A Melodia das Profundezas escrita por Vale dos Contos Oficial


Capítulo 4
Ditos tais segredos




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A noite dava sinais que seria uma madrugada fria, o céu noturno já caíra sobre a cidade, os sinos da Igreja não ressoavam além da meia noite, permitindo que as badaladas não assustassem mais a população que já adormecia. O barzinho na esquina de cima da Igreja fervilhava aos poucos, com pessoas saindo para fora por conta da aglomeração que lá dentro se formava.

—Zacarias, homi, cadê essa cerveja?

—Inferno, eu disse para esperar que a sua não gelou o suficiente, mentecapto.

O borbulhar de conversas cresciam e explodiam em êxtase conforme as bebidas alcoólicas eram servidas, para homens cansados e cujas esposas estavam em casa, permitindo que os filhos dormissem sem verem seus pais caírem rua abaixo e saindo com ferimentos pelo corpo todo.

—E você, Césinha, vai arranjar uma esposa quando? Já está virando os vinte e cinco anos e nada de você arranjar uma dona de casa? - O Xerife, tentando ignorar a conversa, começou a virar levemente sua caneca de cerveja para a boca, com levantar lento a fim de mostrar que estaria ocupado pelo próximo tempo. - Ande, homem, vire tudo e responda o que o povo quer saber.

—Mas deixar o homem aproveitar uma boa caneca de cerveja nem isso você permite, mas que coisa. - Zacarias entregou na mesa de canto em que se encontrava uns 3 homens sentados, dentre eles César, e mais uns em pé, apenas conversando sobre assuntos aleatórios, quase majoritariamente reclamando de suas esposas.

—Se for para arranjar uma esposa às pressas e cair com uma Dona Gláucia da vida, prefiro esperar mais um pouco. - Ele apelou, pois ali em sua frente estava o marido dela, que amargurou na vida sem ter um sequer herdeiro, pois a esposa não desejava, estava apenas enfurnada na Igreja. - E desmancha essa cara, que foi a melhor coisa vocês não terem filhos. - E César tornou a virar a caneca de cerveja, dessa vez de forma mais rápida, não queria parar o raciocínio. - A mulher é um saco de ser humano, me importuna por tudo, mas o senhor não colabora nenhum pouco... Preciso mesmo relembrar das denúncias delas?

Era só citar as cenas de violência doméstica que o homem ficava calado, tornava a nem sonhar em incomodar mais o homem, ele não era flor que se cheirasse, ainda mais para reclamar da esposa, por mais insuportável que a mulher fosse. Muitos homens da cidade eram contra as atitudes de César para com Jonas, o marido da beata, ainda mais depois que ele passou uma semana preso por quase atear fogo na mulher, que ficara na Igreja ajudando o padre na decoração e não tinha feito o jantar daquele dia.

—Mas vamos deixar os assuntos de esposa para trás, quem mais ainda está para desposar alguma mulher? Precisamos de festa!

—Excluam o pequeno Tobias, Pagliazi 'tá' doido para o garoto aceitar o convite de ir para o seminário, está conversando todos os dias com ele e com Dona Ana.

—Mas se depender de Dona Ana, o menino passa longe do Seminário. A mulher é uma bruxa. - Cerveja fria caía em cima de Jonas. Tobias estava atrás dele, com uma bandeja em mão e três canecas cheias, as quais foram para Jonas e outros dos homens, a vazia ele colocou nas mãos de Jonas. - Sua cerveja, senhor, com todo o fresco do afilhado da bruxa. - Todos começaram a rir, mesmo Zacarias, que provável daria uma advertência ao garoto no final

—Eu disse para você segurar essa sua língua de caninana para não sair falando sandices, se o Padre ouvir você maldizendo as beatas, ele te excomunga sem pensar meia vez mais.

E a noite percorreu lenta, muitos bebiam pouco, alguns menos enchiam a cara ao ponto de precisarem correr para rua e vomitar. O pessoal ia embora, muitos se ajudando, ou nem tanto, já que as pernas se trançavam e desciam rolando a pequena ladeira até a praça central.

