A biblioteca da escola pegou fogo! escrita por Fane


Capítulo 6
A resposta é não




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Já me disseram que minha curiosidade me faz tomar decisões precipitadas. Mas o que ninguém sabe é que juntar a minha curiosidade com o meu medo de confrontar pessoas, eu sou capas de calcular friamente minhas decisões e agir com extrema cautela.

Depois de todo aquele circo, a escolha óbvia seria fugir de Dennis e garantir a minha segurança. Eu pensei em inventar algum imprevisto e aproveitar meu fim de semana de folga sem Dennis, sem festa e, infelizmente, sem Giselle.

Mas então eu percebi que talvez fosse exatamente isso que Dennis estava planejando. E foi aí que eu decidi dar a volta por cima.

Depois da aula, me despedi de Giselle como sempre. Ela já tinha me mandado uma mensagem com o endereço de Emily — que eu respondi com uma figurinha, tentando controlar o friozinho na barriga — e até aí tudo estava bem.

Eu estava esperando que Dennis falasse alguma coisa no caminho de casa, — um te vejo tal horas pra ir pra festa ou me desculpa por te espiar pela janela, até andei mais devagar pra ele me acompanhar! — mas ele não disse nada. Passou reto por mim e foi embora.

Então eu decidi seguir com meu plano de descobrir as intenções dele sem me deixar abalar por pouca coisa. Assim que cheguei em casa, mandei uma mensagem pra Giselle pedindo mais detalhes sobre a festa. Ela disse que seria simples, que começava às 20h acabaria às 22h (e também explicou que só a música alta parava às 22h por causa da política do condomínio da Emily, mas a galera continuava conversando até de madrugada quando os pais dela não estavam. Aparentemente eles nunca estavam).

Isso explica um pouco da atitude dela, mas eu não gosto de julgar ninguém.

Depois de coletar todas as informações necessárias, eu precisava decidir com que roupa ir — também precisaria da permissão da minha mãe, mas como ela não estava em casa eu apenas segui com o planejado.

A pior parte de ir numa festa numa cidade nova, com pessoas novas, é que você nunca sabe qual roupa usar. Ir pra escola é simples, tem a farda do colégio e geralmente todo mundo usa calça jeans. Mas numa festa... festas são diferentes.

Por isso eu fiquei um tempão pensando no que vestir — fui até o quarto da Mel duas vezes até ela me expulsar dizendo que eu preciso arrumar amigas, mas pelo menos ela me ajudou a evitar alguns erros terríveis — e no fim da tarde eu já tinha escolhido a roupa perfeita: um top rosa e minha jaqueta amarela preferida. E uma calça preta, infelizmente.

A ideia inicial era ir com a calça azul e ser uma bandeira pan ambulante, mas Mel disse que talvez fosse demais pra minha primeira festa. E eu concordei.

Tudo estava indo bem.

Pelo menos era o que eu pensava. Quando deu sete e meia eu já estava pronta, imaginei que Dennis fosse ao menos bater na porta da minha casa e falar tá na hora, mas eu estava enganada.

Às oito em ponto eu cansei de esperar. Dei tchau pra minha mãe, pra Mel e pra Vó Alice e saí batendo o pé, pronta pra mandar uma mensagem pra Giselle pedindo por favor pra ela vir me buscar.

— Finalmente, hein!

Mas eu fiquei paralisada de ódio.

Dennis estava tranquilamente sentado no parapeito do alpendre (da casa do vizinho, Luís, que é avô dele e que não é fornecedor de drogas, ao contrário do tal Paulo) e assim que me viu, veio se arrastando como se estivesse extremamente entediado.

— Finalmente o quê? — Perguntei, obviamente tentando descobrir se aquela expressão na cara dele tinha algo além de puro tédio.

— Pensei que cê nunca fosse sair. Fiquei esperando até agora.

Só pode ser piada.

— E como é que eu ia saber? Por que não me avisou?

— E como é que eu ia avisar?

— Eu moro aqui do lado! Essa não foi a sua desculpa pra não deixar a Giselle vir me buscar?

Eu já estava de mau-humor, mas a risadinha debochada que Dennis soltou naquela hora me deixou estranhamente possessa.

— Eu achei que eu tinha que resolver algumas coisas contigo, só isso.

— Que coisas? — Cruzei os braços torcendo muito que ele não tocasse no assunto da janela.

