Champagne problems escrita por skywiftwalker


Capítulo 2
This place is the same as it ever was, but you won't like it that way




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Voltar é uma palavra com muitos significados e há um em particular que eu detesto: "regressar a casa". Voltar para casa, para a maioria das pessoas, é algo bom, acolhedor, esperado. Mas para mim é um pesadelo.

Há quase uma década voltar para minha cidade natal tem sido um. Estar na casa dos meus pais faz com que eu me sinta como a adolescente insegura que fui um dia, me faz ter vontade de afundar em uma garrafa de qualquer bebida alcoólica como nos velhos tempos. Além disso, há sempre o risco de encontrá-lo e isso é algo que talvez eu nunca esteja preparada para enfrentar. Por maior que seja o meu desejo de vê-lo, de conversar com ele, ouvir sua voz novamente depois de tanto tempo… Não sei se tenho nervos para isso.

Desde que saí da cidade naquele trem noturno, cercada por pessoas dormindo, evito qualquer coisa em relação a ele. Não que minha mãe se importe com o quanto saber sobre a vida dele me machuca, afinal, ela faz questão de me contar cada detalhe sempre que tem a oportunidade. Através dela soube que Joseph Bowery, o meu primeiro, grande e único amor, depois daquela terrível noite, voltou para faculdade, me superou, seguiu em frente com sua vida e hoje está devidamente casado. Casado e feliz, pelo que ela me conta. Apaixonado por sua esposa, vivendo a vida que eu deveria ser comigo. Mas não foi esse o ponto que me fez negar seu pedido tantos anos atrás? Sempre tive certeza que ele merecia o que tem hoje, sabia que me machucaria, apenas não imaginei que ainda doeria tanto pensar nele mesmo quase 10 anos depois. Minha mãe nunca escondeu que me achava uma tola por ter negado o pedido de casamento de Joe e acredito que me manter constantemente atualizada sobre a vida dele foi sua maneira de mostrar isso, de fazer com que eu me arrependesse pelo ato que ela tanto odiou, que tanto a envergonhou na frente das pessoas da cidade.

Quando planejo minhas viagens para casa, sempre tomo todos os cuidados para passar a menor quantidade de tempo possível nela. Dessa vez, não será diferente e assim que passo pela placa de "Bem-Vindos a Tupelo" começo a contar os minutos para que eu possa ir embora novamente. Às vezes me pergunto porque ainda volto. Não me sobrou nenhum carinho por esse lugar, pelas pessoas que moram aqui ou mesmo pela minha mãe. Mas ela insiste que eu volte pelo menos uma vez a cada determinado período de tempo, que mantenha as aparências, que finja que nos damos bem e que eu não tenho vontade de fugir de volta para Los Angeles tão logo ponho meus pés nesse lugar.

Minha casa está imutável. Permanece com suas paredes na cor bege com acabamentos brancos, a varanda rebaixada com trepadeiras cobrindo perfeitamente os postes de sustentação dão o mesmo ar de casa de conto de fadas desde a minha infância. Seria a casa dos sonhos de qualquer pessoa, grande e bonita, com um perfeito gramado bem cuidado, exceto pelos acontecimentos que ocorriam dentro dela. Todos os gritos, as portas batidas, as garrafas quebradas tornavam esse lugar um pesadelo, um lugar que gritava que você deveria fugir na primeira oportunidade. E foi o que eu fiz, mesmo que no momento errado. Mesmo que minha fuga tenha magoado a pessoa mais importante do mundo para mim na época.

Após estacionar meu carro na entrada da garagem coberta de neve respiro profundamente enquanto me preparo para entrar. Sinto todo o nervosismo e a ansiedade dos meus tempos de adolescente se estabelecendo sob minha pele, aguardando o momento em que uma palavra ácida da minha mãe fará tudo explodir. Odeio essa sensação, odeio o sentimento de estar prestes a estourar a cada milésimo segundo.

Puxo minha pequena mala do banco do carona e saio do carro, apoiando-me cuidadosamente na lataria para não escorregar devido a neve derretida que se acumula sob meus pés. O frio faz minha respiração formar leves nuvens cada vez que expiro e eu fecho os olhos por um segundo antes de bater na porta.

— Finalmente! Pensei que estava esperando pegar um resfriado sentada naquele carro — É a primeira coisa que minha mãe fala para mim depois de um ano sem me ver. — Não ia melhorar em nada a sua aparência. Meu Deus, o que aconteceu com seu cabelo?!

— Olá para você também, mãe — Respondo, ignorando sua pergunta. — Eu estou perfeitamente bem, obrigada por perguntar.

Minha mãe, assim como a casa, permanece inalterada, como se os anos não tivessem passado para ela como passaram para todos os outros seres humanos. Se não fossem pelas pequenas rugas no canto dos seus olhos, além de seu cabelo loiro claramente tingido, eu diria que ela é a mesma que me olhou com desgosto enquanto eu entrava no táxi em direção à estação de trem quase 10 anos atrás. 

Ela me analisa, seus olhos escaneiam minha roupa depois que eu tiro meu casaco. Catherine claramente não gosta do que vê e me dá as costas, indo em direção a cozinha. Respiro fundo mais uma vez e sigo para o andar de cima. Meu quarto é o mesmo da minha adolescência, as paredes rosas e uma cama de madeira branca, elegantemente decorada com um dossel. Meus velhos ursos de pelúcia e bonecas decoram um canto do cômodo, enquanto o outro tem uma escrivaninha. A janela está fechada, a cortina florida cerrada impede a passagem da maior parte da luz e o aquecedor desligado deixa o lugar ainda menos convidativo. Ponho minha mala em cima da cama e um porta retrato na cabeceira chama minha atenção. Ele não estava ali antes e eu tenho certeza que minha mãe o pôs em um local visível de propósito, para me machucar. Para me mostrar o que eu perdi, mesmo que eu não precise de lembrança alguma.

