A biblioteca da escola pegou fogo! escrita por Fane


Capítulo 12
Última noite




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Pode me encontrar na biblioteca daqui uns dez minutos?, eu perguntei já sabendo que era uma péssima ideia. Eu deveria ter ido imediatamente pra casa depois disso, sei lá, qualquer mentira ou desculpa esfarrapada seria melhor do que deixar toda a confusão acontecer.

Mas assim que Giselle deu as costas, eu segui até a biblioteca.

Os dez minutos pareceram uma eternidade, e eu não conseguia focar em absolutamente nada. Nem as piadinhas que Dennis decidiu me mandar por mensagem foram o suficiente pra me acalmar.

Até que a porta abriu e Giselle entrou na biblioteca com o mesmo sorrisão de sempre, apesar de ainda parecer confusa.

— Desculpa ter demorado, eu me enrolei na barraca do vatapá, o final da quermesse é sempre uma loucura... — ela comentou casualmente. — Então... o que cê quer me falar?

Senti um refluxo subindo.

— Quê? Ah... é... é meio complicado. Mas não é nada demais, não.

Como eu já esperava, me embolei com as palavras e despertei ainda mais a curiosidade de Giselle. Não tinha mais volta.

— Tudo bem, pode falar.

Ela se encostou na mesa da bibliotecária enquanto eu estava quase me jogando no chão e me arrastando até o pé das prateleiras, como ela podia estar tão calma numa situação dessas?

Então eu percebi: Giselle é possivelmente a menina mais bonita da escola inteira, provavelmente da cidade inteira, então já devia estar acostumada a receber declarações. Eu seria só mais uma entre milhares.

E pode parecer deprimente pensar assim, mas naquele momento eu achei bem acolhedor. Foi o que me deu forças pra continuar.

— É que... acho até que cê já percebeu, mas... eu meio que gosto de você. Desde o primeiro dia de aula... eu meio que tô apaixonadinha por você desde aquele dia... loucura, né?

Se eu tivesse visto a expressão no rosto dela naquele momento eu teria parado de falar e ido embora, mas eu me concentrei em tudo, menos em olhar pra cara dela.

— É sério...? — ela perguntou, depois de soltar algumas risadinhas junto comigo. Achei até que ela pudesse estar tão nervosa quanto eu. Impossível.

— Eu achei que fosse só uma crush passageira, acontece muito comigo, mas... aos poucos eu fui te conhecendo mais e te achando cada vez mais incrível... e aí... aconteceu, sabe...

— Mia...

— Eu sei que você não gosta de mim assim, eu sei. Eu só queria te contar, de qualquer forma. Pra você saber que eu gosto de você e que eu me importo com você e que eu te acho incrível e que seria horrível se você se afastasse por causa disso e...

— Mia, me escuta — ela falou. E eu me calei.

Giselle estava bem na minha frente, segurando meus ombros quase como se estivesse pronta pra me chacoalhar até eu calar a boca.

E foi tudo muito rápido porque, num segundo eu estava olhando bem no fundos dos olhos dela e, no outro, eu não conseguia ver mais nada.

Porque ela estava me beijando. Na boca.

Giselle estava me beijando.

Não chegou a ser um beijão de novela, mas foi um beijo. E a boca dela não tinha gosto de gloss de melancia, como eu imaginava, mas tinha gosto de pimenta e milho cozinho — o que também era bom.

E antes que eu conseguisse assimilar o que estava acontecendo, ela se afastou.

— Desculpa... eu não devia ter feito isso... — ela falou, mas eu estava em outra dimensão.

— Não tem problema... foi... foi legal.

Quando caí por terra percebi que só passaria ainda mais vergonha se continuasse falando, então me calei. Giselle riu baixinho e quando aquele momento acabou eu já sabia o que viria a seguir.

— Mia... eu já... eu meio que já gosto de alguém.

E choca o total de zero pessoas. Mas mesmo não sendo surpresa, mesmo eu já sabendo disso, mesmo assim meu peito doeu um pouquinho.

— É... eu sei.

— E... eu não deveria ter te beijado sem a sua permissão. Desculpa.

Eu poderia ter ido embora. Poderia ter me despedido ali. Mas decidi fazer mais um ato de burrice, já que eu ainda não parecia satisfeita em ter sido apenas rejeitada.

— Então por que beijou?

