A Garota que Eu Conheci na Igreja escrita por Binishiusu Sensei


Capítulo 30
Dúvidas




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Depois de tudo o que tinha acontecido por causa da reunião com o pastor; depois que Sara foi trocada de colégio; depois que foi separada de Yumi; depois que foi proibida de participar do curso de desenho; depois de tudo isso, se passaram as dez semanas de terapia que Sara tinha precisado realizar a "cura gay". As sessões com a doutora Gislene tiveram início na terceira semana de março e terminaram no início de junho. Assim que a última sessão terminou, pela primeira vez em meses, Sara pode comemorar uma vitória na situação em que estava passando. Ela de fato havia ficado feliz com o seu sucesso em convencer a doutora de que não precisava fazer a terapia. Depois de muito tempo, a sorte finalmente havia lhe sorrido.

Sara tomou aquilo como um bom presságio. Usou a alegria daquela vitória para motivá-la a continuar tendo esperanças de que um dia reencontraria Yumi. Até aquele momento, tinha usado cada pingo de motivação e disciplina que tinha para manter essa ideia na sua mente. Essa ideia, no final das contas, era o que mantinha a sua sanidade naquele momento. Entretanto, esse esforço notável não impedia que a situação lhe causasse um desgaste emocional. Por isso, a alegria daquela vitória tinha sido importante para levantar o seu ânimo.

Assim, ela seguiu as próximas semanas da mesma forma. Seguiu a rotina imposta pelo seu pai. Fez estágio de manhã, curso técnico de tarde, colégio à noite e igreja aos finais de semana. Não estava desenhando, pois não tinha tempo e nem energia pra isso. Sara continuava uma pessoa dedicada, mas só estava conseguindo cumprir o que era de sua obrigação. Nas últimas semanas, não estava sendo criativa e nem estava tendo iniciativa própria para as coisas, estava apenas reagindo às demandas que tinha. Por isso, não demorou muito para que começasse a se sentir perdida. Esse estado de espírito ficou em Sara ao longo de todo o mês de junho. Por isso, quando as suas férias de julho chegaram, ela não pôde deixar de sentir alívio.

Preciso dessas férias, preciso de tempo pra mim, preciso me reencontrar - disse pra si mesma, quando foi pra casa no último dia de aula. Mais uma vez estava indo pra casa de carona com o seu pai. Esse pensamento veio quando estavam na metade do caminho, enquanto olhava a rua pela janela, sem desejar ter uma conversa com o Rodrigo.

Enquanto assistia o mesmo caminho de sempre, pensou - estou sentindo essa vontade de me reencontrar... É por que não tenho me sentido eu mesma nos últimos meses. Literalmente sinto que não sou eu quem está vivendo a minha vida. Sinto como se meu corpo fosse o avatar de outro alguém. Quando caminho na rua, ou converso com alguém, quando estou no estágio, no curso, no colégio e na igreja, sinto como se o meu eu estivesse enterrado lá fundo da minha existência. Sinto que eu só posso assistir o que outra pessoa está fazendo comigo, o que outra vontade está fazendo comigo. Sem poder reagir, falar ou reclamar, apenas existir e sentir essa sensação estranha de não estar vivendo em mim mesma.

Ainda bem que as férias chegaram, acho que se eu ficar mais tempo assim vou colapsar. Vou tentar melhorar, vou tentar aproveitar essa oportunidade. Faz meses que eu tenho sentido várias coisas no meu coração e não tenho conseguido confrontar esses sentimentos. Eu tive que esconder tudo o que eu estava sentindo na terapia, mas depois que ela acabou, eu não tive o cuidado de confrontar o que de fato eu estava sentindo. Sim, chegou a hora de lidar com essas questões, minha sanidade depende disso.

O último dia de aula para Sara havia sido uma quinta-feira, já que ela não estava frequentando as aulas de sexta-feira à noite por causa do horário do pôr do Sol. O pastor assinava toda semana uma declaração para Sara, informando que por motivos religiosos e que por seu direito de culto, ela não iria poder comparecer às aulas. Então, na sexta-feira da última semana de aula, Sara voltou do curso direto pra casa.

Ah, eu decidi que iria pensar naquelas questões, mas não precisa ser agora, hoje à noite eu vou descansar, preciso. Amanhã eu vou estar com a cabeça boa pra pensar, não tem problema esperar mais um pouquinho - disse pra si mesma, quando estava sozinha em seu quarto.