É uma foto minha com Joe durante o baile de formatura do ensino médio. Ele estava ainda mais lindo do que de costume, seu terno preto elegantemente cortado destacava sua silhueta marcante. Seu braço estava ao redor da minha cintura e os olhos em mim enquanto eu sorria para a câmera. Estávamos namorando há pouco mais de um ano quando esse baile ocorreu e essa foto foi tirada pela mãe dele no gramado da casa dos Bowery. Essa noite foi uma das mais especiais que passamos juntos…

Há uma rachadura no canto do vidro, resultado de um ataque de tristeza após aquele fatídico pedido de casamento no dia do aniversário da cidade, o dia anterior à minha fuga. Engulo em seco toda a dor que me invade e deposito o porta retrato com o vidro para baixo, me impedindo de ver a foto novamente se olhar em sua direção por acidente.

Ouço um baque e o barulho característico de vidro se quebrando vindo do andar de baixo. Ao descer a escada quase correndo encontro minha mãe xingando parada entre os cacos de uma tigela cheia de molho espatifada no chão.

— Você está bem? — Pergunto, meio preocupada. Não há sinais de cortes nela, apesar da quantidade impressionante de vidro espalhado pelo piso.

— Claro que estou, Dorothea. A tigela só escorregou da minha mão e… Bem, você pode ver — Ela suspira, resignada. 

Percebo que ela está de avental e então me dou conta do que estou vendo: Minha mãe cozinhando. Poucas vezes, na minha vida, vi Catherine se sujeitando a cozinhar uma refeição de natal para nós então a visão dela de avental com panelas no fogo é bastante desconcertante.

— Você está cozinhando? — Não consigo deixar a incredulidade longe do meu tom.

— Você não está vendo? — Devolve e eu pisco diante do seu tom bruto. — Que bagunça! 

— Por quê? — Entro na cozinha, ajoelhando-me para pegar os cacos maiores.

— Achei que deveríamos ter uma refeição natalina este ano — Ela diz, sem se abaixar para me ajudar. Lanço um olhar duvidoso em sua direção e ela revira os olhos. — Convidei Mandy Elliot para o jantar e pensei que poderia fazer algo, em vez de comprar. Você lembra dela, a mãe da Selena? Vocês costumavam ser boas amigas.

Minhas botas deslizam no chão escorregadio de molho e eu me apoio em uma mão, cortando a palma ao fazê-lo. Não olho para cima querendo esconder meu choque com a notícia.

— Você é um desastre ambulante, Dorothea. Tente ser cuidadosa e limpe o molho antes que ele manche o chão inteiro — Diz e se afasta, indo em direção ao fogão para mexer nas panelas.

Selena Elliot e eu podíamos ser consideradas amigas para quem olhasse de fora. Estudávamos na mesma turma, frequentávamos os mesmos lugares e tínhamos o mesmo círculo de amigos. Nos arrumávamos para festas juntas, até dormíamos uma na casa da outra, arrumávamos garotos para ficar juntas. Mas para mim, não éramos amigas. Selena era uma garota divertida, que topava qualquer loucura que eu propusesse e que era bom de se ter por perto, sempre disposta a conversar ou beber, as duas coisas na mesma medida. Era conveniente tê-la por perto e eu tenho certeza que ela tinha a mesma sensação comigo.

— Por quê? — Pergunto quando me levanto, lavando o corte da minha mão na pia. Observo a água se tingir com seu sangue e chio baixinho com a ardência que toma conta da minha palma. Minha mãe olha para mim. — Por que convidou Mandy Elliot para o jantar de natal?

Minha mãe mexe cuidadosamente algo na panela a sua frente, sem olhar para mim ao responder. Sua boca forma uma linha tensa.

— O marido dela, Ricardo, saiu de casa algumas semanas atrás. Ela tem estado uma bagunça desde então e eu pensei… Pensei que ela poderia se animar em jantar conosco, você sabe. Sair um pouco de casa, principalmente em uma data tão delicada — Ela termina sua fala tão baixinho, com tanta suavidade que eu quase não ouço.

Quem é essa mulher e onde foi parar Catherine? Minha mãe não costuma se importar com qualquer pessoa além de si mesma, muito menos se essa pessoa for da nossa cidade. Só depois de perceber seus traços levemente tristes que entendo a razão: A situação de Mandy a lembra o que ela passou quando meu pai saiu de casa. Eu era pequena demais para ter qualquer memória desse dia, mas sei que foi em algum momento perto do Natal. Assim como Mandy, minha mãe foi abandonada por seu marido em uma data que deveria ser de festividade. Ela compreende o que Mandy está passando e sou surpreendida pela sua empatia. Não sabia que ela era capaz desse sentimento e a descoberta é quase chocante.

— Isso foi… Muito legal da sua parte, mãe — O elogio queima na minha garganta, mas é verdade. Sinto algo próximo ao orgulho por ela. 

— Eu sei — Ela dá de ombros e o sentimento de orgulho se apaga tão rápido quanto surgiu. Minha mãe não se importa se sinto algo positivo em relação a ela, eu já deveria estar acostumada. — Quando terminar de limpar essa bagunça, preciso que vá comprar algumas coisas que estavam nesse molho.