A pergunta pareceu ter pego ela de surpresa, então eu endireitei as costas e cruzei os braços só pra fingir que não estava totalmente quebrada e destruída.

— Não sei... acho que poderia fazer você se sentir melhor? Foi burrice minha, me desculpa.

— Não precisa se desculpar. Tá tudo bem.

— Sério?

Não.

— Claro. De boa.

Fiquei em silêncio por uns minutos. Não queria que ela pensasse que eu estava mal por causa do beijo sem permissão — que, apesar de ter sido de surpresa, teve cem por cento da minha permissão. Não queria que ela soubesse que eu estava com vontade de chorar. Não queria que ela soubesse que eu estava sentindo uma dor sufocante no peito que parecia muito ser gazes.

— Aliás, a pessoa que você gosta... — comecei, só pra tentar mudar de assunto. — É a Emily, né?

Giselle nem tentou esconder quando o rosto começou a avermelhar. E, mesmo com uma dorzinha no coração, percebi que ela era ainda mais bonita do que eu pensava.

— Tá tão na cara assim? — ela confirmou.

— Ela sabe que você gosta dela?

— Não sei. Acho que sim. Mas eu nunca contei.

— Por quê?

— Ela me conhece demais. E... não acho que ela sinta o mesmo.

— Você já perguntou?

— Não...

Eu poderia dizer na cara dela que Emily era completamente apaixonada por ela e que dava pra perceber isso só com um olhar, mas decidi ficar na minha.

— Eu gosto da Emi de verdade, e não acho que ela goste de mim do mesmo jeito, então eu prefiro não dizer nada...

— Você acha... por que não pergunta pra ela, só pra ter certeza?

— Porque não.

— Qual a pior coisa que pode acontecer?

— Ela pode me dar um fora e deixar de ser minha amiga, vai estragar tudo se eu contar...

Não falei mais nada, mas olhei pra ela com uma cara que dizia: tu acabou de me dar um fora, me respeita!, e acho que isso foi o suficiente pra acabar com a discussão.

— Mia... você gosta mesmo de mim? Tipo... romanticamente e tudo?

Soltei uma risadinha pra disfarçar o nervosismo. No fim, dei de ombros, não era mais tão importante assim.

— Não importa mais, importa?

— Eu gosto de você, Mia, de verdade, você é...

— Não precisa falar que eu sou uma ótima pessoa ou uma ótima amiga, tá? Eu já sei disso.

Com um sorrisinho pequeno no rosto, Giselle me deu um abraço. E foi a gota que faltava para meu copo transbordar.

Depois disso, peguei minhas coisas e saí da biblioteca sem nem olhar pra trás ainda sentindo o calor do corpo de Giselle no meu. Ainda sentindo a boca dela na minha.

Eu só queria sair logo dali e chegar em casa o mais rápido possível, mas antes mesmo de eu chegar até o portão de saída, senti meus olhos embaçarem.

E comecei a chorar.

 

Eu não fazia ideia que essa crushzinha que eu tinha era tão real. Mas, depois de finalmente botar tudo pra fora, eu percebi que gostava mesmo de Giselle.

No fundo, eu imaginava nós duas saindo da quermesse juntas. De mãos dadas, prontas para dar a notícia de que estávamos namorando para o mundo inteiro. Mas lá estava eu, andando sozinha pelos corredores. Me sentindo vazia.

E então, Dennis apareceu.

Bastou olhar pra mim e ele já percebeu o que tinha acontecido. E por mais que eu quisesse perguntar o que ele ainda estava fazendo ali na escola em vez de estar em casa, não consegui dizer nada.

— Como é que cê tá? — ele perguntou e eu quase respondi bem. Mas minha cabeça se mexeu por conta própria, neguei e chorei ainda mais.

Não tinha como eu responder de outra maneira já que minha cara já estava toda sebosa de ranho e lágrimas.

Dennis, por mais que não fosse lá muito sentimental, sabia que eu estava muito longe de estar bem. Então, ele chegou bem perto e me abraçou.

Eu odeio quando as pessoas me veem assim. Eu não sou assim. Não sou a pessoa que chora. Não sou a pessoa que precisa de consolo.

Mas Dennis estava ali por mim. E aquele abraço era possivelmente o melhor lugar para se estar. Foi aí que eu percebi que Dennis havia se tornado um amigo incrível.

