Outono no Rio escrita por Goldfield


Capítulo 4
Capítulo IV




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Capítulo IV

Anjo e mortal, enfermeira e soldado... Das mais improváveis circunstâncias, a flor do amor desabrocha no campo de batalha. A questão é: será ela capaz de resistir ao furor do caos tentando destruí-la?

Ao despertar, o primeiro impulso de Jimmy foi ficar de pé – sendo impedido pela intensa fisgada na perna.

O tronco recuou de imediato ante a dor, a face assumindo uma careta – e, quando levou as mãos instintivamente ao ferimento, notou estar agora de calção, as pernas expostas. A perfuração da bala fora envolvida por ataduras, seu tom branco manchado de rubro. A extensão da marca não crescia, entretanto, dando a crer que o sangramento cessara.

O soldado viu-se sentado numa maca – disposta, por sua vez, sobre o que parecia uma bancada de pedra. A sala estava tomada pela penumbra, a luz do sol entrando por algumas janelas e compondo rastros brilhantes aqui e ali, porém incapazes de iluminar todo o lugar. Através de uma das aberturas, vislumbrou o minarete de uma mesquita, assimilando estar no andar superior de algum sobrado.

A figura de branco andou pelas sombras, o contorno do tecido que a cobria aludindo a um traje único; e Roberts lembrou-se do que ocorrera. Seu coração disparou quando ela virou o rosto a si, os olhos azuis ampliando a claridade esparsa do recinto e concentrando-a toda no rosto que os envolvia como uma moldura.

— Teve sorte... – ela afirmou depois de segundos encarando-o, baixando a face tal qual desconcertada. – A bala atravessou o músculo sem romper qualquer osso ou via sanguínea.

— Sorte é o que não falta ao bom e velho Roberts! – a voz de Ted brincou, o colega surgindo de um canto da sala e deixando-se iluminar por uma janela próxima enquanto limpava o rifle com uma flanela. – É só um ás na manga ser usado, e outro já estará à disposição!

Depois de um momento contemplando a moça, corrigiu-se:

— Neste caso, uma dama na manga...

A jovem ignorou o comentário e, diligente, começou a organizar utensílios médicos e equipamento cirúrgico até então dispostos numa bandeja sobre um móvel ao lado de James. Conforme ela usava uma pia para limpá-los, a cruz escarlate no centro de seu hábito brilhou forte como no beco por haver uma janela mais acima da parede.

— Obrigado – foi o que Jimmy conseguiu falar, a frustração em não encontrar asas nas costas da enfermeira não diminuindo em nada o fascínio que sentia por sua pessoa.

— Não precisa agradecer, rapaz – ela ergueu brevemente o olhar para responder. – Ajudar os feridos nesta guerra interminável é minha missão.

— Vocês são freiras enfermeiras, eu entendi certo? – Ted questionou.

— No meu caso, ainda não sou propriamente uma freira. Estou no final do noviciado. A Ordem de Santa Maria de Cléofas zela pelos enfermos desde sua fundação, há mais de duzentos anos. Quando ingressei no convento das Irmãs da Virgem, em Paris, aprendi o ofício da enfermagem. Fomos enviadas para cá ano passado, inicialmente para ajudar os afetados por um surto de peste.

— Então é mesmo francesa, como seu sotaque já entregava... Mas antes servia ao governo de Vichy, então? Os traidores que se alinharam aos nazistas? – fazendo uma pausa, Theodore trocou um olhar preocupado com o amigo à maca. – Você pode ter salvado o Jimmy, porém isso não quer dizer que seja confiável!

— Não servimos a qualquer governo específico, soldado. Só a Deus – ela respondeu tranquilamente, dobrando e guardando algumas toalhas. – Antes havia pessoas necessitando de nossos cuidados sob o jugo de Vichy. Agora o domínio é do país de vocês e seus aliados. Não importa: continuaremos zelando por todos.

— Nos daria o privilégio de seu nome? – Jimmy pediu, o incômodo à coxa em muito aplacado pela euforia em saber mais sobre aquela noviça.

Embalando a última toalha, ela replicou num leve sorriso – parte lisonjeado, parte sem jeito:

— Joana. Joana Lorieau.

Como que animado em ouvir a resposta, Roberts tentou mais uma vez se erguer do leito; apenas para ter o corpo quase nocauteado por um terrível espasmo ao encostar o pé da perna ferida ao chão.