Seu tom de ordem me causa irritação e eu preciso me controlar para não dar uma resposta mordaz. Em vez disso, varro os cacos de vidro menores e limpo o molho do chão com um pano, tendo cuidado de não deixá-lo manchado com produto de limpeza, evitando suas reclamações.

Dificilmente saio de casa quando estou na cidade, permanecendo em meu quarto ou no quintal durante a maior parte do tempo, evitando ao máximo ter contato com qualquer habitante desse lugar. Por isso, a perspectiva de ter que ir ao mercado para atender a ordem da minha mãe me deixa nervosa. Levo o máximo de tempo possível protelando a minha ida até que ela grita comigo e eu não posso mais evitar. Faço uma lista mental com todas as coisas que Catherine necessita, visto meu casaco e ponho um gorro preto, evitando que meu cabelo fique exposto. É uma das muitas táticas que uso muito em Los Angeles para não ser reconhecida na rua.

Estaciono na frente do mercado e espero alguns minutos, observando a movimentação. O frio faz com que as pessoas evitem sair de casa, então as ruas estão bastante vazias e quando percebo que ninguém se dirige ao mercado, saio do carro e entro no estabelecimento. O frio faz minhas mãos doerem ao tocar no carrinho de compras e eu quase suspiro de alívio quando o ar quente dos aquecedores começam a fazer efeito no meu corpo.

Há poucas pessoas no interior do local e eu me encolho dentro do meu casaco, puxando a gola para cima e o gorro para baixo, tentando ao máximo ficar irreconhecível para qualquer um que olhe na minha direção. Rapidamente pego os ingredientes pedidos por Catherine, passando reto pela seção de bebidas alcoólicas. Frequentei bastante essa seção quando morava aqui, roubando bebidas durante a adolescência, enquanto algum amigo distraía o Tucker, dono da loja, ou diariamente comprando whisky barato depois que completei 21 anos. Mas essa não sou mais eu, tento não beber mais todos os dias ou recorrer a uma garrafa de álcool sempre que estou sentindo emoções demais. Todos os dias tento me convencer que essa Dorothea ficou na estação de trem quando decidiu ir para Los Angeles viver uma vida diferente, longe do julgamento dessas pessoas, longe dos olhares e cochichos. Longe da dor.

Tucker não me reconhece enquanto registra minhas compras e eu fico grata. Seguro minhas sacolas, prestes a sair quando ouço meu nome ser chamado.

— Dot, é você? — Uma voz fala atrás de mim.

Congelo no lugar por um segundo antes de virar e encontrar Danielle.

— Hey, é mesmo você! Quase não a reconheci com todas essas roupas — Ela sorri para mim, se aproximando. 

— Dani, oi! — Forço-me a abrir um sorriso.

Ao contrário de minha mãe, Dani sofreu com a ação do tempo. Apesar de ter apenas a minha idade, há indícios de fios brancos em seu cabelo e seu rosto é marcado por linhas de expressão. Mas ela continua bonita, seu sorriso grande que ocupa a maior parte do rosto ainda é o mesmo das minhas lembranças. 

— Meu Deus, eu não te vejo há séculos! — Ela passa um braço pelos meus ombros, abraçando-me. A última vez que nos vimos foi naquela noite e ela sabe bem disso.

— É, eu não costumo vir muito à cidade — Digo em tom de desculpas.

Dani ri, as compras esquecidas em cima do balcão de Tucker. 

— Claro que não! Imagino que sua vida seja agitada demais para lembrar dos pobres mortais da sua cidade natal, não é? — Ela me cutuca de leve com o cotovelo. Sinto um tom de crítica em sua frase. — Imagino que tenha vindo visitar sua mãe. Ela continua linda como sempre, não é? Parece que dorme em formol! 

Não quero continuar essa conversa fiada com Danielle, a mesma garota que costumava ter uma paixonite pelo meu ex-namorado. Dani continua falando e eu apenas assinto, vagamente ciente que ela está comentando sobre nossos antigos colegas da escola.

— Teremos uma reuniãozinha amanhã à tarde, você está sabendo? A escola nos cedeu o campo para uma confraternização, Karlie está organizando tudo. Seria ótimo se você pudesse aparecer! Tenho certeza que todos ficariam bastante felizes em ver você lá.

Ah, sim. Ficariam bastante felizes em ter um tópico novo para fofocar. Tenho certeza absoluta que no segundo que eu der as costas para Danielle ela mandará dezenas de mensagens para todos os seus conhecidos avisando sobre o avistamento da ovelha negra. Todos saberão que eu estou na cidade e especularão o motivo: Minha carreira se encerrou em LA? Trouxe alguém para casa a fim de apresentá-lo para minha mãe? Saí de uma clínica de reabilitação e preciso de monitoramento constante? Serão tantas teorias! Fico quase ansiosa em ouvir algumas, mesmo que isso me faça mal, apenas para saber até onde iria a criatividade deles. Minha volta será um fato novo para animar suas vidas medíocres e entediantes, como todos os anos quando alguém me flagra, mas não me incomoda.

Dani ainda está esperando minha resposta ao convite, olhando para mim ansiosamente.

— Ahn… Eu não sei, Dani — Franzo o cenho, tentando pensar em uma mentira rápida, mas nada me vem à mente. — Eu… Talvez eu esteja ocupada, sabe como é. Mas obrigada pelo convite mesmo assim — Ela abre a boca para argumentar, mas eu a interrompo. — Eu preciso ir, minha mãe está esperando esses ingredientes para continuar a fazer nosso jantar e você sabe como ela pode ser impaciente — Rio, sem humor. — Vejo você depois.

