uma jovem assustada, com as roupas rasgadas e as bochechas queimadas.

— Quem é você? — Geralt perguntou, ainda com a espada em punho.

— Meu nome é Anya. — Ela tossiu e cambaleou para tentar ficar em pé

O bruxo não recuou, não abaixou a arma, mas deu um passo para trás permitindo que a feiticeira se erguesse. Anya fez isso, com cuidado, sem movimentos bruscos.

— Eu sei que o que eu fiz foi errado, mas não vou voltar! Aquele lugar é horrível — A jovem tossiu novamente — Prefiro morrer aqui.

— E você irá. — Geralt avançou com a espada, na direção dela.

Anya ergueu as mãos e se encolheu. Assim que o bruxo a acertou com a espada, ela sumiu. Sua imagem se dissipou no ar como a areia. E ele estava sozinho.

— Impressionante! — A feiticeira gritou, do alto de uma rocha.

Geralt se virou apressadamente, mordendo os dentes. Ela havia se teleportado? Suas roupas não estavam mais rasgadas, tampouco possuía queimaduras ou qualquer vestígio do deserto. Estava como sempre estivera: impecável. E então entendeu, a feiticeira havia projetado uma imagem falsa para conversar com ele, enquanto ela própria se mantinha segura nas rochas, assistindo.

— Eu senti bondade em seu coração, mas pelo visto, me enganei. Não deveria ter feito esse teste, deveria apenas tê-lo matado. — A feiticeira ergueu as duas mãos, chamas de fogo vivo saíam de suas unhas, bolas de fogo saltavam de suas palmas.

— Vai ter sua chance de tentar. — Geralt retirou o manto que o cobria, relevando sua armadura.

O aço que a reveste reluziu no sol. Aquele traje foi feito especialmente para ele, em aço élfico, que é mais leve que o aço comum, tornando-o mais fácil de se mover e lutar. Anya apertou os olhos, que queimavam, em sinal de confronto.

O bruxo avançou, empunhando a espada, lançando seu corpo totalmente em sinal de ira. A feiticeira desapareceu novamente.

— Eles me amarravam! — Anya gritou, aparecendo do outro lado, mais distante — Me furavam, queimavam, cortavam! Tudo! E quando eu me regeneravam, eles começavam tudo de novo.

Geralt não quis ouvir. Tomou o elixir que todos os bruxos tomavam antes de um combate pesado. As ervas misturadas a magia, permitiam que sua força atingisse o mais alto nível. Seus olhos amarelos tomavam uma cor negra, veias saltavam deles para todo o rosto, o tornando quase irreconhecível. Quase um monstro.

— Eu não quero te machucar, mas eu vou! — A feiticeira gritou a medida que o bruxo se aproximava — Não precisa ser assim! — Ela pediu uma última vez.

Percebendo que não adiantaria, Anya permitiu que suas mãos incendiassem ainda mais, formando uma chama alta. Ela lançou aquele fogo na direção de Geralt, que rolou no chão para se desviar.

Unindo as duas mãos e fechando os olhos, a feiticeira fez com que o chão tremesse. Uma fenda começou a se abrir entre os dois, a areia caía dentro da mesma, revelando sua profundidade. Com o abismo que acabara de se abrir, Geralt se ergueu do chão e correu na sua direção, esperando saltar sobre ele.

Anya interceptou o bruxo no ar, lançando uma bola de fogo em sua direção. O fogo queimou seu braço direito, profundamente o bastante para fazer Geralt se desequilibrar por um momento, mas o bastante para fazê-lo cair na fenda. Assim que viu o bruxo caindo, ela uniu as mãos novamente, fazendo a fenda se fechar, o enterrando vivo.

— Que você possa repousar nos braços do Senhor. — A feiticeira beija um medalhão com desenho de um sol, pedurado no pescoço.

A terra treme mais uma vez. Geralt salta do precipício, lançando areia nos olhos de Anya. Em um rápido movimento, ele segura a espada no pescoço da feiticeira, que ergue as mãos para tocar a lâmina. Suas mãos escaldantes derretem a lâmina da espada, fazendo-a brilhar e cair no chão. Geralt solta a espada pelo calor que queimou suas mãos.

Anya pisca algumas vezes, os olhos cortados pela areia. Ela ergue as mãos, sem atacar, mas o bruxo recua.

— Eu não sei o que te contaram, mas eu não sou um monstro. Eles são. Todos eles.

— Um monstro reconhece o outro. — Geralt tenta com cautela puxar o punhal preso em sua cintura, enquanto conversa com ela.

— Eles me prenderam, faziam experiências em mim! Se eu quisesse te matar, não perderia tempo tentando te explicar isso, eu só faria.

Geralt alcança o punhal, o lançando rapidamente na direção da feiticeira. Anya ergue uma das mãos, fazendo-o parar no ar, a poucos centímetros de seu rosto. Ela move a mão e o punhal a acompanha, se virando no ar, em direção ao bruxo.

— Não me obrigue a fazer isso. Eu só quero conversar, e vou te deixar ir. — Ela pede, recolhendo as chamas das mãos.

O bruxo, respirando devagar, sentindo as queimaduras em sua carne, tenta pensar no que fazer. Ele não tinha mais nenhuma arma a não ser os próprios punhos. Estava totalmente em desvantagem.