— Andar sozinho será um problema por alguns dias – a enfermeira alertou, surgindo à sua esquerda para ampará-lo. – Venha, posso ajudá-lo.

— Melhor não, irmã... – com ar desconfiado, Ted veio da direção oposta. – Levarei Jim de volta ao QG. Fico grato pela ajuda.

James foi tomado pelas sensações conflitantes do reconforto oriundo do contato dos dedos de Joana com seu braço, servindo-lhe de apoio, e da insatisfação em relação a Theodore pela intervenção indesejada, fazendo-o lançar-lhe um olhar tão ameaçador quanto os nazistas apontando as Lugers.

— Ela pode vir conosco – Roberts retificou, conseguindo ficar de pé com a ajuda de Joana. Depois se voltou a Ted: – Você servirá de escolta para protegê-la nas ruas do caminho até o hotel. Nunca se sabe o que esperar com espiões chucrutes espalhados pela cidade.

— Teria facilitado tudo ela nos levar direto ao convento dela ao invés deste lugar... – o companheiro retorquiu.

A queixa sem cabimento fez Jimmy coçar a nuca envergonhado, ao que a noviça tornou claro o motivo do constrangimento:

— Homens não são permitidos.

Foi a vez de Theodore olhar o chão com as bochechas queimando, James finalmente dando os primeiros passos sobre ele conforme Joana o orientava até a porta.

— Que lugar é este, afinal? – Roberts perguntou ao cruzarem-na.

A resposta não veio dos lábios da francesa, e sim do próprio corredor a seguir: inúmeras pessoas encontravam-se deitadas pelo chão em macas iguais à de Jimmy, algumas somente cobertas de suor em estado febril, enquanto outras exibiam curativos ensanguentados onde antes possuíam membros. Havia indivíduos com as cabeças envoltas em faixas, um homem sem ambas as pernas... E, no auge do desalento, uma mãe fraca e magra segurava, no colo, um menino com a pele repleta de feridas.

Andando de um lado a outro enquanto faziam trabalho equivalente ao de trinta outras de si, três freiras trajadas do mesmo modo que Joana atendiam os doentes; tanto o cansaço quanto a consternação evidentes em seus semblantes.

— Nossa Ordem atua voluntariamente aqui – a noviça explanou. – Isto é o mais próximo de um hospital público com que boa parte de Casablanca pode contar. Várias dessas pessoas foram feridas durante o desembarque das tropas americanas. Outros já sofriam com a miséria devido aos desmandos do governo colonial francês. Seja Paris ou Vichy, pouca coisa muda.

— Soa bem amarga em relação ao seu país... – Ted observou.

— Por isso mesmo não devemos nos prender a governo algum, soldado. A guerra acende o patriotismo em muitos, mas não pode fechar nossos olhos àqueles que pouco têm a se orgulhar desta ou daquela bandeira.

Jimmy não negou o alívio ao saírem ao ambiente aberto da rua, mesmo com o sol escaldante ofuscando sua visão. O coração pesava devido à situação dos pacientes, e até sentia alguma culpa por ter desviado os esforços de Joana a si. O ocorrido ao menos permitira que a jovem, dona de pupilas tão hipnotizantes e senso de justiça tão admirável, o reencontrasse após o fugaz contato daquela manhã. O contínuo roçar do braço da moça ao seu, servindo-lhe de apoio, permitiu que seu interior se tranquilizasse e ele agradecesse aos céus pela presença dela – já considerada a si um presente.

Ao percorrerem as ruas da Cidade Velha, com Ted realmente cumprindo o trabalho de resguardá-los com o M1 Garand, James não tinha mais os sentidos dispersos entre os diversos estímulos costumeiros. Sua visão, audição, olfato e tato estavam todos focados em Joana – mais que o corpo, a própria alma rejubilando por sua companhia.

— É uma pena sermos apresentados comigo nesta condição... – o jovem afirmou em dado momento, ansioso em puxar conversa.

A réplica da enfermeira veio num sorriso bem mais à vontade que o anterior:

— Não se incomode. Está parecendo Cyrano quando, no final da peça, vai visitar sua amada Roxana.

Jimmy arrepiou-se, o interior aquecido como se nele houvessem acendido mil sóis.