Saio do mercado praticamente correndo, derrapando no gelo. Bato a porta do carro, jogo as compras no banco de trás e fecho os olhos, tentando controlar minha respiração. Não contava em encontrar alguém do passado, não contava que alguém me reconheceria e isso toma conta da minha mente. Não queria que ninguém soubesse da minha presença, muito menos alguém da minha antiga escola! Danielle realmente acha que um convite para participar de uma confraternização de antigos alunos da turma é uma boa ideia para mim? Meus anos de adolescente foram um inferno, anos que eu apagaria da minha memória se pudesse. E todas aquelas pessoas têm um papel, por menor que seja, nisso. Os adultos negligentes, os adolescentes que fizeram tudo se tornar pior em alguns momentos.

Quando me acalmo o suficiente, dou partida no carro e dirijo para casa.

— Ora, pensei que só conseguiria terminar de cozinhar no próximo Natal! — Minha mãe reclama quando ponho as compras na ilha no centro da cozinha. 

Não digo uma palavra, apenas arranco o gorro e o casaco, subindo a escada para o meu quarto. Deito na cama e fecho os olhos, desejando que todas essas emoções se apaguem. Minha garganta urge pedindo álcool, só um pouco, apenas o suficiente para me acalmar. Sinto minhas mãos tremerem e apesar do frio, uma leve camada de suor brota na minha pele.

Meu coração está acelerado demais, assim como minha mente e eu preciso de algo para me acalmar. Corro para o banheiro e ligo o chuveiro, ficando embaixo dele com roupa e tudo. A água está quente o suficiente para machucar, mas eu não me importo. Apoio a cabeça na borda da banheira, fechando os olhos.

Flashs piscam por trás das minhas pálpebras e eu quero gritar, quero muito gritar, mas não posso. Ponho a mão na boca e mordo as costas da mão cortada, sentindo o gosto pesado de sangue inundar minha língua. Não sei quanto tempo levo para me acalmar, mas em algum momento minha mente silencia e eu consigo distinguir um pensamento de outro. De repente a porta do banheiro se abre e minha mãe para na soleira. Seus olhos percorrem o ambiente, parando em mim deitada na água ainda vestida. Seu nariz torce e seus lábios se franzem, uma expressão amarga que comumente é dirigida a mim.

— Recomponha-se e se vista bem. As Elliot chegam em alguns minutos — É só o que diz e fecha a porta. 

Ela não pergunta se estou bem, não pergunta o que aconteceu. Apenas dá uma ordem e vai embora, como sempre aconteceu. Eu não deveria mais me importar com isso. Não tenho mais 10, 15, 20 anos, em busca de sua aprovação inalcançável. Mas sua indiferença, inexplicavelmente, ainda me machuca.

Ponho um vestido vermelho com detalhes brancos, o tom combina com meu batom. Decido deixar meu cabelo solto e coloco meu salto alto. Olho para minha mão machucada dos dois lados e a enfaixo, sabendo que essa pequena falha não agradará minha mãe. 

Quando desço ela já está arrumada, organizando a mesa de jantar. A saia dela é preta e a blusa decotada destaca sua silhueta magra, seus saltos a deixam com minha altura. Ajudo a organizar os pratos, percebendo quando ela olha para minha mão enfaixada sem fazer nenhum comentário. 

— Comporte-se, Dorothea — Ela me diz, sem olhar na minha direção enquanto dobra os guardanapos. — Espero que tenha um comportamento exemplar, assim como a ensinei.

— Eu não sou mais criança, mãe — Respondo. 

Ela ergue os olhos para mim, tão frios quanto o ar lá fora.

— Então pare de agir como uma — Devolve. Sei que ela está se referindo a ter me encontrado de roupa na banheira.

Engulo o nó que se forma na minha garganta. Qualquer mãe se preocuparia ao encontrar sua única filha naquele estado. Mas não a minha. Nunca.

A campainha ressoa pela casa e minha mãe endireita os ombros, erguendo o queixo. Ela caminha até a porta com um sorriso ensaiado.

— Mandy, querida! — Ouço seu cumprimento exagerado.

Imito sua postura, caminhando até a divisão da sala de jantar com a sala de estar. 

— Selena, que bom que conseguiu vir! — Isso me faz parar. 

Não estava esperando que Mandy fosse trazer sua filha. Uma onda de pânico ameaça se instaurar em mim, mas eu me forço a controlar minhas emoções. Me tornei muito boa em fazer isso durante meus anos em LA onde o que importa é apenas as aparências e o que você finge ser. 

Ambas tiram os casacos enquanto respondem os cumprimentos de Catherine. 

— Sim, ela está aqui! Como soube? — Minha mãe pergunta a Selena que tinha perguntado por mim.

— Boa noite, meninas — Decido me fazer notar.

Selena vira para mim de repente e fica boquiaberta como se estivesse vendo um fantasma. Ela não envelheceu como Dani, permanecendo a mesma garota linda que costumava ser. Em poucos passos, Selena cruza a sala e está na minha frente, abraçando-me.

— Eu quase não acreditei quando vi a mensagem de Dani, mas você está mesmo aqui! — Ela diz enquanto me envolve. — Não acredito que você está mesmo aqui, Dot!

— Hey, Sel — Cumprimento-a com seu apelido de infância. Devolvo seu abraço por alguns segundos antes de me afastar. 

Ela me olha de baixo para cima, incrédula.