— Eu fui levada ainda na infância — A feiticeira pega o punhal e o deixa apontado para o bruxo, por precaução — Tissaia me dizia que eu seria uma grande feiticeira, contando que obedecesse. Mas um dia eu me descuidei, acabei matando meu melhor amigo. Foi um acidente! — Seus olhos se enchem de lágrimas.

Geralt conseguia sentir verdade em suas palavras, mas tudo o que conseguia pensar é como aquela mulher poderia ser tão poderosa? Nunca havia visto nenhuma feiticeira assim, que entoasse um feitiço atrás do outro, além do fogo que emanava de sua pele. O medo do desconhecido tomou sua mente, e mata-la ainda soava coerente.

— Não pedi por isso, para ser desse jeito, não escolhi esse poder! — É verdade que o bruxo também não escolheu, e ele sabia melhor do que ninguém o que era ser tratado como um monstro pelo mundo — Eu sei que sou um perigo para os outros — Anya aperta os dentes tentando não deixar nenhuma lágrima cair — Por isso quero viver aqui, sozinha. Ninguém vem ao deserto. Você pode mentir, dizer que não me encontrou ou que me matou, não importa.

— Não posso fazer isso. — Geralt diz, o elixir do bruxo começa a passar, fazendo a névoa negra se dissipar de seu rosto lentamente.

— Por que? — Anya aperta o punhal, seus olhos começam a queimar novamente — Por que você tem que me matar?

A pergunta ecoa na mente de Geralt. A resposta mais óbvia seria "porque você é um monstro", mas o bruxo já havia vivido muitas décadas, conhecido diversos lugares, diversas pessoas e diversos monstros. Ela não se parecia com um. Ou pelo menos, parecia ser alguém que tentava não ser, cujo poder ainda não controlava.

E claro, era mais fácil matar do que ensinar. Se é que pode ser ensinado.

— Não posso arriscar que você volte ao continente e machuque alguém. O sangue estaria em minhas mãos.

Anya pensou em dizer que nunca voltaria, mas odiava fazer promessas se houvesse a mínima chance de não cumprir.

— Então nós lutamos até um dos dois, ou os dois, morrerem? É esse seu plano? Morrer por pessoas que nunca morreriam por você? — Ela dá um passo a diante — Eu li sobre bruxos, lá em Aretuza, nunca pensei que viveria para ver um e aqui estamos. Você sabe o que é ter suas escolhas tiradas de você. Você passou por coisas que nenhuma criança deveria passar, como eu. Só estou pedindo uma nova chance, assim como eu daria uma à você.

O bruxo mediu a feiticeira. Ela não estava mentindo. Já viveu o bastante para saber quando alguém mentia e quando era sincero. Ela não parecia ser alguém ruim, mas que fazia coisas ruins. Já matou mais por menos.

— O que eles fizeram? — Geralt perguntou

— Depois do acidente, eles me levaram para uma masmorra subterrânea, que não está nas plantas da torre. Havia um grupo de pessoas encapuzadas, que faziam experiências em mim todos os dias, sem exceção. Estavam tentando entender como meu poder funcionava, como eu consigo colocar fogo no ar — Ela ergueu os dedos, que se acenderam brevemente — Com certeza queriam usar tamanho poder como arma. Porque é só isso que fazem: guerra. Já fazia quase um mês que eu não via o sol — Ela respirou fundo, fechando os olhos, aproveitando os raios — Sendo cortada e queimada todos os dias, até arrancaram uma das minhas unhas... Chegou o dia que não aguentei mais. Um dos guardas veio até a masmorra, ele tinha hálito de gin — Ela respirou fundo, não conseguindo conter as lágrimas dessa vez — Quando ele tentou tirar meu vestido, eu... Eu tive muita raiva. A raiva que eu passava todos os dias contendo, não consegui naquele. Quando abri os olhos, tudo estava destruído, havia vários guardas se colocando a postos para me atacar. Mas, eu falei para mim mesma que não passaria outro dia no inferno. E fugi.

Anya enxugou as lágrimas depressa, recompondo a postura que havia tido antes, erguendo o punhal novamente.

— Então, acredite quando eu digo que mato e morro para não voltar.

Geralt respirou fundo. O elixir havia sido consumido, sua pele era tão humana quando podia ser. Ele quase se compadecia da sua dor, entendia que era uma pessoa que foi tão machucada que aprendeu como machucar. Porque era só isso que ela poderia fazer.

Olhar para a feiticeira era como olhar para um espelho, e odiava isso. Ela soava como uma versão melhor de si mesmo. Mesmo com tudo que aconteceu, ela não buscou vingança, teve compaixão até com seu próprio matador, se escondeu. Ele sabe que se fosse ele naquele lugar, provavelmente já teria matado todo o continente, provavelmente era um monstro pior que ela.

— Não vai sobreviver aqui. — Geralt diz, secando o rosto do suor causado por aqueles minutos exposto ao sol.

— Eu vou dar um jeito — Ela se recolheu, e assim ele percebeu a primeira mentira — Eu só preciso que você-...

Sua fala foi interrompida por um enorme estrondo. Um rugir alto saía das rochas. Um monstro enorme andava em direção a eles, com aparência semelhante a um escorpião. Havia uma lâmina na ponta de sua calda que brilhava no sol.

Geralt deu alguns passos para trás, assim como Anya. Ela ergueu as mãos, que se acenderam.

Era matar ou morrer. E ela não iria morrer.


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