— Está brincando! – exclamou, empolgado feito uma criança. – Gosta de Cyrano de Bergerac?

— É uma das minhas histórias favoritas, dentre todas! – a alegria invadiu o rosto de Joana de tal forma que, se o íntimo de Roberts guardava o astro do dia, o conjunto de seus olhos e contornos suaves tornava a expressão da noviça a mais encantadora lua. – Conheço-a desde pequena, quando meu tio a contava. Mais velha, fui a Paris assistir à peça.

— Eu nunca vi a peça, só li o livro. Mas queria muito, muito ver o enredo encenado!

Eles prosseguiram animados, um ou outro detalhe favorito da trama partilhado em meio a gracejos; Theodore caminhando a alguns passos de distância e lembrando de outro tipo de ficção, a científica, por sentir-se um ser vindo do espaço totalmente alheio ao assunto dos dois.

Não demorou muito para, numa reflexão distorcida pelo nervosismo em agradar à enfermeira, James também ver-se incomodado:

— Espere aí! Se me comparou a Cyrano, quer dizer haver algo errado... com o meu nariz?

A face de Joana, do temor inicial em ter insultado sem querer o recém-conhecido, passou gradativamente ao divertimento: a transformação extremamente graciosa incutindo no soldado encanto ainda maior.

— Não, não, seu nariz é perfeito! – ela riu, afastando a suspeita de achá-lo grande demais como o do protagonista da peça. – Fiz a alusão somente por seu ferimento e estar mancando... – a súbita impressão de ter lembrado algo mais fê-la corar. – Apenas isso!

Para vergonha – e contentamento, não podia negar – de Jimmy, ele também recordou algo mais sobre a história naquele instante, talvez a mesma informação despontada à mente de Joana: Cyrano, em seu caminhar trôpego, fora visitar a amada Roxana... residente num convento, após a morte de seu querido Cristiano.

O silêncio imperou entre eles pelo resto do trajeto, decerto no temor que qualquer fala insinuasse algo mais – embora a satisfação e a agradável sensação de descoberta, mútuas, permanecessem nos olhares e sorrisos trocados entre eles até a fachada do hotel.

James foi então transferido ao abraço não tão terno de Ted, que ao menos amparou o amigo o suficiente para não cair. Sabendo ser o desejo do ferido, virou-o a Joana conforme ela começava a se afastar pela rua, a outra mão de Roberts erguida num aceno ao despedir-se:

— Obrigado por tudo, senhorita. Sou presbiteriano, e acredito na graça divina. Ela me salvou hoje... Porém o verdadeiro milagre foi tê-la conhecido.

As maçãs do rosto da enfermeira ficaram tão vermelhas quanto a cruz em seu peito.

— O prazer foi meu. Repouse e cuide da perna.

— Eu irei... Talvez nos reencontremos quando eu estiver pronto a usar as duas novamente.

Joana riu – Theodore não conseguindo conter um guincho de deboche – conforme lhes dava as costas e desaparecia entre a população.

Jimmy tentou manter o hábito branco da jovem à vista durante os instantes seguintes, e só foi trazido de volta à Terra quando Ted aproveitou-se do fato de ele estar escorado a si para sacudi-lo:

— Vamos, Romeu, precisamos reportar ao sargento e ao médico do regimento!

Roberts assentiu num aceno meio atrapalhado da cabeça e, mantendo o ar feliz, foi conduzido pelo amigo ao interior do quartel improvisado.

X – X – X

James moveu-se com dificuldade sobre a cama – a coxa enfaixada emitindo uma queixa – ao ouvir a porta do quarto se abrir. Quis levantar-se como Ted em continência ao sargento, mas este estendeu uma mão para dispensar o cumprimento. O combatente ferido sentiu-se aliviado em ser poupado do esforço, no entanto causou-lhe algum constrangimento o próprio general Greene vir atrás do superior imediato pela entrada, segurando o quepe junto ao tórax com uma mão.

— Boa noite, soldados – o comandante saudou-os. – Demonstraram incrível bravura hoje. Em particular o senhor, recruta Roberts.

— Eu estaria morto sem a mira infalível do recruta Horrington para me valer, senhor – Jimmy apontou ao parceiro, chamando-o pelo sobrenome. – Foi um esforço conjunto.