—Que ideia a sua, hein, Zaca? Um barzinho logo em cima nessa ladeira.

—É só uma rua mais inclinada, seu vagabundo! - Ele gritou lá do fundo para Jonas, que andava por todos os lados.

—Pense bem, ao menos quando chegarem lá embaixo, estarão mais acordados e conseguirão chegar em casa sem precisar ficar estirados como bêbados em frente à Matriz. - Tobias conversava com ele enquanto organizava as mesas já desocupadas, recolhendo as que estavam do lado de fora e as levando para dentro. Vez ou outra, ele trocava um olhar com César, que estava no mesmo canto de sempre, virando vez ou outra a caneca de cerveja enquanto encarava Jonas como um peão sem rumo.

—Jonas, está na hora de fechar, vá para casa, durma no sofá e deixe sua esposa em paz hoje a noite.

—Se eu souber que você tentou algo com ela, homem, eu te dou três tiros no pé de advertência... De novo. - César resmungou ao fundo, seu olhar sério amedrontou o homem que, ao invés de descer a sua rolando como era de costume, subiu a viela cambaleando ainda mais. - Ele foi atrás da amante?

—Provavelmente, acha mesmo que a coitada da Luísa vai abraçar um homem velho desses quando a Dona Gláucia não o quiser mais. Acha mesmo que ela vai pedir o divórcio?

—Nem se Jesus ressuscitasse agora e permitisse a mulher sair desse pesadelo.

—Tobias, você também pode ir, já está tarde e sua tia vai me matar se você chegar tarde em casa mais uma vez. - Zacarias foi empurrando os dois para fora, fechando a porta do bar em seguida. Era um total de dois cubículos, com duas portas de correr, uma de cada lado, em que ele abriu o estabelecimento logo em frente a sua casa, que já não era tão movimentada quanto antes, depois que a sua esposa faleceu de doença, levando consigo o filho não nascido. Zacarias foi forte em aguentar o impacto da notícia, sumiu da região para tomar novos ares, recompor a cabeça na casa de uns parentes, retornando logo que teve coragem, aproveitando o renascimento comercial da cidade para abrir o bar.

Tobias descia a rua calmamente, sabia que César o encarava de onde estava. Os dois desceram até César parar em frente à porta de sua casa, não precisaria ficar na delegacia aquela noite, sem nenhum preso para ficar de olho. Ambos trocaram um olhar lento, calmo, o clima entre os dois tencionou, tudo pareceu mais escuro e mais quieto, a porta foi aberta, uma escuridão planava dentro da casa.

—Vai precisar de muito para se esquentar essa noite. - E ambos seguiram seus caminhos, mas ninguém desceu a rua da delegacia depois daquele horários, os bêbados podiam afirmar;

*

César encarava as botas de Tobias, o sangue era muito claro, ele ainda se aproximou, passou o dedo para confirmar, o cheiro era muito característico, bem corrosivo. Tobias nem se espantava, não era a primeira vez que pisava em sangue, muitas vezes saiu para caçar com alguns homens: ursos, veados, castores, animais de grande porte que eram atingidos por armas e que caíam no chão, o corte era feito e o fluído escorria. Claro, eles evitavam que isso acontecesse, para não atrair moscas e outros animais carnívoros, lobos eram muitos na região, para brincarem com isso.

—Onde que isso estava? - César pareceu preocupado, por que o homem guardaria sangue em sua casa? Mesmo que fosse de animal, isso não seria agradável aos olhos de ninguém, muito menos para os religiosos de plantão, o homem seria atirado de onde estivesse e largado aos animais no cemitério do pé do morro.

—Procurando as velas, trombei em algumas panelas, uma delas caiu no chão, eu não ouvi que havia líquido dentro. Eu senti que começou a ficar tudo molhado enquanto eu acendia tudo, mas nem reparei no chão.

