Where We Belong escrita por Mad


Capítulo 11
Ver Para Crer


Notas iniciais do capítulo

Oi oi gente! Como estão?? Sejam todos bem vindos como sempre. Não tem nada de especial sobre a demora, é só o meu ritmo mesmo xP voltei pra minha universidade finalmente! Além de eu ter jogado MUITO Horizon Forbidden West xP inclusive, já tem uma leve referência nesse capítulo! Tô feliz com o capítulo apesar de tudo! Aliás, recapitulando: Aloy e Mathias começaram sua relação com o pé direito, e a situação desconfortável abalou bastante os seus próprios princípios. Elisabet por sua vez tem tudo o que precisa pra começar o seu árduo trabalho. Hora delas de reunirem de novo! Bom capítulo pessoal.



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Aloy estava pensativa.

 

A noite cobria o céu com estrelas, meras coadjuvantes pintando um plano de fundo refletido pelo espelho d'água, envolvendo a caçadora sentada na beira. Os momentos a sós e a quietude da noite haviam permitido – mesmo com certa dificuldade – o diluir de seus sentimentos frustrados e contrariados, os transformando em contemplação. Ao olhar para seu próprio reflexo na água, esperava alguma parte de si responder suas dúvidas fragmentadas, e no centro de tal caos, escondido por camadas e mais camadas de autocontrole, uma única palavra era clara como a luz do dia que viria a seguir. Ouvia o seu ecoar, na voz familiar que também saia de sua boca, e fazia seu coração acelerar. Mais uma vez.

 

Propósito.

 

"Aloy."

 

Essa era a voz real. Seus pensamentos, ainda caóticos, encontravam agora um obstáculo formidável na forma de Elisabet Sobeck. Ao olhar para trás, deu de encontro com o corpo levemente inclinado da Doutora, acompanhado por um olhar de indagação. "Te deixei esperando demais?"

 

"Não, não muito." A Nora se levantou, dando leves batidas em sua roupa. "Como foi lá?"

 

Elisabet sorriu genuinamente ao abrir a bolsa, pendurada na diagonal a partir de seu ombro esquerdo, revelando suas aquisições. 

 

"Tive que improvisar um pouco com a CYAN, mas achei tudo que preciso. Acho que consigo montar um terminal que pelo menos funcione."

 

Ambas se colocaram no caminho através do mercado de Meridiana, com o movimento já reduzido e algumas tochas apagadas nas paredes. Aloy tentou ao máximo retribuir o sorriso de sua companheira, porém foi impedida por suas distrações anteriores, dissolvendo assim o sorriso de Elisabet de uma forma desconfortável.

 

"Que bom que encontrou tudo. Seria ruim se nenhuma de nós tivesse sucesso hoje."

 

O desânimo podia ser qualquer coisa. Discreto não era.

 

"Foi tão ruim assim?"

 

Uma risada breve e sarcástica preencheu a conversa com uma compreensão quase que emergencial, as colocando em sintonia. Aloy a complementou dizendo: "Eu não acho que existe café quente o suficiente, Elisabet."

 

A doutora se esforçou para não rir.

 

"Não tem motivo algum pra ensinar alguém que não quer aprender… Não sei qual é a ideia genial da Talanah, sendo bem sincera."

 

"Vocês bateram cabeça?"

 

Dessa vez o tempero das palavras era um suspiro pesado, e seu cenário era o de um rosto apontando para qualquer direção, desde que fosse contrário ao rosto de Elisabet.

 

"Sim…" Elisabet podia jurar que Aloy ensaiava dizer algo, antes de ouvir a garota concluir: "...mas tá tudo bem. Resolvo isso amanhã." A animação com seu novo projeto foi enterrada debaixo do lábio que mordia em preocupação. Tinha a posse dos meios para lidar com seus problemas, e via ao seu lado aquela que não tinha a mesma sorte.

 

Se tratava mesmo de sorte? Mesmo após mil anos? Do destino do mundo, ao emocional de uma garota. Tudo era resumido a uma grande loteria de circunstâncias? Elisabet segurava o sim e o não em suas mãos, agindo como uma balança.