— Primeiro, eu não te espiei hoje de manhã... — ele começou, mas eu não queria ouvir o restante da conversa.

— Tá. Tá, tudo bem. Já podemos ir?

— Eu tô tentando te dizer que...

— Já entendi. Foi um acidente. A gente vai agora ou não?

— Sim, mas eu tô dizendo que...

— Olha, faz o que você quiser. Eu vou ligar pra Giselle e pedir pra ela vir me buscar — falei. Mas era obviamente mentira, eu nunca teria coragem de ligar pra Giselle e pedir qualquer coisa que fosse.

Mas imaginei que, se eu dissesse isso, Dennis desistiria da ideia de me pedir desculpas. E, mais uma vez, eu estava completamente enganada.

— Tá bom, então — ele respondeu. E então cruzou os braços e se escorou na parede do alpendre.

Congelei.

— Tá, então... eu vou ligar pra ela.

— Então liga.

— Tô ligando.

Por um momento, achei que teria sim coragem de ligar pra ela. Mas não consegui. Geralmente eu sou muito boa fazendo ligações, mas só de pensar em Giselle atendendo e me falando alô eu sinto meu corpo todinho tremer. É capaz de me dar um passamento, até! Eu posso desmaiar ou começar a gaguejar, o que ela vai pensar de mim?

E, mais uma vez, Dennis começou a rir. E dessa vez nem tentou disfarçar, era óbvio que ele estava rindo da minha cara.

— Que foi? Eu tô ligando, já!

— Cê tá afim dela, não tá?

— Quê? — Consegui dizer com muito custo. Bastou ouvir Dennis falar aquilo que meu cérebro inteiro congelou, eu sentia que minha vida em Mandacaru tinha acabado ali.

E ouvir a risadinha de Dennis não ajudava.

— Calma, não tô aqui pra julgar ninguém. Tá afim dela ou não?

— De quem?

— Da Giselle.

— Não. Não tô, para com isso.

Eu já não queria ir pra festa nenhuma. Só queria voltar no tempo e nunca ter trocado nem meia palavra com Dennis Flores.

— Olha, se tu quiser... eu posso te ajudar.

Achei que tivesse escutado errado. Mas aparentemente foi sério e eu não conseguia imaginar qual plano maligno Dennis teria em mente daquela vez.

— Ajudar com o quê? E, mais importante, por quê? — Perguntei, séria demais pra alguém que estava conversando com um cara que não parava de soltar risinhos soprados cheios de deboche.

— Cê já sabe com o quê. E meio que seria como uma troca de favores. Tudo nessa vida tem um preço.

Bingo. É claro que ele teria algum plano maligno em mente. E pior, queria me arrastar pro fundo do poço com ele!

— E qual seria o seu preço? — Perguntei. Por pura curiosidade mesmo, dessa vez foi apenas a pura e genuína curiosidade agindo por si só.

— Coisa pouca. Um favorzinho de nada.

— Que tipo de favor?

— Já disse, é coisa pouca.

Levei um tempo pra analisar a situação.

— Tu matou alguém e quer ajuda pra esconder o corpo? Porque, sim, eu já assisti muita série criminal e documentários sobre assassinos, mas não sei não... se for o caso, tenta achar alguém que crie porcos, sei lá...

Quando parei de falar Dennis não tinha mais o sorrisinho besta no rosto como antes. O que ele tinha possivelmente poderia ser descrito como um olhar horrorizado. Exatamente como eu esperava.

— Eu não matei ninguém, tá doida? E o que isso tem a ver com porcos?

— Pretende matar alguém?

— Não.

Levantei a sobrancelha, só pra botar pressão.

— Não?

— Não!

— Então deixa pra lá.

— É só um favor. A questão é que, eu conheço a Giselle desde criança. Se você quiser chegar nela, vai ter que chegar em mim de um jeito ou de outro.

Foi a minha vez de dar risada.

Ou eu posso só chegar nela sozinha.

— Pode mesmo? — ele levantou a sobrancelha.

Dennis era como um camaleão, copiava todos os meus passos pra no fim ter vantagem e dar um bote maior. Impressionante, mas muito chato.

E ele estava certo, eu não seria capaz de chegar em Giselle sozinha.