Quando eu finalmente parei de chorar — o que pareceu uma eternidade — ele se afastou (e eu senti um friozinho extremamente desconfortável com isso) e fez o que eu jamais esperaria: secou minhas lágrimas com a ponta dos dedos.

— O que cê quer fazer agora?

Eu pensei em várias coisas. Poderia fazer o clichê que seria comprar sorvete e ver um filme brega ou desenhar Giselle num papelzinho e amassar ou atear fogo, mas nada daquilo parecia certo.

— Quero ir pra casa — respondi.

— Pra chorar a noite inteira?

— Eu não vou chorar.

Até porque eu já estava chorando.

— Tem certeza?

Ele tá certo. O que exatamente eu estava pensando? Que eu iria pra casa e tudo ficaria bem se eu tomasse um banho e dormisse antes das nove numa sexta-feira de São João? Completamente irreal.

Fora que eu não queria que minha mãe ou a Vó Alice soubessem que eu estava chorando por aí. Mas essa parte é detalhe.

— Chorar é bom, às vezes — resmunguei. Na verdade, eu estava mesmo era tentando me convencer. Chorar faz bem, sim, mas eu teimava em não acreditar nisso.

— Eu sei disso. Mas, assim... eu achei que cê tivesse com fome uma hora dessas.

— Tu vai pagar?

— Vai querer o quê? Milho? Vatapá?

Fiz careta.

— Eu quero comer bem longe daqui.

Não sei dizer se estava realmente muito tarde ou se a cidade inteira se panejou em fechar todos os estabelecimentos em prol da quermesse, mas foi bem difícil pra gente encontrar uma lanchonete aberta àquela hora da noite. Mas achamos uma e foi aí que a noite realmente começou.

Eu despejei tudo o que aconteceu entre Giselle e eu naquela noite num monólogo interminável enquanto Dennis bebia um suquinho de laranja. Um monólogo que unia engasgos, soluços e uma dicção terrível, porque além de ainda estar emotiva, eu estava comendo um pedação de bolo de laranja com cobertura de chocolate.

— Presta atenção, eu não chorei porque eu tô triste, tá? Mas, sim, eu tô triste. Só que não é bem assim, unhee, tô triste, vou chorar! É só que eu tinha certas expectativas, é normal se decepcionar, né?

— Aham. E cê tá bem agora?

— Tô ótima. Agora que eu tô mais calma percebi que não era amor de verdade.

Amor?

Dennis quase cuspiu o suco dele em mim, mas não me importei. Tinha que provar meu ponto.

— Não faz sentido, né? Eu conheço ela faz o quê? Um mês e meio? É literalmente impossível se apaixonar de verdade num período de tempo tão curto, né?

Ele ficou em silêncio, mas então respondeu.

— Talvez... cada um tem um tempo e...

— Não, presta atenção, não faz sentido nenhum se parar pra pensar...

Eu acho que foi bem nesse ponto que ele desistiu de me escutar. Dennis simplesmente apertou o botãozinho ignorar e parou de prestar atenção. Mas tudo bem! Ele pagou pelo meu bolo, pela coquinha gelada e estava sendo um amigo incrível numa situação bem merda enquanto poderia estar se divertindo ao tentar incriminar seu meio-irmão chato.

Ele tinha todo o direito de ficar entediado. E eu, claro, continuei tagarelando sem parar.

—... e é por isso que eu acho, sim, que elas fariam um casal lindo. Tomara que a Giselle se declare logo pra Emi, não aguento mais esse drama não resolvido entre elas. Aliás, eu tenho uma teoria. Acho que a Emi não gosta de mim porque sabia que eu era afim da Giselle. Aliás, porque eu tô chamando ela de Emi, mesmo? Ela nunca me deu intimidade pra isso... que loucura.

— Era? — Dennis falou, do nada.

— Era o quê? A Emily obviamente não gosta de mim, então eu acho que talvez ela soubesse que...

— Não. Não, tipo, cê disse que era afim da Giselle...

Estranhei.

— E daí? Quer dizer, ela não gosta de mim, então eu meio que tenho que arrumar um jeito de parar de gostar dela.

— Cê acha que tem como fazer isso?

— Hm... não de uma hora pra outra, claro. Por demorar um pouco, mas acho que sim. Demoraria menos se ela não tivesse me beijado...

E, pela segunda vez, Dennis quase me cuspiu.

— Ela te beijou?

