A biblioteca da escola pegou fogo! escrita por Fane


Capítulo 14
Daddy issues




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/801553/chapter/14

Depois de muitas horas pensando sobre o que fazer, tentei falar com Dennis. Mandei mensagens em todas as redes sociais possíveis e até mesmo liguei pro celular dele, mas nada.

Na segunda-feira, esperei por ele na escola a primeira aula inteira até lembrar que não apareceria por estar, possivelmente, suspenso. Fiquei o restante das aulas pensando como faria para entrar em contato com alguém que, aparentemente, estava incomunicável.

Até que a resposta caiu sobre minha cabeça.

Assim que a aula acabou eu saí correndo, desesperada, como se minha vida dependesse disso. Subi a ladeira da minha rua e parei em frente à casa vizinha, tendo (pelo menos 95% de) certeza de que Dennis estava lá.

E ele realmente estava.

Quem atendeu a porta foi um homem idoso, careca e com uma barba branca bem rala, foi simpático o suficiente para me deixar subir até o quarto de Dennis — depois de eu contar uma ou duas mentirinhas — e eu finalmente achei que poderia chegar a algum lugar.

Mas Dennis não parava de reclamar por um segundo sequer!

—... e você pode sair de casa livremente? Eu tô preso aqui desde sábado! Minha mãe me chutou de casa, eu tô sem celular, sem computador, meu cérebro tá virando suco, eu nem sei como meu avô te deixou entrar aqui.

— Eu disse que ia te passar as aulas que você perdeu — dei de ombros, jogando minha mochila no chão, finalmente.

— E ele acreditou?

— Sei lá, mas parece que sim. Vem cá, esse eu vô é pai da sua mãe?

— Sim, por quê?

Cocei a cabeça, me perguntando se seria muito inconveniente.

— Tu é adotado?

Ao contrário do que eu esperava, Dennis soltou uma risada alta, quase se cuspindo inteiro.

— Depois de conhecer a minha mãe, tu ainda acha que ela me adotaria?

— Ah... sei lá, é que ela não tem nada a ver contigo...

— Porque ela é branca?

— É... basicamente.

— E eu tenho muita cara de asiático pra ser mestiço? — Ele disse, franzindo as sobrancelhas.

— Não, eu só... só fiz uma pergunta...

E então, ele riu. Riu ainda mais alto do que na última vez.

— Tô te zoando. Eu não sei se você sabe, mas eu tenho pai. A família dele é das Filipinas.

— Entendi... qual é a história?

— Que história?

Me sentei numa cadeira acolchoada que estava por ali, só pra ficar mais confortável. Fofocar sempre era uma boa pedida.

— Ué, a história de como seus pais se conheceram, como se separaram e como sua mãe foi acabar casando com o pai do Gabriel — perguntei, imaginando uma trama cheia de reviravoltas. — Isso parece ser importante pra entender o que rola na sua cabeça.

Dennis olhou pra mim como se eu fosse maluca.

— E por que tu quer saber disso?

— Porque eu sou curiosa.

Então ele se sentou na beirada da cama, encostando o corpo na parede, pronto para ditar uma história digna de filme. Pelo menos, era o que eu esperava.

— Como eu posso começar? Hm... era uma vez um homem que saiu das Filipinas e veio morar em Mandacaru a trabalho, então ele conheceu uma mulher metida a popular. Eles namoraram, o pai da mulher desaprovou tanto o namoro que ameaçou o homem de morte. Então, quando a mulher engravidou, o homem acabou morrendo nas mãos do pai de sua namorada grávida. Fim.

Finalizou, com um sorriso. E eu fiquei em choque.

—... tá falando sério? — Engoli em seco, tremendo em pânico ao imaginar que aquele senhor idoso simpático poderia ter matado alguém.

Até que, é claro, o monstrinho voltou a rir daminha cara.

— Claro que não!

— Então para de brincar com essas coisas!

— É que a história não é tão interessante assim. Você ia morrer de tédio.

— Ué, me conta — pedi de novo e ele revirou os olhos.

— Meu pai era casado, morava na Capital e veio passar um tempo aqui a trabalho. Ele acabou se envolvendo com a minha mãe, ela engravidou, ele assumiu, mas não largou a esposa. Então, quando eu tinha uns sete anos ele morreu.

— Morreu de quê? — Perguntei, quase mordendo a língua.

— Não sei. Eu nem lembro muito dele, então não tem muita coisa pra falar.

— Ah... sinto muito.

— Foi tu que matou ele? — Perguntou.

— Não! Quê?

— Então não precisa “sentir muito” — resmungou, e eu aproveitei a deixa pra revirar os olhos.

— Eu te odeio, sabia disso?

— Entra na fila, me odiar entrou na moda, não ficou sabendo, não? Até a minha mãe me odeia — ele falou, tentado mudar de assunto pra deixar aquele silêncio menos estranho depois daquele papo pesado. — Já que eu falei dos meus daddy issues é a sua vez de falar dos seus.

— E quem foi que disse que eu tenho daddy issues?

— E não tem?

Fiquei calada. Era óbvio, dava pra ver na minha cara.

— É, eu acho que eu tenho...

— Eu sabia. Nenhuma família é tão perfeitinha e a sua tá no limite, de onde já se viu ter uma mãe que não te coloca de castigo por ser vítima de uma injustiça? — Debochou, e ele realmente tinha razão.

Sem meu pai, minha família parecia bem melhor. Às vezes, eu até me sentia mal por pensar assim, mas só às vezes.

— Nah, não vale a pena. A história não é tão legal igual a sua.

— Hm... seu pai não foi assassinado pelo seu avô? — Comentou, rindo alto.

