A Melodia das Profundezas escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 5
Uma coleção de fontanelas




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—Eu avisei que se você viesse com mais enrolações... E pior, com gracinhas, você sofreria as consequências. - A voz grave retumbava pela sala escura, as enormes janelas com vidros não permitiam a passagem da luz lunar, as cortinas pesadas eram bloqueios intensos. - Você não agiu conforme às minhas ordens.

—Mas mestre... Eu lhe dei tudo o que for ordenado, eu segui passo a passo das suas regras, não há motivo algum para o senhor se zangar comigo. - Ele tremia intensamente, o passar áspero das ranhuras da pele da criatura o faziam tremer de pavor, ele sentia a alma sendo esvaída por cada movimento em falso que ele dava. - Foram 12... 12 almas puras para o senhor.

—Ou você é estúpido, ou você se finge de idiota! - E ricocheteou o corpo do homem contra uma cristaleira, que se partiu ao meio, cortando por completo o seu corpo, abrindo fissuras pelas quais o sangue escorria ao chão. Tentava levantar, mas as pernas e os braços tremiam de desespero. - Almas humanas, seu verme inútil! - E encerrou com um ricochete na cabeça do homem, que desmaiou no chão.

*

A salinha branca ao fundo da Igreja era apertada, contando com uma enorme mesa de madeira bruta com algumas cadeiras que se rodeavam do enorme tablado oval. Algumas pessoas se encontravam ali, muito preocupadas com os últimos acontecimentos. Eram o Padre Pagliazi, o Prefeito Augusto, o Xerife César, o qual também assumiu o compromisso de carcereiro até o momento necessário de entregar esse cargo e mais uns dois aldeões, que permaneceram calados durante toda a reunião. E, claro, temos Dona Gláucia.

—A desculpa da vez para a mulher participar como Diretora da Moralidade Familiar foi o cúmulo. - Podiam ouvir algumas das amigas beatas do lado de fora resmungarem, mas as rugas já de idade em Dona Gláucia nem mais se moviam de preocupação, com certeza era ínfima a sua preocupação com o que diriam, o importante era estar por dentro das atitudes do clero daquela cidade.

—Xerife, mais alguma informação dos desaparecimentos?

Fazia uns dois meses que um surto de desaparecimento de bebês e animais recém nascidos assombrava a delegacia e a Igreja e, por conseguinte, a prefeitura, sendo as reuniões dos três líderes da cidade muito mais frequentes do que realmente esperavam. Os animais foram os primeiros, mas a culpa sempre caía no desleixo de seu dono ao não fechar corretamente o cercado e esses fugirem para dentro da floresta, onde encontraram o fim trágico dentro do estômago de algum animal ainda maior.

Entretanto, o sumiço das crianças começou a preocupar muito, pois eram muitas as que nasciam, e não havia qualquer padrão entre elas, se eram meninas ou meninos, negros ou brancos, se eram prematuros ou nasceram perto da lua cheira, era uma incógnita sem fim e não havia meio para desvenderem isso, a não ser ampliar as equipes de segurança durante a noite na cidade e as equipes de busca e apreensão na floresta e cidade durante o dia.

—A cidade virou centro comercial da região, apesar do nosso pequeno tamanho. - Começou o prefeito. - Muitos passam por aqui, mas sem sinal algum de forasteiro que tenha ido embora às pressas nesses dois meses. Aliás, não tivemos visitas de viajantes no último mês, provavelmente o rumor se espalhou e as reações dos moradores tenham afugentado o pessoal.

—E para uma cidade que está crescendo, e foi constituída essa fama em cima da tragédia, uma nova calamidade pode nos derrubar. - César sempre apontava que a fama da cidade depois das situações com os monstros há três anos seria muito delicada, pois qualquer nova tragédia seria o suficiente para tirar essa fama.

—Muitos já se estabeleceram aqui, não será um incidente desses, que deve ter explicação humana, que irá nos derrubar.