No outro dia, depois de uma boa noite de sono, acordou no horário costumeiro e foi pra igreja com seus pais. Fez tudo como sempre fazia, sem desvios de rotina. Sara estava calma, sem se importar muito com o que estava acontecendo no culto. Entretanto, no momento em que o pastor foi para o púlpito pregar, sua tranquilidade foi interrompida pelo tema desconfortável que ele havia começado a discutir.

— A homossexualidade é tratada na Bíblia como uma abominação. O texto é bem claro quando diz que um homem não deve se deitar com outro homem como se este fosse mulher - disse o pastor, finalizando a parte introdutória do seu sermão.

Só pode ser brincadeira - pensou Sara, bufando de raiva quando percebeu que teria que aguentar mais um sermão sobre aquele tema.

Depois de alguns minutos explicando que a homossexualidade não era o plano de Deus para o ser humano, o pastor falou sobre como a esquerda e o movimento lgbt estavam destruindo a família por pregarem que isso não era errado. Falou também sobre como a mídia estava tentando colocar aquela prática como algo normal e trouxe várias notícias de caráter duvidoso para comprovar o que estava dizendo.

— Entretanto, queridos irmãos, por mais que esse seja um pecado terrível, Deus pode perdoar qualquer pecado, desde que a pessoa se arrependa e pare de cometê-lo. Por isso, é perfeitamente justo pregarmos para as pessoas que elas podem abandonar essa prática, precisamos pregar pra elas que elas podem ser curadas e transformadas por Deus.

No momento em que o pastor disse essa frase, Sara sentiu um aperto no peito e sentimento de dúvida lhe incomodou.

Ele está certo teologicamente quando diz que Deus pode perdoar qualquer pecado desde que a pessoa se arrependa. É a nossa crença, que diz que Deus é bom e justo para perdoar qualquer pecado - pensou, antes do pastor emendar aquela frase com o restante do raciocínio.

— Mas Deus só pode perdoar os pecados daqueles que se arrependem e a consequência do arrependimento é não cometer mais o pecado que estava praticando. O arrependimento é a mudança do comportamento, se isso não acontecer não há arrependimento e sem arrependimento não há perdão. Uma pessoa sem perdão terá que pagar pelos seus pecados, portanto, não poderá entrar no céu.

Sim, ele está teologicamente correto. É assim que a salvação funciona... O arrependimento gera uma transformação no comportamento, então a pessoa que se arrependeu e se entregou para Jesus vai ter seu comportamento mudado.

— Por isso, queridos irmãos, as pessoas lgbts precisam se arrepender dos seus pecados, não podemos permitir que eles acreditem que essa prática é normal. Precisamos oferecer cura pra eles, senão eles não poderão entrar no céu.

Sara ouviu a frase e sentiu uma fisgada no pescoço.

Eu entendo o argumento dele... Sim, ele explicou certo como a salvação funciona. Na lógica dele, se a prática da homossexualidade for errada, eu estou condenada. Se Deus não acha razoável que eu possa ficar com quem eu gosto, então eu deveria me arrepender do meu pecado, pedir perdão e parar de ser assim. Desde que eu beijei a Yumi, tenho me convencido de que o que nós fizemos não é um pecado. Mas e se for? E se nós estivermos erradas? Iremos mesmo pro inferno?

Pouco tempo depois, assim que o sermão acabou, Sara e sua família voltaram pra casa. Ela ficou o caminho de volta remoendo esse pensamento.

É uma ideia cruel, no mínimo isso. Na lógica da igreja eu pequei quando namorei a Yumi. Dessa forma, preciso me arrepender e pedir perdão, se não eu não serei salva dos meus pecados. Eu não sinto que fiz algo errado, porque eu gosto da Yumi e não consigo perceber isso como algo ruim. Porém, a Bíblia é sim contra que pessoas do mesmo sexo fiquem juntas.

Também tem mais um agravante, o único casal que Deus uniu foi o de um homem com uma mulher, para que tivessem filhos. É uma questão pragmática, eu e a Yumi não poderemos ter filhos se ficarmos juntas. Isso nos invalida? Não, creio que não, mas é diferente do que aparece na Bíblia. Por mais que isso não me agrade, eu preciso pensar na possibilidade de estar errada. Existe a possibilidade de Deus não se agradar do que fizemos.