— Não — ri de volta. — Mas... ele morreu também.

O fato era que eu nunca tinha parado pra pensar muito naquele assunto. Mesmo depois de ter visto meu pai morto, em um caixão, e tê-lo enterrado, na minha cabeça ele só tinha partido numa longa viagem.

De alguma forma eu sentia saudades. Não saudades de algo que eu já tive, mas de algo que eu certamente queria ter. E, sem ele por perto, eu já não podia fantasiar sobre isso.

Dennis ficou em silêncio por um tempinho também, talvez esperasse que eu abrisse um berreiro e começasse a ditar todas as coisas legais que eu e meu pai fazíamos. Mas nunca iria acontecer. Por mais que eu amasse meu pai antes, eu nunca gostei dele de verdade.

— Hm... quando aconteceu? — Perguntou, depois que o silêncio tinha se tornado ensurdecedor.

— Pouco antes da mudança. Uma semana e meia, eu acho...

— Que mudança?

— Quando eu me mudei pra cá — comentei, e Dennis quase pulou da cama, endireitando as costas e me olhando, novamente, como se eu fosse maluca.

— Você tá dizendo que seu pai morreu mês passado sem nem piscar? Foi você que matou ele?

Por mais que não fosse engraçado, eu ri.

— Claro que não. Mas não é como se eu ligasse muito pra isso, ele não era tão presente assim.

— Hm... então a gente finalmente achou alguma coisa em comum. Problemas com pai — ele disse, rindo baixinho.

— Eu odeio falar sobre isso... — resmunguei.

Àquela altura, eu já nem lembrava mais por que eu estava ali, no quarto de Dennis, conversando sobre nossos falecidos pais. E, pelo visto, ele também não lembrava.

— Tá. Qual o seu signo? — Disse, parecendo empolgado demais pra ficar quieto.

— Pra quê?

— Tu não gosta de astrologia? Eu sou taurino, o que significa que eu amo comida e sou teimoso pra caralho... e você?

Revirei os olhos, mas acabei entrando no jogo.

— Tá... eu sou leonina, o que quer dizer que eu sou extremamente narcisista, carente de atenção e muito sensível.

— E o MBTI? — Perguntou.

— ISTP, eu acho, não tenho certeza.

— Eu sou INTP.

— É, eu já suspeitava. Você é o próprio estereótipo de INTP.

— Não, eu nem sei se tá certo, eu só fiz um teste e deu isso.

— Pode acreditar, tu é muito INTP.

— E o que isso quer dizer?

— Quer dizer que você é inteligente, mas é muito preguiçoso pra usar essa inteligência do jeito certo — expliquei.

— Não.

— Sim — insisti. — E adivinha? É o MBTI do Patrick Estrela, e eu amo ele. Já sabemos porque viramos amigos.

— Amigos? — Ele levantou uma sobrancelha, como se aquela palavra fosse completamente indecifrável.

— Dennis eu tô no teu quarto, a gente tá conversando e rindo há horas. Nós somos amigos, você querendo ou não.

E, surpreendentemente, ele não reclamou nem respondeu de imediato. Apenas sorriu bem pequeno, olhando para algum ponto na parede como se estivesse absorvendo tudo o que eu havia dito.

— Legal... — murmurou.

— Que foi? Vai chorar? — Brinquei, só pra quebrar aquele sentimentalismo que me deixava um pouquinho desconfortável.

— Não. Só tô pensando no quão patético é ser acusado por algo que a gente não fez... — ele comentou, e eu imediatamente lembrei o motivo de estar ali.

— Não é patético, vai... a gente só estava no lugar errado, na hora errada... — E foi aí que a resposta surgiu de repente. — Dennis...

— Quê?

— Eu acho que tive uma visão!

— Uma visão? — Ele me olhou, incrédulo. Pronto pra jogar o travesseiro na minha cara.

— Nosso MBTI! Você é INTP, INTPs são lógicos, eles estão no grupo dos analistas! — Comentei, rápido demais pra não perder o ponto. — E eu sou ISTP, e ISTPs estão no grupo dos exploradores. Então, se você é analista e eu sou exploradora...

— Você sabe que nada disso é real, né?

— Cala a boca! Só presta atenção. Você é INTP, eu sou ISTP, o T é de Thinkers, ou seja, nós somos do grupo lógico. Ou seja, nós podemos fazer isso!

— Fazer o quê?

— Investigar, Dennis! Pra descobrir quem botou fogo na biblioteca e livrar nossa barra dessa merda toda! Nós podemos descobrir quem foi o culpado, a gente tem potencial!

Esperei por uma resposta, mas infelizmente, eu era a única animada o suficiente.

— E você descobriu isso baseado no nosso MBTI? — Reclamou, claro, a única coisa que Dennis Flores sabia fazer bem era reclamar.

— Claro que não! Eu sei que a gente tem potencial e sei que vamos conseguir se a gente trabalhar juntos.

Ele revirou os olhos.

— E como você pretende fazer isso, Sherlock? — Perguntou, e eu abri um sorrisão enorme.

— Não faço ideia, mas eu sei que vai dar certo. Você topa?

Por um segundo achei que Dennis fosse me ignorar totalmente, mas eu sabia que dentro dele existia um senso de justiça muito grande para que ele me deixasse sozinha nessa.

Ou, talvez, ele só me achasse maluca demais para sugerir algo do tipo e, sabendo que eu faria tudo sozinha caso ele não topasse, decidiu se juntar a mim para reduzir os danos.

De qualquer forma, eu estendi a minha mão e ele a apertou. A partir dali nós dois tínhamos a missão de encontrar quem foi o culpado pelo incêndio na biblioteca da escola.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A biblioteca da escola pegou fogo!" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.