— De qualquer modo, abater dois zangões revelou-nos toda a colmeia – afirmou o sargento. – Eles eram agentes do SD, o serviço de Inteligência nazista. Depois de nosso desembarque, o governo leal a Vichy deixou de pagar o aluguel do apartamento de onde aquela dupla operava, e o marroquino que encontraram discutindo com ela era o senhorio cobrando o dinheiro.

— Perdão, mas como descobriram isso? – indagou Ted. – Não tivemos opção a não ser eliminar os dois no local.

— Acontece que a troca de tiros entre vocês e eles colocou todos os demais agentes do SD em Casablanca em alerta, confirmando as identidades de muitos deles já sondados por nosso pessoal – esclareceu o general. – Capturamos vários antes do pôr-do-sol, em número suficiente para confirmar o problema existente no deserto...

Greene caminhou pelo quarto, voltando um olhar solidário à perna baleada de Jimmy, para então revelar:

— O alvo a sudeste de que nosso regimento daria conta não é um reduto de resistência de franceses colaboracionistas, e sim uma base alemã totalmente operacional. Mais do que nunca, nossa movimentação pelo Marrocos estará comprometida enquanto ela existir. Caberá ainda a nós destruí-la, porém agora temos total ciência do que encontraremos.

— Até mesmo Jimmy, senhor? – Theodore aproximou-se do leito do amigo. – A perfuração na coxa foi grave, creio que ele não estará em condições de lutar por semanas...

— A unidade médica também rumará a sudeste, com o recruta Roberts permanecendo sob os cuidados dos enfermeiros – explicou o sargento. – Ele não precisará entrar em combate e, por seu heroísmo, já debatemos uma possível dispensa do serviço. O procedimento levará meses, no entanto, e até lá, há inimigos bem próximos com os quais precisamos lidar.

Dias antes, ouvir aquilo teria enchido James de alegria. Ir embora da guerra, voltar ao Brasil bem antes do previsto! Era tudo que mais desejara desde que levantara voo da base do Galeão, seu anseio mais profundo...

Quem diria que, agora, essa expectativa fora transferida ao exato local em que se encontrava, tão longe dos pais e da vida antes levada.

Jamais imaginara pensar daquela forma, mas talvez ele não quisesse partir.

Teve de forçar um sorriso, minimizando o ar atordoado, ao responder:

— Entendido. Muito obrigado, senhor.

Os dois superiores também sorriram, felizes por concederem tal dádiva a um entre milhares de homens fadados a servir seu país numa terra distante. Dirigiram-se a seguir à saída.

Mal a porta se fechou, Ted bufou demoradamente, sentando-se em sua cama:

— Dispensa para você, mas nem um elogio sequer a mim... Vou sair às ruas agora mesmo xingando o Hitler para um dos espiões nazistas tomar o desaforo e também me acertar uma perna!

Jimmy, todavia, não reagiu à fala. Tinha o semblante sério, olhar fixo numa parede – não por irritação ao achar que o colega menosprezava seu ferimento, e sim absorto: corpo presente, pensamentos distantes do hotel. Em outro ponto da cidade, para ser mais exato.

— Ah, não, isso está ficando sério... – queixou-se Ted.

— Quatro dias – Roberts virou-se a ele. – Agora três. É o tempo que me resta para encontrá-la.

— Está falando da noviça? Olha, o que mais faz sentido nessa história toda é saber que você é presbiteriano. A teologia protestante não dá muita importância à Maria, não é?

James levou quase um minuto para entender que o amigo se referia a Maria Aparecida.

— A Cidinha foi impulso, Ted – justificou-se. – Uma aventura que, cortada pela guerra, ficou mais longa do que devia. Já a Joana...

— Aventura é abrir mão de uma possível esposa por uma mulher destinada ao convento que você acabou de conhecer! – impaciente, Theodore balançou a cabeça em reprovação, voltando o olhar ao céu noturno através de uma janela.

— Uma possível esposa a mim, mas esposa certa de um oficial nazista – Jimmy despejou irritado. – Lembra daquilo que falei sobre estar prometida? Acha que não levo em consideração toda vez que penso nela?

Roberts deixou o companheiro atônito com a bomba, tão potente quanto uma atirada de um avião em campo de batalha, e também alternou a visão a uma janela. Os terraços quadrados do casario de Casablanca jaziam azulados sob o céu cheio de estrelas, o frescor mal aplacando o calor no interior do quarto – só intensificado pelo rumo espinhoso da conversa.