— E ainda tem a Emily. Elas duas são melhores amigas e vivem grudadas. Tem até uma fofoca que corre por aí de que ela é apaixonada pela Giselle. — Ele continuou, claramente pra me fazer perder a minha compostura e aceitar participar daquela baixaria. — Convenhamos, você precisa de mim.

— Não. Eu não preciso de você, é você quem precisa de mim.

Ele voltou a sorrir, sem o ar debochado de antes.

— Talvez. Mas e aí? O que você acha?

O que eu acho? Acho que perdi completamente o juízo.

A casa da Emily não era tão longe. Subimos algumas ruas e passamos pelo centro da cidade — perto da igreja Matriz de São João, da farmácia principal e de uma funerária — e assim que passamos pelo portão, tomei um susto.

A quantidade de pessoas, o tamanho do jardim, o tamanho da casa e o fato de que tinham pessoas que pareciam bem mais velhas do que a galera de sempre da escola, era tudo muito exagerado. Mas não era necessariamente ruim.

— Vocês vieram! — Giselle veio nos receber, os cabelos vermelhos estavam presos numa trança e ela usava um vestido tubinho cor de rosa e imediatamente nos puxou para um abraço.

O cabelo dela tinha cheiro de melancia, álcool e limão.

Emily chegou um pouco depois, usando um vestido tubinho preto e uma meia arrastão. O diabinho no meu ombro me disse que eu nunca poderia competir com alguém assim e eu me arrependi amargamente de não ter vestido a minha calça azul bebê!

— Emily, vem cá. Preciso falar contigo — Dennis disse e, do nada, puxou Emily pra algum canto me deixando sozinha com Giselle (naquela sala enorme com um monte de gente, mas estávamos meio que sozinhas).

E eu percebi o que ele estava tentando fazer.

— Então... — Giselle começou, — eu tava querendo te perguntar hoje mais cedo... você e o Dennis, hein?

Era como estar vivendo meu maior pesadelo.

— Eu e ele...? — Soltei uma risadinha pra disfarçar o desconforto. — Como assim?

— Ah, vocês dois se aproximaram de repente, né? Eu conheço o Dennis desde criança e nunca vi ele se oferecer pra buscar ninguém pra uma festa da Emily.

Isso, minha cara Giselle, é porque ninguém nunca foi burro o suficiente pra cair na lábia dele até agora.

— Não! É que... meio que minha vó é vizinha do vô dele e... é isso. A gente nem conversa, é aquela coisa mesmo.

Aquela coisa? Vocês tão ficando?

Senti uma pontada tão forte na barriga que pareceu ser uma facada.

— Não! Credo. Não, tipo, aquela coisa... porque a minha vó quer que eu faça amigos e acha que eu não sei socializar sozinha, entende? E eu até entendo ela porque olha só pra mim...

E ela olhou. Ela olhou pra mim. E eu fiquei na dúvida se ela estava olhando pra mim ou se estava realmente olhando pra mim.

— Você é linda.

Ela estava realmente olhando pra mim.

— Ah. Oi?

— Você é linda. E eu adorei a sua jaqueta, combinou muito contigo.

Ou não. Ela estava só olhando pra mim mesmo.

— Ah! Valeu.

Eu poderia ter dito você também é!, mas minha cabeça não funcionava muito bem sob pressão e meu coração já estava batendo tão rápido que eu não saberia dizer meu nome se alguém perguntasse.

Principalmente porque Giselle me puxou pela mão logo em seguida. E eu nem liguei se eu não sabia pra onde ela estava me levando, só queria aproveitar a sensação de tocar as mãos da menina que eu gosto.

Até que ela me soltou e eu percebi que estávamos na cozinha. E não tinha mais ninguém além de nós lá.

— Eu não sei se você vai gostar, mas eu não te vi bebendo nada até agora e não quero ser a má influência que vai te oferecer bebidas, então... pode pegar quantos quiser.

Ela disse, mostrando as bandejas cheias de doces dos mais diferentes tipos. Numa bandeja tinha cupcakes, em outra tinha brownies e em outra tinha brigadeiros... era muita coisa. E parecia até errado pegar um e estragar a organização das bandejas que estava tão arrumadinha.

— Qualquer um?

— Aham! Os doces não são tão populares quanto a vodca, por isso geralmente sobre um monte. Mas eu sempre trago porque depois de um certo horário tem uma galera cheia de fome.

Ela ri e eu também.

Foi aí que eu percebi que talvez aquele fosse o momento.