 

"Você não precisa ficar pensando nisso durante o jantar, tudo bem?"

 

Existiam sim certas coisas sob o controle das pessoas. Por uma mera fração de segundo, Aloy quis perguntar para o próprio universo o porquê de ter se sentido tão acolhida com simples palavras. Os problemas não haviam desaparecido, mas tiveram a clara permissão de se deitarem no mar de estrelas, milhões e milhões de quilômetros acima de sua cabeça. Essa era a voz. Tão semelhante, mas agora, nessa fração de segundo, totalmente diferente. Porém apenas o silêncio dava a Elisabet a vaga ideia do que se passava na mente da caçadora.

 

"Eu preciso deixar essas coisas em casa, e trocar essa roupa empoeirada… juro que não vamos atrasar."

 

"Tome seu tempo, eu te espero aqui fora."

 

~.~

 

Marad Inocente caminhava a passos lentos, ecoando desde o piso liso de mármore até às paredes brancas do palácio do Sol. Aloy e Elisabet vinham logo atrás, acompanhando o mesmo ritmo lento. Tal serenidade convidava a Doutora a contemplar seus arredores com o nível de detalhes que estava acostumada. Cada pilar ou corrimão brilhava em ouro, além dos adornos que utilizam todas as oportunidades possíveis para fazer referências ao sol. Era impossível não se sentir em um local importante, e para alguém que conhecia de perto as figuras de poder de sua época, era impossível não sentir ao menos um desconforto, agudo no melhor dos casos. O povo de Meridiana não parecia sofrer de más condições de vida, muito pelo contrário, porém a riqueza presente no palácio do Sol trazia nítidas lembranças de um certo alguém, aquele cujo ego o elevava aos céus de sua megalomania. 

 

E tudo isso sumiu ao ver Avad.

 

Conduzidas a uma sala adjacente – e não a de jantar com sua grande mesa – a figura do rei sol revelava-se na inesperada forma de um homem comum, pacientemente preparando uma mesa consideravelmente menor, com um entusiasmo visto somente em alguém responsável por um jantar. O homem, vestindo roupas comuns em comparação aos adornos usuais, pôs a última toalha de mesa no lugar antes de direcionar seu olhar para as duas convidadas, abrindo um sorriso antes de se aproximar. 

 

"Que benção te ver aqui, Aloy."

 

"É bom estar de volta." 

 

Elisabet percebeu o sorriso devolvido por Aloy antes de finalmente dar um passo à frente e, diferente das outras vezes, tomar a iniciativa, estendendo sua mão. 

 

"É um prazer, Rei-Sol."

 

O anfitrião arregalou seus olhos ao cumprimentar Elisabet.

 

"Vocês são–"

 

"Parecidas." As vozes pareceram uma só ao arrancar do rei uma risada capaz de tirar a tensão de qualquer ambiente. O aperto de mão se separou ao passo que todos recuperaram o fôlego.

 

"O prazer é todo meu, sem exagero. Como devo chamar alguém que quis conhecer por dias?"

 

"Elisabet Sobeck. Espero que tenha feito jus a sua ansiedade."

 

"Com certeza fez, mas acima de qualquer coisa, fico feliz por seu reencontro. É reconfortante ver que a Aloy tem mais alguém com quem contar." Dois ou três segundos de contemplação silenciosa fizeram as bochechas de Avad se avermelharem, levando a um leve gaguejar ao finalmente conduzir suas convidadas à mesa, puxando as duas cadeiras logo atrás de si. "Por favor sentem-se, fiquem à vontade."

 

Com a clássica hesitação de quem é recebido, ambas tomaram seus lugares, ajeitando os adereços de suas roupas, seguidas por Avad, na cabeceira. 