— Você não mudou nada! — Diz e sorri — Claro que eu sabia disso, vejo você na TV, nas revistas… Mas é diferente ver você pessoalmente.

Selena parece genuinamente feliz em me ver e eu me pergunto se nossa amizade tinha um significado diferente para ela do que para mim.

— Espero que seja um diferente bom — Brinco e ela ri novamente, confirmando. 

Cumprimento Mandy com um abraço, notando as mudanças em seu rosto. As olheiras profundas que nem a maquiagem foi capaz de esconder, o vestido que um dia cabia perfeitamente hoje pende na cintura com o peso perdido por ela. É uma visão lastimável e agora entendo de verdade a razão para minha mãe tê-la convidado para ficar conosco hoje. Não que sejamos companhias maravilhosas, mas com certeza estar conosco é melhor para ela do que estar afogada em sua própria tristeza. 

Pego a travessa que ela traz nas mãos e sigo para a sala de estar, deixando Mandy e Catherine acomodadas no sofá, enquanto Selena vem atrás de mim.

— Nem acredito que estou realmente vendo você, Dot. Sua mãe disse que você nunca passa mais de um dia na cidade quando vem visitá-la e por isso nunca nos vemos, então quando vi a mensagem de Dani sobre você ter voltado para casa soube que precisava vir com minha mãe e encontrá-la — Selena diz. Seus olhos castanhos brilham ao olhar para mim tamanha sua empolgação. — Não nos vemos há, o que, 8 anos? É uma vida, Dot! 

— Vejo que Dani continua tão… informativa quanto era anos atrás — Sorrio acidamente, segurando-me para não chamá-la pelo que ela realmente é: uma grande fofoqueira.

Minha mãe e Mandy estão conversando sobre o jantar quando voltamos para sala de estar e sentamos em um sofá de dois lugares.

— Então, me conta tudo! Como é viver longe daqui? Como é morar em Los Angeles tendo a vida que você tem?! — Eu finjo sorrir para ela.

Essa é uma das perguntas mais comuns que ouço das pessoas. Todos vêem apenas o glamour dessa vida, os bons momentos congelados em fotos, os poucos lapsos de alegria capturados em vídeos. Ninguém vê a escuridão que espreita na esquina, os demônios disfarçados em sorrisos, as sombras que, de vez em quando, estendem seus tentáculos e tentam te puxar em sua direção. Mas eu não julgo – ou pelo menos tento não julgar – as pessoas que pensam que essa vida se resume ao dinheiro que pode comprar todos os seus sonhos, afinal, eu já fui assim. Pensei que todas as luzes da cidade eclipsariam a escuridão dentro de mim e iluminariam meu interior sombrio quando na verdade eram apenas uma luz negra, refletindo as piores marcas fluorescentes do meu interior.

Não respondo nada disso para Selena. Sei que as pessoas podem interpretar como ingratidão, como se eu estivesse cuspindo no prato que comi por tantos anos ao falar sobre a realidade sombria que cerca a vida de pessoas famosas. E eu não sou ingrata. Gosto da minha vida em LA, da liberdade que a cidade me proporcionou.

— É uma vida boa — Respondo no mesmo tom que uso ao responder repórteres. 

— Uma vida boa?! — Ela praticamente grita, rindo com incredulidade. — Qual é, detalhes!

Okay, como é viver longe daqui e da minha mãe? Libertador. Não preciso corresponder às expectativas de ninguém, além das minhas. Construí uma carreira sozinha, sem minha mãe maltratando a minha mente. Fiz bons amigos, mesmo me sentindo solitária nesse quesito tanto quanto me sentia aqui, apenas com menos frequência. 

— A conversa está bastante agradável — Minha mãe fala antes que eu consiga responder a Selena. — Mas acho que deveríamos jantar antes que a comida esfrie, não concordam?

Não temos outra opção além de concordar, então levantamos e a seguimos na direção da sala de jantar cuidadosamente arrumada. Por alguns minutos o silêncio é preenchido apenas pelo arrastar das cadeiras e o bater dos pratos, pedidos para passagem de comida e elogios. 

Selena me conta sobre sua vida desde que a vi pela última vez. Ela não foi para faculdade, permaneceu na cidade e hoje trabalha como gerente em um restaurante sofisticado no centro da cidade.

— Não é uma vida glamourosa como a sua, mas é uma boa vida — Ela diz, dando de ombros. Franzo o cenho diante das suas palavras. Qual o problema das pessoas, sempre achando que viver uma vida normal não é uma boa vida?

Ela não casou, mas namora com um professor do ensino médio há alguns anos, eles estão juntando dinheiro para poder ter uma festa de casamento e comprar uma casa. Percebo Mandy engolir com dificuldade quando a filha menciona o casamento, mas ela não faz nenhum comentário sobre o assunto. Imagino que ela esteja bastante desacreditada na instituição "casório" agora e não quer que a filha cometa os mesmos erros. Minha antiga amiga então começa a falar sobre os nossos antigos colegas e automaticamente eu fico tensa na cadeira, esperando que ela mencione Joe. Quero saber sobre ele ao mesmo tempo que temo ter notícias suas, é um misto de sentimentos enlouquecedores.

— Dani convidou você para a nossa confraternização amanhã, não foi? Será apenas um almoço. Vamos jogar conversa fora, passar a tarde juntos lembrando os velhos tempos. Quer dizer, não é como se não nos víssemos com frequência já que alguns de nós permaneceu na cidade, mas mesmo assim será agradável ter todos juntos novamente, não acha?