— Ei, Giselle... — falei, tentando reunir coragem o suficiente pra falar tudo sem me enrolar.

— Não vai me dizer que não gosta de doce, né? — Ela disse, brincando, e a cada sorriso que ela dava meu coração dava um pulo.

— Não! Eu amo doce. É que... eu queria te dizer uma coisa...

— Até que enfim eu te achei, o que o Dennis tem, hein? Ele ficou até agora me enchendo o saco e...

Emily chegou na cozinha. Emily chegou na cozinha reclamando de Dennis e me interrompendo bem quando eu decidi que aquele era o momento.

Aparentemente não era.

— O que cês tão fazendo? — ela perguntou a Giselle. Na tradução livre eu pude ouvir claramente ela dizer “o que cê tá fazendo com essa pobre imunda?”, peguei um brigadeiro e enfiei na boca.

— Eu trouxe a Mia pra provar os meus docinhos, já que ninguém aqui tocou neles ainda. — Ela disse, fofa como sempre. Naquela altura eu já tinha engolido uns cinco brigadeiros. — E ela ia me falar uma coisa, né, Mia?

Inferno.

— Sim, pois é. O brigadeiro tá uma delícia — falei, quase cuspindo o sétimo brigadeiro. Não valia mais a pena tentar, o momento claramente tinha chegado ao fim. — Eu vou ali... ligar pra minha mãe. Ela é neurótica, eu preciso ligar a cada dez minutos.

Saí da cozinha correndo — carregando alguns brownies e brigadeiros, óbvio — mentalmente pedindo desculpas por xingar minha mãe sem motivos. E como eu estava meio triste e meio com vergonha, aproveitei que estava numa festa e fiz coisas que dariam todos os motivos do mundo para minha mãe querer me xingar.

Eu bebi. Nada demais, certo?

Certo. Mas pra alguém que não costuma passar do segundo copo de vinho em festas de família, aquela batida com gosto de álcool 70% desceu rasgando a minha garganta e eu não sabia o motivo, mas a música começou a ficar muito mais dançante de uma hora pra outra.

Depois do terceiro copo, eu resolvi parar. Não porque eu achei que deveria, mas porque eu fiquei com muita vontade de fazer xixi e, como eu não sabia aonde era o banheiro, eu decidi ficar sentadinha num canto conversando com um cara chamado Carlos que me contou a vinda inteira dele e eu só precisei sorrir e acenar.

Até que não deu mais pra segurar. Quando o volume de pessoas diminuiu eu decidi me levantar e tentar encontrar o banheiro sozinha. Fui tateando as paredes tentando olhar em todos os lugares até encontrar uma porta que não estivesse trancada.  

E eu poderia, sim, pedir ajuda, mas Dennis tinha sumido, Emily com certeza me deixaria mijar nas calças e eu não acho que eu teria coragem de olhar na cara de Giselle novamente naquela noite. Por isso eu segui com meu plano e até que deu certo, porque em um dos muitos corredores, eu achei uma porta destrancada.

Mas não era o banheiro. Era um quarto.

E o quarto estava ocupado. Muito ocupado, pelo visto.

Foi bem rápido, questão de segundos. Eu abri a porta esperando ver um banheiro, o que eu vejo? Dois caras aos beijos que aparentemente não queriam companhia, então eles olharam pra mim e eu olhei pra eles e fiquei morrendo de vergonha, então soltei um ops, foi mal e fechei a porta novamente.

Toda aquela adrenalina mexeu ainda mais com a minha bexiga, eu não tinha mais tempo, então continuei procurando e quando finalmente achei o banheiro, tranquei a porta e fiquei um bom tempo ali pensando numa única coisa.

Era Dennis naquele quarto. Sem dúvida nenhuma.

A roupa preta, as correntes na calça, o tênis velho, o cabelo preto. Era Dennis. Ele me ofereceu ajuda e, em vez de me ajudar, foi se agarrar com alguém num quarto aleatório.

Se bem que, agora estávamos quites. Ele tinha me espiado pela janela sem querer e eu, de certa forma, também espiei ele sem querer.

O que não tem nada a ver com nosso acordo que eu, felizmente, ainda não aceitei. E nem vou aceitar, pela falta de profissionalismo dele ao não conseguir segurar a Emily até que eu pudesse me declarar.

Então, seja lá qual foi o favor que ele vai me pedir em troca, a resposta é não.


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