— Beijou. Foi estranho, eu sabia que ela ia me dar um fora, mas daí uma gotinha de esperança apareceu e, em seguida, ela pisou na esperança sem dó. Mas até que eu gostei.

Ficamos em silêncio por um tempinho, a lanchonete estava pra fechar e eu ainda não estava pronta pra ir pra casa.

— Não se se isso te faz se sentir melhor, mas — Dennis começou, e eu já esperava que ele fosse fazer algum tipo de piada — a Giselle já me deu um fora também.

— Mentira!

— Verdade. Eu chamei ela pra ser meu par na quadrilha do sétimo ano e ela disse não na minha cara. A gente não era tão próximo quanto somos agora, mas foi pesado pra mim naquela época.

— Eu tô chocada... — comentei, ainda olhando pra ele.

— Por quê? Sou bonitão demais pra ser rejeitado, né?

— Hm... eu achei que você fosse gay... — comentei. — É que na festa da Emily eu te vi ficando com um cara e cê nunca demonstrou interesse por menina nenhuma, eu acabei tirando essa conclusão...

E ele suspirou.

— Ah... a enxerida tinha que ser você...

— É o quê?

— Eu sou bi, Amélia. Não que isso seja da sua conta.

Por algum motivo, meu nome saindo da boca de Dennis me fez sentir um calorzinho esquisito. Eu decidi ignorar.

— Legal. Eu sou pan.

Então ele que riu.

— Claro que é. Eu vi sua meia no primeiro dia de aula e percebi o padrão de cores nas suas roupas. Primeiro achei que você só fosse palhaça mesmo, mas então percebi que ninguém usaria azul, rosa e amarelo tantas vezes sem ter a intenção de virar uma bandeira pan ambulante.

— Eu vou levar isso como elogio.

— Sua família sabe?

— Sabe... precisei contar pra minha mãe depois... de um tratamento que eu fiz.

— Qual foi a reação dela?

— Foi bem calma... minha mãe sempre foi muito compreensiva. E ela foi criada por duas mulheres lésbicas, então eu não tive problema nenhum em falar... eu acho.

— Você tem duas avós?

— Tinha.

— Ah...

— E a sua família? Eles sabem?

Ele soprou uma risada bem sarcástica, acho que mereci.

— O que você acha?

— Não sabem...?

— Nem sonham. Só minha irmã, mas ela mora longe e a gente não conversa muito sobre isso.

— Não sabia que você tinha irmã.

— Ela mora na Capital... a gente conversa por mensagem às vezes, mas faz tempo que eu não vejo ela...

— Ela não vem visitar sua mãe?

— Minha mãe não é mãe dela...

— Ah, entendi... Dennis...

— Quê?

— Até que tu é legal, sabia?

Ele riu. Riu de verdade, como se eu tivesse dito a coisa mais engraçada do mundo.

— Tu também é bem legal, Amélia.

— Eu retiro o que eu disse — falei, só pra implicar.

Foi em meio aos risos que nós dois fomos meio que chutados da lanchonete, que já ia fechar. Dennis pagou a conta e seguimos nosso caminho.

Apesar de nenhum de nós saber qual caminho seria o certo.

— Quer ir pra casa? — perguntei, parte de mim queria muito voltar até a escola pra saber se Giselle ainda estava por lá. A outra parte queria muito sumir, ir andando até a Capital só pra conseguir ver o mar e fazer um pedido que nunca se realizaria.

Mas, dessa vez, eu não tinha anjinho ou diabinho no meu ombro pra me influenciarem. Tinha apenas Dennis.

— Cê quer ir pra casa comigo? — ele brincou, e de alguma forma conseguiu fazer com que aquela ideia maluca de passar na escola àquela hora da noite sumisse da minha cabeça.

— Claro, a gente pode ir pra casa do seu vô e jogar um baralho.

— Não vai rolar.

— Por quê?

— Ele só joga dominó.

No fim da noite, eu e Dennis nos despedimos. Eu fui pra minha casa e ele foi para a dele. Um pouquinho antes de eu me deitar fiquei espiando pela janela só pra ver se ele iria aparecer.

E ele apareceu. Abriu a janela e eu abri também, achando que ele teria algo importante para me dizer.

— Já tá com saudade? — foi o que ele disse.

E mesmo com um sorrisão no rosto, mostrei o dedo do meio pra ele e cobri a janela com a cortina sem nem imaginar o que o dia seguinte reservava para nós dois.


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