 

"Devo dizer que é de certa forma raro, mas os pratos do jantar foram em sua maioria preparados por mim, espero que gostem." Com cuidado, o Rei-Sol levantou três cloches revelando os três pratos. Um com salmões assados, separados por folhas de alface, outro com pães e sopa, e por fim o que eram sem dúvidas filés de porco, reconhecíveis para qualquer um independente de sua era no tempo, ou lugar do mundo conhecido no século 31. Foi impossível para as duas não repetirem o gesto anterior de Avad e arregalarem seus olhos. 

 

"Sei que muitos usam jantares como pretextos para alguma outra coisa, mas não é o caso aqui. Por favor, comam sem hesitar. E me digam sua opinião."

 

"Eu não fazia ideia de que você cozinhava, está com uma cara ótima."

 

"Não poderia mentir e dizer que não tive ajuda. Mas digamos que meus anos fora do palácio me forçaram a aprender algumas coisas."

 

O clima caseiro e amigável pairava sobre a mesa, tão natural que provavelmente evadia a percepção. Avad esperou ambas se servirem – ainda visivelmente hesitantes, mas também com fome – para então fazer o mesmo. Aloy não teve dúvidas de degustar a carne suína antes de qualquer outra coisa, já familiarizada com suas caçadas para sobreviver nos ermos. O sabor porém indicava um preparo com maestria e cuidado. Elisabet tomou o caminho contrário, saboreando o salmão que a fez lembrar imediatamente de restaurantes de seu distante passado. O esmero de Avad havia valido a pena por completo ao receber os elogios, verbais e não verbais. 

 

"É tão bom que me sinto até culpada por comer." Elisabet disse sorrindo.

 

"Tudo está muito bom Avad, não lembro de ter provado algo bem feito assim recentemente."

 

"Ora por favor, deveria ser impossível deixar um rei sem graça assim."

 

Os elogios eventualmente deram lugar a conversas casuais e previsíveis, com Elisabet explicando sua suposta razão para estar tão distante, e Avad pedindo para ser chamado por seu nome. A naturalidade que o Rei-Sol se esforçara tanto para construir resultou em um caminho satisfatório até o assunto "Oeste Proibido", para o qual Aloy não tinha tanto a dizer quanto desejava.

 

"Pra dizer a verdade, o sinal não me levou pra tão longe assim, não vi nada de muito diferente."

 

"Hm, imagino que não tenha ido até Ocásia então."

 

"Ocásia? Eu não conheço."

 

Avad mudou para uma expressão neutra antes de prosseguir.

 

"É a última cidade que separa o território Carja do Oeste Proibido propriamente dito. Você esteve em terras perigosas, não se engane, mas o Oeste tem muito a oferecer além dos muros de Ocásia."

 

"O mar, eu imagino." Elisabet disse claramente pensando em voz alta, estimando a geografia sem nem perceber.

 

"O povo do Solar só escuta histórias, mas na verdade é uma cidade bem comum. Mais alguns dias naquela direção e Aloy teria visto com os próprios olhos."

 

"Quem sabe um dia."

 

Os pratos já se encontravam vazios quando Aloy viu a oportunidade de tocar em um assunto um pouco mais comum para si, imediatamente atraindo a curiosidade de ambos.

 

"Tem uma coisa que você devia saber na verdade. Mesmo não indo tão longe, tive que lidar com máquinas estranhas." Avad inclinou seu corpo para frente, demonstrando atenção. "A primeira era um modelo novo, tinha uma calda cortante e grande, além de serras na mandíbula."

 

E então arregalou os olhos frente à informação.

 

"Eu recebi relatos de máquinas novas recentemente… porém muito vagos."

 

"Essa nem é a parte mais estranha." Aloy continuou. "Tanto essa nova máquina quanto as antigas tinham olhos prateados, e eram mais agressivas."

 

"Nos deram trabalho na volta, ainda tenho as marcas na perna pra provar…"

 

Avad permaneceu com sua expressão pensativa, repousando o rosto em suas duas mãos juntas. "São relatos confiáveis, vindo de vocês duas." Uma pausa, preenchida pela brisa vinda de fora. "Muitos de meus antepassados evitaram crises sendo prevenidos, vou seguir seu exemplo." Ao se levantar, ambas o acompanharam. "Irei mandar mensageiros às cidades além do Solar, e investigar isso mais a fundo. Agradeço muito pelas informações."