Os dois voltaram para dentro, aparentemente tudo parecia mais claro que o normal, e não havia qualquer indício de lareira acesa ou de mais velas, a luz solar pareceu que adentrava mais no casebre aos pedaços, agora por pequenas rachaduras no teto, a casa estava toda aos pedaços, facilmente cairia tudo em cima deles se ocorresse algum impacto mais forte. César encarou a enorme poça no chão, dificilmente alguém a veria, o chão era todo avermelhado, quase de terra batida, mesmo que houvesse alguma madeira por cima, a qual também era escura, facilmente em luzes baixas aquele sangue passaria despercebido.

—Precisamos encontrar alguma coisa que mostre o que aconteceu com aquele homem. - César começou a perambular pela casa, havia muitas estantes com livros e caixinhas, fora os baús espalhados, que com certeza havia muito entulho e cacareco dentro deles. - Tobias, você que conhece todas as histórias da cidade, o que pode me dizer do Salazar?

—Ele nasceu, cresceu e fez fama em uma cidade grande ao norte, provavelmente uma das capitais, grande advogado que exerceu bem a profissão até completar seus cinquenta anos, quando decidiu se aposentar, não aguentava mais defender ricos corruptos e ser ameaçado quando defendia algum pobre, que ganhava dos ricos. Afinal, era um ótimo advogado. - Ele também ajudava César, nas prateleiras da pequena cozinha, mexendo dentro de gavetas, imaginou que poderia haver algum resquício do que comeu na noite passada. - Ele se mudou para a cidade, construiu aquele enorme casarão mais ao leste, morava apenas ele, e conforme foi se aproximando da Igreja, começou a receber mais visitas dos religiosos, ele sempre foi de dar muitas festas.

—Impressionante que eu mesmo nunca fui convidado para elas, e olha que sou Xerife há dois anos.

—Também nunca fui, e ele vivia no bar do Zacarias, raramente eram as noites em que ele não aparecia e ficava em um canto mais excluído que o seu canto reservado, ontem mesmo eu estranhei a ausência dele, mas tinha tanto cliente que nem em sonho eu tinha condições de sair para perguntar a ele.

—E por que esse casebre?

—Ah sim. De uns seis meses para cá, ele abdicou do dinheiro, doou a maioria para a Igreja, sob condições de que eles deveriam investir na cidade como um todo, comércio, cultura e religião. O antigo casarão virará um museu da cidade, há uns dois idosos que ainda vivem que estão relatando os últimos vários anos da cidade, ajudando com desenhos, quadros. Padre reduziu o número de missas para cuidar disso, mas aumentou a quantidade de rosários rezados por dia e por semana, as quatro beatas que coordenam.

—Estava estranhando mesmo que o sino deixou de tocar tantas vezes. Se fosse há uns quatro anos, ele soaria duas vezes ao dia. - César nem sonhava em ser Xerife, seguiria os passos do pai como caçador, mas o fatídico caso dos lobisomens, era tudo muito estranho ainda pensar na chacina que aconteceu. - Bom, onde estávamos?

—Ele construiu esse casebre, eu vim aqui logo que ele se mudou para ajudar na mudança, mas era bem mais claro, ele fez próprio para isso, aproveitar bem o todo daqui. Mas em três meses, ele começou a beber muito mais, pedir as bebidas mais ruins que Zacarias tem no estoque, deixou de se cuidar.

—Será que há algo na antiga casa dele para que possamos investigar? Acho que aqui não terá nada.

Os dois estavam prestes a se virar para ir embora, quando encararam o chão, o sangue secou por completo, nem parecia que havia ali uma enorme poça de fluído sanguíneo percorrendo as entranhas do casebre. Contudo, Tobias encarou com mais afinco o chão, dando de cara com algumas palavras escritas. Ele se virou para César, que também percebeu. Os dois foram pegar panos, para secar o sangue.

—Acho melhor espalharmos mais o sangue no chão, é ele quem está marcando as palavras. - Com os pés, pois eram o que tinham no momento, foram pisando no líquido e espalhando pela casa toda. Quando deram por si, o sangue estava todo seco, e as palavras marcavam firmemente os dizeres:

"Aqui jaz o pecador que o sangue lavará essa terra com desgraça e maldições"


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