Montanha-Russa escrita por Lyubi
Houve o som do cinto fechando alto e as cancelas de segurança foram abaixadas, só então olharam para o vizinho ao lado e tudo o que era colorido no mundo se tornou suspenso no ar como se alguém tivesse colocado a cena em câmera lenta e retirado todo o som.
O sorriso do homem da esquerda despencou imediatamente para o assombro ao passo que a expressão do da direita saltou de desinteresse para um esbugalhar seguido de um apertar de olhos que poderia ser repulsa ou intriga.
Alheios ao brinquedo que ganhava vida e fazia o carrinho começar a andar pelos trilhos, os homens se encararam com curiosidade. Era como olhar para um espelho: enquanto pendiam o pescoço e voltavam o rosto para se encarar melhor, se aproximaram até onde a restrição da cancela permitia espremendo os olhos para perceber os detalhes e logo após se afastaram para ter uma visão geral, até mesmo o levantar de um braço num aceno foi copiado. Uma coisa era clara: não eram apenas semelhantes, eram idênticos!
Tinham a mesma fisionomia, mesma cor de pele, cabelos e olhos. Os cabelos do da esquerda estavam mais arrumados, lisos, penteados de lado, enquanto os da direita tinham sido modelados para trás e para cima num descuido calculado. O da direita estava maquiado numa representação suave de... palhaço? Havia uma lágrima e uma estrela desenhados nas bochechas. Vestia roupas liláses bastante singulares e sapatos pontudos que lembravam o "gênio da lâmpada" enquanto a sua sósia usava uma camisa branca e calça social cinza como quem tivesse acabado de sair do trabalho.
Encararam-se refletidos um no outro por vários segundos num mundo a parte da gritaria enérgica das duplas que iam atrás e a frente e curtiam a primeira grande queda do brinquedo.
O da esquerda foi o primeiro a sair da inércia.
— Estranho — a voz saindo num silvo baixo enquanto franzia o cenho.
— Incomum — retrucou o outro tentando aparentar mais coragem do que sentia.
Continuaram se medindo mesmo quando o brinquedo chegou na "parte quente" colocando todos os passageiros de ponta cabeça por ínfimos segundos.
— Desculpe — o da esquerda piscou estendendo a mão num cumprimento — Hisoka Morrow, pediatra.
O outro olhou a mão estendida, reparou as unhas curtas e limpas, palmas sem calos ou máculas. O cumprimento murchou ao perceber que não seria correspondido.
— Pediatra? — sussurrou ainda mirando onde a mão estava, parecia apavorado. — Você veio da parte de Illumi? — falou mais forte retomando a energia e sacando o baralho — É uma brincadeira, não é?
O outro não pareceu entender nem se sentir intimidado.
— Se estão brincando com você estão brincando comigo também. Não sei quem é Illumi... — explicou — Você trabalha aqui? — questionou apontando para as cartas e seu traje.
— Não. Sou um mágico. Assassino insano nas horas vagas.
Apesar do olhar perigoso o outro Hisoka apenas riu.
— Aprecio seu humor. Bom, trabalho com crianças e escrevo romances policiais sangrentos nas horas vagas.
O sorriso de canto, misto de diversão e desafio, desarmou o Hisoka das cartas. Gostava do outro Hisoka, espantou com um tapa mental a reflexão de narcisismo que bateu a porta.
— Quer ver um truque?
— Você não devia dizer que não há truques e tudo se trata de "mágica"?
Deu de ombros começando a embaralhar as cartas. Curiosamente elas não voavam com a velocidade do brinquedo ou as duplas piruetas que a montanha russa desenhava, mas o pediatra só pensaria nisso bem mais tarde.
— Escolha uma carta de qualquer lugar do baralho — pediu pomposo.
Suspirando com uma nota de impaciência o outro escolheu uma carta qualquer.
— Decore qual é e coloque de volta no meio do baralho — aguardou e entregou o maço para ele — Embaralhe, por favor.