 

"E nós pelo jantar." Elisabet tratou de trazer o clima confortável mais uma vez.

 

"Elisabet, saiba que assim como Aloy você tem minha total proteção e apoio. É bem vinda em qualquer lugar do Solar, com a minha benção."

 

"Não deveria ser possível deixar uma convidada ainda mais sem graça." Mais uma vez, as risadas leves tomaram conta do ambiente. "Obrigada, Avad. Garanto que encontrarei um jeito de contribuir por aqui."

 

"Você com certeza ajuda a Aloy, e ela por sua vez me ajuda quase que constantemente. Já está contribuindo."

 

Os três trocaram os últimos cumprimentos, e Elisabet deu alguns passos em direção ao caminho de volta antes de parar e perceber que Avad ainda tinha coisas a dizer para Aloy.

 

"Parabéns pela promoção, é o mais justo com certeza."

 

"Obrigada… apesar de ter me pego de surpresa. Não me via tendo um papel na Ordem. Ou que as pessoas queriam isso."

 

Avad riu da declaração da caçadora, a deixando visivelmente confusa. 

 

"Você aceitaria um conselho de amigo?"

 

"Claro."

 

Avad se deu a total liberdade de por uma de suas mãos no ombro de Aloy, e não encontrou qualquer tipo de adversidade vindo da caçadora, apenas sua confusão já estabelecida. Disse então, no exato tom de um velho amigo preocupado:

 

"Tente ao máximo viver no agora. Algumas coisas são exatamente como devem ser."

 

O natural seria guardar tal conselho em uma pequena caixa em sua mente, denominada "conselhos que não posso aplicar", porém dessa vez era diferente. Assim como sentia volta e meia com os conselhos pontuais de Elisabet. Era um pensamento teimoso, arisco.

 

"Eu vou tentar, garanto." O tom de voz de Aloy se aproximava do desdenhoso gentil que desejava, porém não o suficiente. O sorriso do amigo, porém, matava toda e qualquer questão. Se despedir era sua única saída. "Obrigada de novo, Avad. Você cozinha muito bem, sabia?"

 

"Eu sei mais agora, graças a você e sua mãe. Até mais Aloy."

 

O rei apenas voltou para seus aposentos quando perdeu as duas ruivas de vista, encontrando a voz de Marad Inocente em seu ouvido.

 

"Foi como planejou, vossa luminescência?"

 

"Foi ainda melhor, nunca havia visto Aloy tão confortável."

 

"E eu nunca tinha visto o senhor tão feliz."

 

"É, eu também não." Avad olhou para trás uma última vez, e assim voltou para o conforto de seu palácio. "Venha, Aloy trouxe notícias do Oeste."

 

~.~

 

"Tem certeza que isso aqui é seguro…?"

 

Não havia outra coisa a se perguntar enquanto Aloy segurava com certo receio uma vela de máquina. Elisabet por sua vez delicadamente conectava alguns cabos a peça, de uma forma totalmente não ortodoxa.

 

"Sim, é totalmente seguro. É só não… fazer movimentos bruscos." 

 

"Geralmente essas coisas explodem…"

 

"Quando expostas a uma carga de mesma polaridade, tipo as suas flechas, sim. Mas nesse caso a energia tá indo todinha pro meu terminal improvisado. É a minha bateria, só não sei quanto tempo vai durar…"

 

"Então vai precisar de mais delas. Aliás, mal chegou e já sabe como faço as flechas elétricas?"

 

Elisabet não pôde conter seu riso.

 

"Você vai se ofender se eu disser que são meio rudimentares?"

 

"Não. E rudimentar não quer dizer ruim. Você as viu funcionando, espertinha."

 

E Aloy não pôde impedir a si mesma de devolver. Não era sábio subestimar a Doutora Sobeck.