—E se investigarmos os cidadãos? - Era a ideia de Dona Gláucia.

—Eu realmente já pensei nisso. - A própria mulher se assustou com o delegado possivelmente concordando com uma ideia sua. - Mas isso leva a outro problema. A cidade é muito da justiça pelas próprias mãos, várias vezes isso aconteceu. E não apenas no meu mandato como Xerife, mas muito antes de eu nascer. A coitada da Olga que foi enforcada em praça pública sem julgamento algum, já teve a Luzia há uns 5 anos que queimaram a casa dela porque desconfiavam que ela envenenara a cerveja de uma festa, sendo que foi um dos coroinhas que pregou uma peça, colocando remédio para dar dor de barriga em geral. São muitos casos para tentarmos agir e o pessoal acreditar que os primeiros investigados são os culpados.

—Mas creio que isso pode ser feito de uma maneira que atraia menos atenção. - Pagliazi virava uma taça de água, era o que todos achavam, até seu rosto se avermelhar por completo e o cheiro da vodca atingir o rosto de todos. - Podemos abrir um período de confissão, mas como aconselhamento religioso, e as pessoas que vierem, vamos perguntando nesse meio tempo. Claro, é frisarmos que o silêncio deles é necessário depois, para que não ocorra mais tragédias.

—Pode ser uma ideia boa, o pessoal gosta de vir para cá confessar com o senhor. Só temos de averiguar se todos virão, não apenas meia dúzia.

—Eu sei que essa eu e a Dona Gláucia não vamos concordar, até eu estava temeroso em aceitar esse tal de Baile da Primavera no último sábado da primavera, mas se falarmos que isso fará parte do rito do baile, para deixá-lo mais religioso, acredito que a adesão de pessoas será muito maior.

Dona Gláucia até refletiu mais pensativa, isso realmente seria uma ideia ótima.

—Só precisamos reforçar a segurança para o pessoal que está para ter filhos e aqueles que já nasceram, pois o Baile é daqui três meses.

—Eu cuido da segurança, o Padre e o Prefeito cuidam das entrevistas, uma hora o criminoso aparecerá.

*

—"Aqui jaz o pecador que o sangue lavará essa terra com desgraça e maldições"... Mais maldição que essa terra já tem, eu acho difícil. - César esfregava a cabeça enquanto resmungava. O sangue secou por completo, e eles conseguiram andar por cima sem o chapinhar das botas. - Isso é preocupante, já não bastava o desaparecimento dos bebês e agora temos um doido metido a profeta das trevas.

—E tenho certeza que o Salazar não é o único a fazer isso. - Tobias caminhava por entre o entulho que o homem deixava espalhado. - Claro que em três meses você pode acumular muito lixo se for desleixado, porém tem muita carcaça aqui de animais para que ele apenas tenha comido sozinho, ainda mais no inverno, em que é mais fácil manter carne em conserva.

—Ele também se isolar aqui em cima não ajuda muito com a fama dele, as beatas já começaram a jogar os rumores para cima dele a partir do momento em que o homem entrou bêbado em uma das missas de domingo.

—Ele doou todo o dinheiro dele e a antiga casa dele para um museu para a Igreja e ainda é crucificado pelas fofocas da Gláucia e companhia, que coerente. - Tobias continuava a remexer nos armários embaixo da pia, ali só havia uns produtos para retirada de mal cheiro, certeza que desossar aqueles animais tenha causado um mal odor insuportável. - Agora estou pensando, e se cavarmos do lado de fora? Certeza que acharemos os restos mortais das crianças que desapareceram.

—Você não está supondo que Salazar tenha sido o assassino? - César encarava o menino. Estava atônito, mas não parecia surpreso, o choque parecia grande, mas o homem realmente estava diferente nos últimos meses. - Será que ele fez algum tipo de pacto?

—Sobrou até para Lúcifer agora.