Minha mãe olha na minha direção e sinto meu coração gelar diante de seu olhar mortífero.

— Você não me contou isso, Dorothea — Ela diz, calma na superfície, mas eu consigo ver o tornado se formando sob seus olhos.

Ganho tempo partindo meu pedaço de torta e bebendo um pouco de água antes de respondê-la.

— Não contei porque não é importante, mãe. Não pretendo ir de qualquer forma — Dou de ombros, sabendo que esse gesto a irrita. 

— O que você quer dizer? — Minha mãe pousa os talheres, os olhos em mim.

— Eu quis dizer que não tenho a intenção de comparecer a almoço algum — Devolvo no mesmo tom.

— E por quê? Se acha melhor do que seus antigos colegas de classe só porque agora é famosa? — Ela ergue as sobrancelhas perfeitamente desenhadas, uma expressão dividida entre maldade e desdém.

— Não é isso… Você sabe que não é! — De repente me sinto cansada. Cansada como não me sinto há anos e esse é um efeito que apenas minha mãe consegue ter sobre mim, me exaurir de uma forma única e rápida.

Mandy pigarreia baixinho e Catherine pisca, parecendo lembrar que não estamos sozinhas.

— Vamos discutir o assunto mais tarde — Encerra a discussão e volta a comer.

Selena me lança um olhar solidário e eu tento sorrir, mas não consigo. Espalho a comida pelo prato, ocasionalmente levando uma pequena porção para a boca, até que todas decidimos parar de fingir que estamos comendo e encerramos o jantar. 

Mandy e minha mãe ficam na sala de estar enquanto eu e Selena seguimos para a varanda, apesar do frio mortal que está fazendo. Ela senta na pequena cerca que limita nossa varanda e eu na sua frente, encostada em um poste de sustentação. Deixo meus olhos vagarem para fora, admirando a neve caindo. Não sou a maior fã da neve, mas admiro sua beleza. A esterilidade branca e a sensação de pureza.

Pela visão periférica vejo Selena sacar um cigarro e um isqueiro. Viro a cabeça em sua direção, olhando-a curiosamente. Estendo a mão e ela ri, jogando o maço para mim.

— Não conto para sua mãe se você não contar para minha — Brinca enquanto acendo o cigarro e ponho entre os lábios. Era algo que falávamos nos velhos tempos quando fazíamos coisas que nossas mães não aprovavam.

Selena sorri e suspira. É quase como se fossemos adolescentes novamente, agindo de forma escondida das nossas mães e prometendo manter segredo. Não sou fumante, mas é uma saída para o meu estresse e eu acho menos nocivo para minha sanidade do que o álcool então me permito. Ouvimos um baque e congelamos, ambas com os cigarros a meio caminho da boca. Quando percebemos que não são nossas mães se aproximando, rimos juntas.

— Isso é tão idiota — Ela balança a cabeça. — Nós duas com medo de sermos pegas fumando como se ainda estivéssemos com 15 anos fazendo algo errado. 

— Alguns hábitos são difíceis de mudar — Respondo me referindo a como costumávamos aprontar juntas.

Selena assente e põe as pernas para cima, apoiando um cotovelo nos joelhos. Sinto seus olhos em mim, mas me mantenho olhando para a neve. Aconchego-me no meu casaco, querendo desesperadamente um pouco de calor.

— Você deveria ir amanhã — Ela diz depois de alguns minutos em silêncio. — Acho que faria bem a você.

Como passar algumas horas com pessoas que me fizeram mal por anos pode ser bom para mim, é um segredo. Além do grande risco de trombar com uma pessoa em particular que sei que não estou pronta para rever, não importa quanto tempo passe.

— Não acho que seja uma boa ideia, Sel — Respondo, soprando a fumaça para o lado.

Selena não fala nada, mas sei que ela ainda está me olhando. Ouço quando ela joga o cigarro na neve, o chiado baixo dele ao entrar em contato com o frio.

— Ele não vai estar lá — Fala. Não sei como responder ou o que fazer então levo o cigarro aos lábios. — Joe e Marjorie saíram da cidade há anos. Ele só volta para visitar os pais, na maioria das vezes durante o verão, então você não vai esbarrar nele por acidente.

É a primeira vez que ouço o nome da esposa de Joe. É como levar um choque elétrico. Parece tornar real o fato de que ele está mesmo casado, está mesmo vivendo por aí com alguém de verdade, uma vida tranquila e feliz como sempre mereceu. E eu continuo no mesmo lugar que sempre estive: sozinha. Quando minha mãe falava sobre ele é claro que doía, mas agora… É como se estar na mesma cidade que tudo aconteceu entre nós tornasse mais real o fato de que eu o perdi e outra mulher está no meu lugar. Amplifica a dor enterrada, de alguma forma.

O nome dela me soa um pouco familiar, mas não é um nome tão comum atualmente, então não sei de onde pode ser essa sensação de déjà-vu.

— Sei que você achava que todo mundo odiava você — Selena continua suavemente. Olha para o lado, na direção da porta, e depois para mim, sua expressão é determinada e suave ao mesmo tempo. Ela se inclina para frente, tocando meu joelho. — Sua mãe fez você achar isso a vida inteira, fez você pensar que estava sozinha e que era detestável, mas não é verdade, Dot. As pessoas podem verdadeiramente gostar de você, sem segundas intenções.

Fico sem palavras, sentindo minha garganta embargada. O que ela diz vai contra tudo o que ouvi durante toda minha vida, mesmo em Los Angeles.

"Não confie demais nas pessoas, Dorothea. Elas sempre querem algo de você."