 

"E é assim que fazemos mágica." Com a frase de efeito, o terminal se ascendeu projetando uma tela holográfica. Elisabet não poupou o próprio orgulho ao contemplar o sucesso enquanto Aloy repousava a peça com cuidado ao chão. "Daria pra computar a história Carja inteira aqui, e sobraria espaço pra fazer uma cópia por cada habitante." 

 

"Ok, ok. Conseguiu me impressionar. Você sabe extrair o potencial da sucata, parece até uma Oseram."

 

"Céus, eu não usaria um decote daqueles nem morta…"

 

"Então você ficou olhando?"

 

"Não! Eu só percebi…" seria impossível esconder qualquer coisa da expressão propositalmente invasiva. "Ok Aloy, a sua amiga é bonita, podemos ir dormir?" Elisabet disse entre risadas, subindo as escadas após fechar com um movimento de mão todas as telas. Já estavam no quarto quando retomaram a conversa.

 

"Obrigada pela ajuda."

 

"Eu só segurei uma peça. Você que fez a tal mágica."

 

Silêncio. O clima nitidamente era uma barreira opaca, escondendo alguma coisa. O jantar havia acalmado seus ânimos anteriores, mas não de forma permanente.

 

"Você ainda não me disse como foi com a Petra." Aloy disse, sem olhar para a Doutora enquanto repousava seus equipamentos em uma gaveta.

 

"Bem, ela sente sua falta. Mas você também não me contou sobre o que deu errado com o Mathias." Elisabet infelizmente tinha o combustível do incêndio na ponta da língua, sem saber. Aloy por sua vez fechou a gaveta com certa força antes de Elisabet prosseguir. "Não que você seja obrigada mas…" 

 

Seria fácil construir uma barreira contra a preocupação da mais velha. No mundo ideal, a caçadora não iria dever tais satisfações. Esse mundo porém tinha se desfeito dias atrás, por conta de tudo que já haviam passado juntas em tão pouco tempo. Aloy sentiu as palavras saindo de sua boca como se pulassem para fora, desesperadamente.

 

"Ok, a gente brigou. Eu acabei dizendo que nenhum de nós queria estar ali. Ele disse que vamos acabar rápido com isso e nunca mais ouvir um do outro." Ao longo de sua explicação, seu tom acalorado a fez falar gradativamente mais rápido.

 

"E o que pretende fazer? Largar de mão?" Aloy olhou para a Doutora e novamente para o chão, em silêncio frente a pergunta. "Olha, eu te entendo, ok? Às vezes as pessoas só não se dão bem e–"

 

"Eu não vou parar o treinamento."

 

Elisabet interrompeu seus raciocínios, surpresa, e então os realinhou em uma dúvida.

 

"Mesmo fazendo mal pra vocês dois?"

 

"Se amanhã der errado de novo… eu penso no assunto." Aloy respondeu com dificuldade. Sua súbita esperança se agarrava ao precipício com um único dedo a esse ponto. "De qualquer forma eu ainda não posso ir atrás das Funções Subordinadas, né?"

 

"É, como eu já te disse… Não sabemos onde elas estão."

 

"Então não é como se eu tivesse opção."

 

As palavras, tanto as certas quanto as erradas, saiam facilmente na presença de Elisabet, como sempre. Secretamente a caçadora se perguntava o porquê.

 

Elisabet se sentou na cama adjacente, menor, retirando sua túnica, seu Foco e os colocando acima de um pequeno móvel logo ao lado. Via de frente a cama de Aloy, com a garota se preparando para deitar.

 

"Não é bom ter um tempo pra si mesma antes de sair por aí arriscando a vida de novo…?"

 

Aloy não respondeu nada, apenas repousou sua cabeça no travesseiro. Tal incêndio era, por incrível que pareça, totalmente necessário. 

 

~.~

 

As telas holográficas ocupavam toda a extensão da sala onde a Doutora Sobeck já trabalhava ao amanhecer. O olhar focado nas linhas de código indicava a falta de qualquer fadiga, ou período longo de criogenia experimental no seu caso. Os passos vindos da escada porém não escaparam seus ouvidos.