Tobias deu um grito assim que abriu um dos armários, havia vários crânios ali dentro, a maioria parecia de animal, mas muito eram bem menores, ainda apresentavam alguma cartilagem, certeza que era as crianças desaparecidas.

—Ele não acharia isso em algum mercado comum.

—Estou começando a acreditar que seria preferível que esse homem tivesse ficado a mercê dos corvos e dos lobos no Cemitério. - César saiu para fora, ainda estava pensativo sobre toda a situação, precisava conversar com o Prefeito, toda a investigação não saíra como planejado, o assassino foi descoberto, mas ele estava morto, e não tinha meios de descobrir se havia um assassino realmente, ou se foi um suicídio.

—Não passou da hora da cidade ter aqueles médicos lá? Que mexe nos corpos de quem morreu?

—E você precisa parar de ler os livros da biblioteca do Matheus, nem tudo o que lemos nos livros é palpável para a nossa vida, ainda mais quando se lê os livros feitos para atender a cidade grande. - Ele sabia que o Tobias falava de um médico legista, mas seria custoso demais trazer um desses para lá, a cidade ainda não tinha suporte financeiro para isso, apesar que o número de mortes suspeitas eram muitas. - Apesar que nossa situação estaria menos difícil se ele dissesse se o homem, ao menos, cometeu suicídio ou não.

—E isso faria muita diferença, daria para saber se há outro... E nem deve haver pistas na casa antiga dele.

—Ele deixou de andar por lá desde que abdicou tudo? Ou ainda manteve contato com alguém que ali dentro trabalha?

—Eu já atendi muitas vezes o homem no bar e nunca citou uma única vez se ele havia ou não ficado com alguma chave, mas eu sempre suspeitei que sim, foi uma conquista para ele, e para a cidade, ter uma casa daquele porte, é quase uma mansão, seria impossível querer desfazer todos os laços que me ligassem a ela. - César encarou o garoto.

—Repita o que você disse no final.

—"Desfazer todos os laços"... O que isso tem a ver?

—Por que ele quis sair da mansão e doar todo o dinheiro? Esse sentimento de liberdade, altruísmo e servidão a Deus não vem do nada.

—Ah tá, e agora você quer achar uma explicação sobrenatural para o homem que enlouqueceu, começou a roubar crianças e animais, e agora se matou.

—Eu vou te catar na porrada se não me ouvir.

—Mais? - César apenas ignorou o garoto.

—Eu passei pelo Cerco da Matriz, eu vi com a Emanuele que o vemos não é nada real e pode estar totalmente escondido dentro das nossa mente, temos que ser ágeis nisso e deixar o real de lado. Ela sempre descobriu muitas coisas nos livros, claro que ela tinha ajuda, será que Matheus nos ajudará mais uma vez? - Ele ficaram em silêncio mais uma vez, César se sentou no mesmo toco de madeira que se sentara antes de adentrar à casa, Tobias ficou em pé, parado próximo à porta, encarando o Xerife. O suor escorria pela fronte dos dois, apesar do vento gélido que percorria o local, a luminosidade da casa deu uma reduzida, provavelmente algumas velas acabaram.

O som de um enorme espelho trincando quebrou o silêncio, os dois se assustaram e correram para dentro da casa. Uma das lamparinas, talvez pelo calor, com o choque térmico do vento entrando, trincou o vidro. Uma forte ventania começou do lado de fora, batendo a porta.

—Mas esse ventinho não bateria a porta... - Nisso, repararam que a porta se abria para dentro, não para fora, não tinha como ela ter se fechado com o vento. - Isso está estranho. - Ao tentar abrir a porta, ela estava emperrada, nem se movia. Um grito de Tobias assustou o Xerife, que se virou, o garoto que estava no chão, desacordado.

Quando menos reparava ao seu entorno, um movimento fez a lamparina cair no chão, e aquela foi a faísca inicial.


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