"Você é linda demais, por isso todos tem inveja e não se pode confiar nos invejosos, pode?"

"Aqui você deve sempre saber onde pisa pois sempre vão tentar puxar o seu tapete, sempre vão tentar te derrubar"

Essas são apenas algumas coisas que ouvi em sessões de fotos, em bastidores de propagandas, até debaixo do meu próprio teto. Desde criança ouvi minha mãe falando sobre a inveja e ciúmes que as pessoas da cidade tinham dela. Primeiro da sua beleza e do seu sucesso. Depois da minha beleza e do meu sucesso. Ela sempre me ensinou a nunca confiar em ninguém, apenas em mim mesma, sempre disse que nenhuma das garotas eram minha amiga de verdade (e eu sentia isso na época) porque elas tinham inveja de mim. Nem mesmo nela eu deveria confiar, como ela provou diversas vezes.

Catherine sempre fez questão de apontar minhas falhas, de dizer o quanto minha personalidade faria com que as pessoas me detestassem, que eu deveria brilhar, ser simpática e engraçada, que eu deveria mudar meu jeito de ser ou as pessoas nunca gostariam de me ter por perto. Que elas realmente não gostavam de mim, que eu era apenas conveniente de se ter por perto. Então eu mudei, fiz de tudo para ser uma pessoa mais amável, mas nunca parecia ser o suficiente. Para ninguém, muito menos para ela. Hoje eu me pergunto se não foi sempre ela quem não gostava de mim, que me achava detestável e me fazia achar que as pessoas me viam assim também.

Sinto-me sem fôlego e a fumaça do cigarro não me ajuda em nada então jogo-o para longe. 

— Claro que algumas de nós tínhamos inveja de você, na época — Selena continua falando. — Você era a menina mais linda da cidade, a que chamava atenção de todos os garotos e que os tinha na palma da mão. Era só você estalar os dedos que eles caíam de joelhos aos seus pés — Ela ri, divertida. — Era engraçado assistir aquilo. Todo mundo queria ser você ou estar com você, era uma loucura.

Não sei dizer com quantos garotos me envolvi nessa época, a única coisa que lembro é a sensação de precisar estar com alguém, a necessidade de ouvir palavras positivas mesmo que fossem falsas e vindas de pessoas que não significavam nada para mim. Até Joe passar a ter um significado diferente e apenas as palavras dele importarem até determinado momento. Até o barulho dentro de mim ser alto demais, até para o que ele dizia.

— Apenas apareça lá, está bem? — Minha amiga aperta meu joelho, chamando minha atenção. Olho para sua mão enluvada contrastando com minha pele. — Prometo não sair do seu lado, vou espantar todas as galinhas fofoqueiras que quiserem ferir seus sentimentos.

Rio a contragosto e olho para seu rosto. O mesmo rosto das minhas lembranças, simpático e alegre. Os mesmos olhos castanhos que para mim agora parecem levemente mais confiáveis. 

— Não sei se é uma boa ideia, Sel — Repito, negando com a cabeça. — Não me sentirei confortável perto daquelas pessoas e…

— Vamos fazer o seguinte: Você aparece, fica por uma hora e então vai embora. Eu não vou sair do seu lado enquanto estivermos lá — Selena me interrompe. Ela olha para mim com firmeza. — Mostre para todo mundo nessa cidade que eles não conseguiram destruir você, Dot. Mostre a eles o seu sucesso, deixe que eles presenciem isso. Deixe que eles e a sua mãe saibam que você conseguiu, que saiu dessa cidade e se livrou deles.

Devolvo seu olhar, sabendo que suas palavras não são inteiramente verdade. Os fantasmas das palavras rancorosas, das mentiras inventadas, dos olhares julgadores, e principalmente da minha mãe sempre me perseguiram, mesmo a quilômetros de distância. Mesmo que no fundo da minha mente, eles sempre estiveram lá duvidando de mim.

Mas eles não precisam saber disso. Desde que tenho consciência sou capaz de fingir. Me tornei mestre nisso, não foi? Sou capaz de mostrar a eles minha fachada intacta que esconde o espírito quebrado. Posso deixar que eles vejam a beleza que é minha vida, meu sucesso, tudo aquilo que achavam que eu não seria capaz de alcançar e que eu não era merecedora.

— Eu não lembro de você ser tão insistente — Brinco.

— As lembranças pregam peças às vezes. Eu era mais adorável do que insistente então talvez seu cérebro tenha apagado esse traço meu  — Dá de ombros e eu sorrio de verdade. A sensação espontânea dos meus músculos relaxando é algo tão bom.

— É, acho que foi isso — Bato meu pé no dela e Selena ri.

Ficamos em silêncio e observamos a rua novamente. Parou de nevar, deixando grandes acumulados brancos ao longo da calçada e da rua. Se não nevar novamente amanhã tudo estará molhado, como depois de uma tempestade. Quando eu era criança, nos momentos em que minha mãe não estava em casa, eu fugia para rua e brincava na neve, fazendo bonecos e anjos. Algumas vezes eu adoecia e minha mãe entendia o que eu tinha feito, fazendo-me me arrepender de ter desobedecido. Mas o arrependimento não durava muito e eu fazia a mesma coisa no inverno seguinte.

— Obrigada por ter convidado minha mãe hoje a noite — Selena diz, suspirando. — Ela está um caco desde que meu pai saiu de casa. 

— Não foi nada. Ela parece horrível, deve estar sendo muito difícil — Me solidarizo.