 

"Bom dia, garota." Ela disse, ainda olhando para o painel a sua frente e digitando, eventualmente tomando um gole de café, dessa vez em uma xícara com o símbolo do Zero Dawn, resgatada de seu lar dias antes.

 

"CYAN, ela teve quantas horas de sono?"

 

"A Doutora Sobeck dormiu por exatamente 5 horas e 47 minutos, Aloy."

 

A Doutora riu enquanto movia a cabeça em negação. 

 

"Não se preocupa, eu descansei bastante. Além do mais, eu vou ficar aqui o dia todo hoje." Era sua vez agora de deixar as palavras voarem para fora, sem rédeas. "Eu tenho dois objetivos a médio prazo… digitar os códigos do novo protocolo da CYAN e dar um jeito de rastrear as funções. Não consigo dar estimativas mas eu garanto que–" a mão que tocou o seu ombro a fez parar de falar imediatamente e virar o corpo dando de olhos para uma Aloy humilde, de ombros caídos. Era obviamente alguém que não havia passado por pesadelos.

 

"Eu te devo desculpas, Elisabet. Por ter sido grosseira ontem a noite. Eu sei que você está dando o seu melhor." Por fim, a moça sorriu, firmando sua postura. "Vou fazer a mesma coisa."

 

Elisabet segurou sua mão, a tirando do ombro e a apertando carinhosamente. "Não dá pra esperar algo diferente de nós duas. Boa sorte com o garoto hoje." Com ambos os sorrisos pintados nos rostos, Aloy se virou de costas em direção a escada novamente.

 

"...espera aí! Já ia me esquecendo." A doutora tomou em mãos uma outra xícara, totalmente branca e sem estampas. "Esse é seu."

 

"Um dia bom ou ruim sempre começa com um bom café."

 

"Vamos torcer pra ser um bom. Para nós duas."

 

~.~

 

A movimentação na entrada da cidade era uma exata réplica do dia anterior, desde a comoção controlada dos comerciantes até a visão do garoto encostado na cerca de madeira, a alguns passos do portão. Seu olhar ia de encontro ao portão apenas para voltar ao chão segundos depois, como se não quisesse admitir a si mesmo que esperava quem esperava. E assim aconteceu.

 

Aloy surgiu da ponte, por trás dos guardas e enfim a caminho de onde estava seu tordo. Era difícil para ambos manter o contato visual, porém Aloy forçou a si mesma, sorrindo discretamente.

 

"Bom dia." O garoto disse, numa tentativa de compensar seu próprio desconforto. 

 

"Bom dia, Mathias."

 

O rapaz olhou para trás, notando que o espaço de treinamento permanecia inalterado. A Águia por sua vez tomou a frente, dizendo de forma assertiva:

 

"Vem, vamos começar."

 

A reação do garoto não era decifrável em nível emocional, apenas seguindo Aloy até onde estavam os alvos de feno. À primeira vista, seria uma repetição não emocionante do dia anterior. Isso até Aloy começar o alongamento virada de frente para seu aluno. O gesto simples fez Mathias imediatamente repetir os movimentos da Águia, sem hesitar, apenas olhando eventualmente para frente tentando repetir o alongamento com a maior precisão que conseguia. Se o orgulho teimoso do dia anterior permitisse, Aloy mostraria um sorriso de canto de boca. Manteve-se neutra porém.

 

"Não esqueça de forçar um pouco mais os braços."

 

E assim o rapaz fez, sentindo os ossos estalando desde o ombro até o os dedos. O mesmo orgulho de sua professora o impedia de mostrar o exato mesmo sorriso.

 

"Ok, de onde paramos."

 

Enfim a hesitação crônica se revelou. Alguns segundos de contemplação o levaram lentamente até a posição, 15 passos à frente do alvo. E estaria pronto para continuar a sucessão improdutiva do dia anterior, até dizer em um súbito lapso de coragem que desafiou seu falso orgulho: 

 

"Do mesmo jeito?" 