— Hollywood está perdendo em não transformar sua vida em filme e chamar o Orson Welles para dirigir... – Ted comentou, voz abafada por levar um punho à boca.

— O que aconteceu com o rapaz que não via nada errado em cortejar noviças hoje de manhã? – ironizou Jimmy.

— Flerte é uma coisa, Jim. Você quer algo sério... E já conviveu tempo suficiente comigo para saber que conto vantagem – suspirou. – Mas enfim. Entre a mulher de um nazista e a noviça, melhor seria você propor casamento ao convento inteiro.

— Preciso sair amanhã e ir atrás dela! – Roberts insistiu, vistoriando o cenário de Casablanca do alto do hotel na dúvida sobre onde seria o convento.

— Só conseguirá caso vá patrulhar. E nessas condições, acho difícil te darem permissão. Se o virem perambulando pelos becos atrás de mulher, vão cancelar sua dispensa rapidinho...

Notando o ar determinado do parceiro conforme encarava a noite, Ted completou:

— Ou talvez seja exatamente isso que você quer.

X – X – X

A manhã, com seu sol já intenso e céu azul sem nuvens, escaldava o solo em calor – o grupo de noviças da Ordem de Santa Maria de Cléofas encontrando refúgio de uma sombra à outra das palmeiras próximas à Catedral do Sagrado Coração.

A igreja, com sua fachada elevada culminando num arco e torres brancas que mais pareciam cortadas retas em pedra, representava o poder da fé dos colonizadores num país de credo majoritariamente contrário – como deixavam claro os versos do Alcorão recitados em alto tom das mesquitas, chegando até ali de todos os lados de Casablanca.

Joana não sabia se sentir agradecida por ter um local onde expressar sua religião, ou com o coração aflito por ele existir à custa do domínio de todo um povo. Não era muito diferente dos babilônicos querendo impor seus ídolos aos hebreus durante o Cativeiro, ou os romanos sempre prontos a violar o solo sagrado do Templo de Jerusalém. Tais questionamentos sempre a atormentavam, porém não mais os expressava à madre após as repreensões alegando ser tentada pelo diabo e que devia aceitar a supremacia de Cristo como Deus verdadeiro...

Bem, se Jesus deveria ser imposto às pessoas daquele jeito, com certeza ele não teria ordenado que Simão Pedro guardasse a espada no momento da vida em que mais fora ameaçado.

De qualquer modo, Joana não era a única candidata aos votos perpétuos envolvida em algo que desagradaria às superioras...

Na fila de noviças trajando preto e branco, havia certa agitação entre algumas ingressantes mais novas. Cada uma trazia, aquele dia, um livreto de orações; mas Marie carregava um volume de consideráveis mais páginas, ocultando-o com cuidado junto ao hábito enquanto as colegas riam e a provocavam, quando não dando tapas na tentativa de levar a obra ao chão e, assim, expô-la à freira mais próxima.

Numa dessas brincadeiras, a jovem puxou o livro para desviá-lo da palma de Eloise, permitindo que Joana lesse o título à capa e a autoria...

"Uma Reivindicação dos Direitos da Mulher", de Mary Wollstonecraft.

Lorieau não segurou uma risada.

Uma nova sombra, da fachada da catedral, mais pareceu o próprio Deus impondo-lhe sua grande mão para lhe clarear os pensamentos. Uma a uma, as noviças ganharam o interior do templo, distribuindo-se entre as fileiras de bancos para rezar – não sem antes efetuarem genuflexões na direção do altar.

Joana buscou um assento mais isolado, junto a uma das pilastras ladeando a nave central. O crucifixo junto ao peito tilintou ao curvar-se e apanhar seu rosário, preparada a ficar de joelhos e iniciar um Pai Nosso quando ouviu, quase num cochicho:

— A nobre noviça teria compaixão com um homem inválido?

A moça soltou um suspiro de susto, erguendo o rosto na direção da fala.

Dois bancos à frente, encarando-a por cima do encosto, estava o soldado ferido do dia anterior – um par de muletas apoiado junto a si.

— Saiba estar pecando dentro de uma igreja ao referir-se a si assim, senhor... – ela oscilou, tentando lembrar o sobrenome do combatente, não se achando íntima a chamá-lo pelo primeiro. – Roberts!