Obedeceu e devolveu o maço ao dono original. Hisoka deu um olhar presunçoso para seu sósia e então deixou que todas as cartas voassem acima deles, os companheiros de brinquedo uivaram felizes mesmo sem saber do que se tratava.
— Pegue uma!
O pediatra pegou uma no ar. Seis de copas. Não era a sua. Sorriu maldoso.
— Errou.
— Mesmo? Que pena.
Uma moça na cadeira da frente virou para eles enquanto o brinquedo desacelerava, freios guinchando.
— Ficou grudado no meu cabelo — devolveu falando alto e risonha pela adrenalina.
Rei de Paus. Fechou a cara analisando a carta de todos os modos tentando descobrir a trapaça.
— Acertei, não foi?
Antes que pudesse retrucar, o carrinho parou erguendo as cancelas. Na plataforma, um grito infantil distraiu o médico.
— Papai!
Um garotinho loiro de dois ou três anos vinha correndo em sua direção segurando uma enorme maçã do amor comida pela metade. O pegou no colo antes que tropeçasse e ele lhe encheu de beijos babados pelo rosto, brincalhão.
— Haruki, pare de sujar o seu pai! — repreendeu docemente a loira plenamente grávida que vinha ao seu encontro — Desculpe, querido.
Do outro lado da plataforma Hisoka observava abismado.
— Assustador — comentou consigo mesmo.
— Tudo bem... — respondeu beijando o topo da cabeleira açucarada — Ei, eu não perguntei o seu- — mas quando se virou não havia ninguém lá — Nome...
⭐ ★⭐ ★⭐ ★
Tinham saído da entrada da montanha-russa e se sentaram para descansar. Hisoka estava agitado.
— Querida, nesse último brinquedo você viu o cara que estava comigo?
— O maquiado de roupa lilás? Parecia um cara engraçado — comentou despreocupada enquanto tentava limpar a bagunça doce no rosto do filho.
— Você notou algo diferente nele?
— Diferente? Não. Não prestei atenção. Você está bem?
Passou a mão pelos cabelos respirando fundo. Estava um pouco zonzo.
— Acho que a idade está chegando.
A doçura riu discretamente.
— Não ainda, Soka.
Ele sorriu quando ela estralou um beijo em sua bochecha e relaxou pondo as mãos no bolso da calça. Mas seu olhar endurecido caiu para encarar o coringa ali escondido.
⭐ ★⭐ ★⭐ ★
Na saída do parque, Machi esperava recostada numa pilastra.
— Satisfeito? — ralhou com o palhaço que vinha até ela.
— Pai? — resmungava consigo mesmo enquanto passava por ela.
— Hisoka. Ei, Hisoka! — começou a brigar, mas mudou o tom — Você está bem? Está pálido. — O segurou pelo braço o fazendo parar de frente para ela.
O mágico desceu o olhar angustiado. Respirou pesado chacoalhando a cabeça para os lados como se assim pudesse expulsar o incomodo.
— Estou bem, mas não faria mal se você cuidasse de mim essa noite, enfermeira. — se engraçou olhando-a safado.
O resultado foi imediato. Ela tirou a mão do seu braço revirando os olhos e rebolando a sua frente enquanto lhe estendia o dedo do meio.
— Vai sonhando, palhaço.
Livre do olhar da assassina, ele tornou a ficar sério tentando lidar com a dor de cabeça e confusão que envolvia sua mente. Pôs as mãos nos bolsos para segui-la e encontrou um pirulito de morango. Girou-o nos dedos antes de desembalá-lo.
— Prefiro uva. — O que era mentira.
— O quê? — perguntou a garota.
— Doce demais — ele respondeu sem responder.
“Doido de pedra” o pensamento assomou e sumiu para sempre.
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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
16/02/2019
— não sei por quê, mas adoro imaginar Hisoka em universos tangentes. A quem ler, fica aqui o meu "muito obrigada" ♥