Se Deus não se agrada disso, devemos parar, porque quando Deus não se agrada de algo é porque isso é ruim pra nós. Ele é o criador de todas as coisas, Ele sabe de tudo, Ele tem autoridade de determinar se algo é bom ou ruim. Eu acredito em Deus, sou cristã e quero ser salva. Pra ser salva preciso me arrepender dos meus pecados. Então, preciso me arrepender de ter namorado a Yumi?

Sara pensou nessa frase e começou a chorar. Sentiu uma dor e uma tristeza profunda. Aquilo não podia ser verdade, não podia ser verdade que ela teria se arrepender do seu amor.

Quando eu penso na lógica da salvação, ela é amarrada, faz sentido. Mas quando eu confronto com o que seria o pecado do qual eu preciso me arrepender, nada faz sentido. Será que eu preciso mesmo me arrepender? Será que o nosso amor é uma abominação? Será que estamos tão erradas no que estamos fazendo, que perdemos a sensibilidade de perceber que estamos erradas?

Nos ensinaram que o Espírito Santo de Deus fala ao nosso coração, para nos sensibilizar, para ficarmos mais próximos de Deus. Quando pecamos, ele nos alerta, ele nos dá um sentimento de arrependimento. Quando as pessoas pecam muito, elas param de ouvir o Espírito Santo, porque perdem a sensibilidade a Ele. As pessoas que não ouvem o Espírito Santo param de se arrepender dos seus pecados, por isso, não são salvas.

E se nós pecamos e deixamos de ouvir o Espírito Santo? E se o Espírito Santo está me dizendo que eu estou errada e eu não quero admitir? E se o que eu fiz foi um pecado e eu preciso me arrepender? Não sei mais... Não sei...

Quanto mais pensava nisso, mais agonia sentia. Sara estava sozinha no seu quarto, chorando, com medo de ter cometido um erro terrível. Pela primeira vez, desde que seu romance com Yumi havia se iniciado, ela tinha encarado com seriedade a ideia de estar errada.

Se eu pequei, preciso me arrepender. Mas eu não consigo me arrepender de gostar da Yumi. Não consigo me arrepender de viver o que eu vivi com ela. Se eu sou assim, eu sou má? Eu estou errada? Deus se desagrada do que eu vivi? Deus se desagrada do amor que eu senti? Quero muito acreditar que não, mas eu não consigo provar na Bíblia que eu estou certa.

E agora? Me arrependo do que fiz? Não consigo. Devo me arrepender? A igreja diz que sim, o pastor diz que sim, minha família diz que sim. Meu coração sente isso? Não. Meu coração sente amor pela Yumi. Mas agora eu também sinto medo. O amor que eu sinto vai me impedir de me salvar? Não sei. Talvez eu devesse me arrepender... Por que se o que eu fiz for pecado e eu não me arrepender, não tem salvação pra mim, irei pro inferno.

Ir pro inferno por amar quem eu amo. Ir pro inferno por que não me arrependi de amar uma pessoa do mesmo sexo. Não faz sentido pra mim. Mas do ponto de vista da igreja eu estou errada. Do ponto de vista da Bíblia também. Deus o que eu faço? Eu não quero morrer, mas também não quero deixar de amar quem eu amo.

Essas foram as últimas palavras que Sara pode se lembrar. Depois disso, seus pensamentos ficaram confusos e ela não conseguiu se lembrar de mais nada. Toda essa crise existencial não era o que ela queria para o início das férias, mas era o que estava sentindo. Nos dias que se seguiram, Sara tentou continuar aquela reflexão, mas não conseguiu ir pra frente. Tentou ocupar a cabeça, tentou desenhar, tentou mudar seu foco, mas não conseguiu.

Estou num paradoxo e não tenho como sair dele. Se eu aceitar o que o pastor ensinou, tenho como consequência o fato de estar condenada por meu pecado, já que não posso me arrepender. Se eu escolher pensar diferente, sinto a dúvida e o medo de estar errada. Nenhuma das duas formas de pensar me deixa ficar tranquila.

A angústia desse pensamento incomodou Sara durante todo o período das férias. Quando ela voltou pro colégio, pro curso e pro estágio, não estava se sentindo renovada, não havia se encontrado. Na prática, estava pior do que antes. Mais uma vez, o ritmo da sua rotina tinha se tornado o fator que tirava a atenção de Sara sobre os próprios sentimentos. Ela entrou em fluxo na rotina e parou de buscar as respostas que estava procurando, decidiu que iria apenas viver por um tempo.