Sem perder o ar descontraído, o rapaz abriu um sorriso. Ele não podia fazer ideia de como Joana recriminou-o por aquilo em pensamento: seu foco em orar havia se dispersado tal qual o rosário rompesse e as dezenas de contas se perdessem pelo chão.

Não conseguiu expressar o sentimento em palavras, todavia. O coração acelerado e aquele repentino fascínio em seu íntimo, jamais vivenciado até o primeiro encontro entre os dois, não deixaram.

— Aos meus superiores assim pareço, pois inclusive manifestaram a intenção de me dispensarem do serviço – ele revelou. – Antes, porém, viajarei com o regimento a sudeste. Uma base nazista a ser eliminada. E não, eu não poderia ir sem vê-la de novo.

Joana baixou a face, envergonhada. A seguir, finalmente ajoelhou-se; e, julgando que seu contínuo fitar contribuía à reação, Jimmy desviou os olhos – o silêncio advindo ao meio deles conforme ouviam os constantes sussurros das noviças proferindo as orações.

— Como me encontrou? – Lorieau reiniciou a conversa, sem tornar a observá-lo.

— Não fazia ideia de onde seria seu convento, então decidi procurar num dos poucos lugares em Casablanca onde os católicos costumam se reunir para rezar – explicou o soldado. – Ontem, quando nos vimos de relance antes do tiroteio, considerei que se dirigiam a este lado da cidade. Somei as duas pistas, e acertei de primeira vindo aqui.

A noviça continuava prostrada e de cabeça inclinada, considerando ser um bom disfarce à superiora quanto a supostamente estar orando. Na verdade, ela queria realmente orar, afastando a tentação daquele homem de sua alma destinada à consagração a outro senhor...

Diante da exposição do método de Jimmy para achá-la, no entanto, foi ela quem desta vez esboçou um sorriso junto às mãos unidas.

— Perspicaz como Sherlock Homes... – afirmou.

— O quê? Conan Doyle também? – o encanto de Roberts fê-lo ajeitar-se no banco. – Quais outros autores favoritos vai revelar termos em comum, senhorita?

O sorriso de Joana converteu-se num risinho.

— Não devíamos estar conversando, e sabe disso... – a noviça advertiu, embora falhasse na cautela superar o divertimento em sua voz.

— No quesito desobedecer a regras, também combinamos. Eu devia estar de molho no hotel, ou então patrulhando as ruas. Mas o coração é meu novo general, senhorita, e não pretendo desrespeitar suas ordens.

Lorieau estremeceu diante da declaração. Nunca, nunca ouvira aquilo de alguém. Diversos moços lhe expressaram carinho e paixão quando ainda vivia na fazenda dos pais, porém todos pobres de palavras e libidinosos em excesso nas intenções.

Mas aquele rapaz... Aquele doce, e tão inesperado Jimmy...

Levantou os olhos ao altar. O Sagrado Coração, irradiando raios dourados na estátua de Cristo, era apontado por um dos dedos desta. Os olhos do Salvador, de súbito, aparentaram contemplar unicamente Joana. Como se a compreendessem... Tais quais lhe emitissem um sinal.

— O que pode haver de mais sagrado que o afeto entre duas pessoas? – o soldado emendou ao notar a direção encarada pela jovem. – Já que nós dois já contrariamos nossos superiores de algum jeito, proponho sairmos. Um passeio pela cidade. Sem compromisso... Só entenda: não poderei partir em missão sem a oportunidade de conhecê-la melhor.

Não conseguindo entender por completo, porém confiando em sua intuição, Joana considerou que o Coração de Jesus se fundia ao seu em tranquilidade e intenções ao responder:

— Aceito seu gentil convite, soldado Roberts.

Acenando contente em resposta, os olhos brilhando de entusiasmo, Jimmy ergueu-se, tomou as muletas e saiu primeiro, usando uma das portas laterais da catedral.

A noviça continuou ajoelhada, rezando um Pai Nosso e uma Ave Maria em sincera súplica por iluminação diante da escolha realizada, e também deixou o banco rumo ao pórtico clareado pela luz da manhã.

Uniu-se a James sob uma palmeira, os dois trocando sorrisos calorosos.

Lado a lado, passaram a caminhar rumo à Cidade Velha.


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