— Você não tem ideia — Sel engole em seco. — Mas é de se esperar, não é? Foram quase 30 anos de casamento e então… Ela precisa se acostumar a acordar sozinha e não ter mais um marido, alguém ao seu lado para lidar com a vida. É assustador, não acha? Você acredita, com todo seu coração, que vai ter alguém para o resto da vida e então, de repente, não tem mais nada e você está sozinha novamente. E sendo algo que a outra pessoa escolheu por você.

Olho para ela com surpresa, entendendo nas entrelinhas que esse também é seu medo. Selena balança a cabeça com vigor, parecendo querer espantar suas dúvidas e preocupações.

— Mas ela vai ficar bem — Diz com convicção. — Ela vai perceber que está melhor em sua própria companhia e seguir em frente. Meu pai não merece todo esse sofrimento.

— Pensei que você gostasse do seu pai — Aponto. Selena era uma garotinha do papai quando criança, lembro-me que ele sempre ia buscá-la na escola depois do trabalho. Lembro do quanto eu a invejava por isso.

Não lembro muito do meu pai, afinal, ele foi embora antes que eu pudesse ter memórias dele. Ouvi boatos, é claro, em especial aquele que dizia que eu não era filha de Edward Scott Finlay e que ele foi embora depois que percebeu isso. 

— Eu o amo, mas ele foi um babaca com a minha mãe e eu não posso perdoar alguém que a magoa. Sempre vou ama-lo e conversar com ele, afinal, é meu pai. Mas Mandy precisa aprender a ser sua própria pessoa, não a esposa ou mãe de alguém, sabe? E ele ter ido embora fará com que ela perceba isso — Sel responde.

As vezes eu me pergunto quem era minha mãe antes do meu pai – e eu por consequência – aparecer em sua vida. O que ela gostava de fazer, além de desfilar e fotografar? Como era a relação dela com seus pais? Foi a mãe dela que a fez entrar nesse mundo, como ela fez comigo? Nunca perguntei e ela nunca me contou. Sei que eles se conheceram no ensino médio e que meu pai se apaixonou por ela nessa época. Mas ela o amava? Acho que sim, já que se entristeceu quando ele partiu.

A porta da frente se abre e Mandy sai, seguida por minha mãe.

— Nós odiamos interromper a reunião de vocês, mas está ficando tarde, Sel. Precisamos ir — Mandy diz, sorrindo para nós.

Selena pula da cerca, os saltos batendo no chão suavemente. Ela se aproxima e me abraça.

— Vejo você amanhã? — Ela sussurra no meu ouvido e eu faço que sim com a cabeça. — Ah, que ótimo! Boa noite, Sra. Finlay! Obrigada pelo jantar, estava maravilhoso.

As três trocam despedidas e nossas visitantes vão embora, enfrentando o frio até chegar ao carro. Antes que minha mãe diga algo, passo pela porta e subo correndo para o meu quarto.

Ponho um pijama velho após o banho e sento no chão coberto pelo carpete, olhando para as estrelas que outrora eram azuis. Joe e eu as colocamos lá depois de uma aula. Queríamos colocar em disposição de constelações, mas acabamos desistindo e deixamos em ordem aleatória. Eu era mais alta que ele na época e pegamos a escada no sótão, quase sendo flagrados pela mãe com a mão na massa. Depois que as colocamos, deitamos nesse mesmo chão e as observamos por horas.

— Estrelas não são azuis — Joe falou, soando intrigado. 

— As minhas são! — Dei de ombros teimosamente. 

— Você não pode mudar a cor das estrelas, Dottie — Ele riu e eu bufei. Virei o rosto para olhá-lo e ele fez o mesmo, ficando sério em seguida. — São do mesmo tom dos seus olhos.

— São? — Perguntei, animada. As pessoas diziam que meus olhos tinham um tom impressionante e lindo de azul, mas eu preferia o tom escuro e profundo do azul dos olhos de Joe. Sempre me pareceram muito mais lindos.

Ele assentiu e virou o rosto para elas novamente. Quando a mãe dele chegou para buscá-lo e eu voltei para meu quarto percebi que havia uma estrela faltando. Anos depois, quando fui visitá-lo na faculdade pela primeira vez, durante um congelante novembro, percebi que havia uma estrela em sua mesa de cabeceira. A estrela que estava faltando na minha constelação particular.

Quando eu o confrontei sobre o roubo de anos atrás, Joe apenas riu e disse que tinha sido sua melhor ideia já que, quando ele sentia minha falta, podia pegar aquela pequena estrela e lembrar do tom exato dos meus olhos. Não pude brigar com ele depois disso. Obviamente ele nunca me devolveu a estrela e eu nunca a pedi de volta. Joe nunca escondeu o quanto sentia minha falta quando estávamos separados e eu amava isso, saber o quanto ele me considerava importante.

Olho fixamente para o pequeno espaço vazio em que a estrela roubada estava, deixando que as boas lembranças invadam minha mente. 

Nosso primeiro beijo. A primeira vez que ele segurou minha mão como sua namorada. Ele me (re) apresentando aos pais, um sorriso de orelha a orelha que poderia iluminar uma cidade. Os natais que passamos juntos, saindo da minha casa para a dele e depois ficando sozinhos até amanhecer. A noite de formatura em que tivemos nossa primeira vez, a insegurança dele e minha risada.

Tudo isso gira em minha mente enquanto me pergunto  – não pela primeira vez – sobre como minha vida teria sido se eu tivesse dito uma palavra diferente quando ele se ajoelhou na minha frente tantos anos atrás.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado ♥



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