Mesmo assim, não conseguia ter paz ou tranquilidade, pois a dúvida de que se estava certa sempre lhe invadia os pensamentos quando relaxava. Sara não tinha paz quando estava vivendo a sua rotina, por que esta era imposta pelo pai, mas não também não tinha paz quando estava sozinha, pois não conseguia ficar tranquila com o dilema que estava em sua mente. Seguiu assim ao longo dos meses que se passaram.

Durante o mês de agosto, sua ansiedade ficou no mesmo nível. Quando veio setembro, ela começou a aumentar. Já no mês de outubro, Sara estava sentindo uma angústia insuportável. Não importava o quanto ela refletisse, não conseguia solucionar o dilema. Não conseguia provar que não tinha cometido um pecado e nem conseguia se arrepender do suposto pecado. Isso tudo, se somou com o peso das suas atividades e com a tristeza de estar longe de Yumi. Em suma, Sara estava sozinha, lidando com uma questão insolucionável, vivendo de forma angustiada e sem perspectiva de melhora.

***

Era quarta-feira, da primeira semana de novembro. Sara tinha acabado de sair da segunda aula. Era uma noite fresca e ela estava andando pelos corredores do colégio, passando sozinha o tempo do intervalo. Nos meses que tinha estudado ali, não tinha feito amigos. Ela simplesmente não tentou interagir com ninguém e ficou na sua. Sempre ficava sozinha no intervalo, algumas vezes parada no pátio e outras andando pelos corredores.

Nessa noite, quando estava passando em frente a uma sala do segundo andar, teve o prazer de reencontrar um rosto familiar que não via há meses.

— Professora Juliana! - Exclamou Sara, num choque de felicidade, ao ver sua professora de desenho saindo de uma das salas de aula.

— Oi, Sara! Que saudade, não te vejo há... Faz meses que eu não te vejo, você parou de ir no curso de desenho... Que pena, você não estava mais gostando? - Disse Juliana, com um olhar de surpresa e preocupação.

— Não... Eu estava sim... É complicado... - Respondeu Sara de forma vaga, com uma expressão facial que de alguém que precisa de ajuda.

— Sara, tá tudo bem?

— É complicado... Professora, eu não sabia que você dava aula aqui - respondeu Sara, mudando de assunto.

— Eu sou professora aqui no turno da tarde. Hoje eu estou substituindo a professora do turno da noite, mas eu só tinha as duas primeiras aulas. Já acabei por hoje o que eu precisava fazer aqui hoje - disse a professora, analisando as expressões de Sara enquanto falava.

— Professora, desculpa por não estar indo mais pro curso. É complicado de explicar, mas eu simplesmente não posso ir - disse Sara, se sentindo mal por ter desaparecido do curso sem ter falado nada pra professora com quem tinha aprendido tanto.

— Pode ficar tranquila Sara, eu não estou brava com você ou nada do tipo - respondeu a professora, antes das duas ficarem em silêncio por um momento .

— Está tudo certo lá na sua casa? Aconteceu alguma coisa com você? - perguntou a professora, de forma calma e atenciosa.

Sara ouviu a forma como a professora disse aquelas palavras e percebeu que ela de fato se importava em saber. Então, num desejo de carência emocional, Sara quis contar tudo o que estava acontecendo. Sentiu a necessidade de compartilhar a situação com alguém de confiança.

Eu preciso contar pra ela, a professora Juliana vai me entender. Mas a história é muito longa e cheia de detalhes. Eu preciso de tempo pra conversar com ela, não dá pra ser aqui, no intervalo.

— Professora, a gente pode conversar? Preciso de um tempo pra poder contar tudo...

— Claro que sim! Olha, se você está mesmo precisando conversar podemos ir pra sorveteria que tem aqui na frente do colégio. As minhas aulas já acabaram, e como é importante, acho que não vai ter problema se você faltar nas suas. Até porque, é uma situação especial... Pode ser assim? Quer ir na sorveteria comigo?

///

Olá para todes. Lamento pelo período de hiato, eu precisava resolver umas coisas... Porém, pra tentar alegrar vocês um pouco, já deixei disponível o capítulo 31, boa leitura ;)


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