 

Ser pega de surpresa deveria ser rotina. Adoraria dizer não, e dar instruções precisas sobre como consertar seus erros, mas não conseguia se lembrar de tais erros por mais que tentasse. Era hora de ser honesta.

 

"Por enquanto, sim."

 

Mas não tanto.

 

O rapaz mais uma vez acatou, calando suas teorias e possibilidades mentalmente. O que ele poderia saber? 

 

Um dedo acima, dois abaixo. A corda retesa. Os músculos das costas se contraem.

 

E a seta sai voando como se perseguisse uma irmã do dia anterior, por cima do alvo e desaparecendo no córrego diretamente atrás. O silêncio era o maior medo de Aloy, e por um certo momento, curto demais para qualquer quantificação, era a mais realista das situações. E então, rompendo o vazio sonoro, o sinal universal do descontentamento surgiu:

 

"Tsc"

 

Seguido por um suspiro. Aloy tardou para relacionar corretamente os sentimentos expressos pelo rapaz que acabara de errar mais uma vez. Era com certeza a primeira vez que Mathias demonstrava frustração, após tantas oportunidades de fazê-lo.

 

"Tudo bem?"

 

Retorno. Enfim, essa peça fundamental do pacto entre aluno e professor existia. A hesitação crônica, o desconforto, o orgulho, nada poderia ser maior que tal momento.

 

"Hm? Ah, é só a corda apertando os dedos."

 

Aloy imediatamente arregalou os olhos, descruzando os braços e se aproximando alguns passos, enquanto o rapaz preparava mais uma flecha a partir da aljava. Com a voz subindo em tom aos poucos, ela enfim disse:

 

"Posso ver suas mãos?"

 

E na combinação rotineira da hesitação e da rendição, Mathias concordou, abrindo ambas as mãos viradas para cima. Nitidamente, havia as marcas da corda nos dedos da mão direita e a palma avermelhada da mão oposta,  sinais claros de uma hipótese recém nascida.

 

"Isso é normal, né?"

 

"Não em quem acabou de começar."

 

"Então eu tô mesmo fazendo algo de errado…"

 

"Talvez não. Puxe a flecha de novo, mas sem soltar."

 

Como rotina, o rapaz o fez. E claro como o dia, Aloy podia ver a ponta da flecha tremendo, não de forma grosseira mas o suficiente para entender exatamente o que estava acontecendo. O garoto soltou a postura quando percebeu o leve riso de Aloy, riso esse que servia como um puxão de orelha em si mesma.

 

"O que acontece é que eu te coloquei um pouco longe do alvo, desde ontem. Então você compensa puxando forte demais. A sua mão de apoio treme e aí fica difícil controlar a direção."

 

"É sério?" Mathias olhava para frente e para suas próprias mãos como se o segredo revelado estivesse óbvio desde o início. "Então quer dizer que…?"

 

"O erro foi meu. Perdão, garoto."

 

Aloy observou a distância. Era sutil, mas relembrando de seu próprio treinamento com Rost, simples de perceber. 

 

"Posso chegar mais perto?"

 

"Uhum, uns cinco passos talvez."

 

Tendo o peso dos erros retirados de suas costas, Mathias deu cinco passos adiante. De forma quase que inconsciente – levando parcialmente em conta a epifania de Aloy – o puxão da corda foi feito de forma mais branda, cessando os tremores de sua mão não dominante. Os fundamentos estavam todos no lugar, respirando fundo por fim. A flecha, com menos poder, percorreu uma parábola mais perceptível, acertando um dos círculos internos do alvo pintado. Ia muito além do acerto vazio do dia anterior, como estampado no sorriso em seus rostos. Ambos haviam feito o disparo. 

 

Aloy abriu a boca para parabenizar seu aluno, ambos visivelmente orgulhosos do feito, porém um som chegou em seus ouvidos antes disso. Nos ouvidos de todos ao redor. E a caçadora virou-se para trás sabendo exatamente o que esperar, mesmo que no lugar mais inesperado possível. 

 

Acima, no vale que dava acesso a cidade, os dois pés metálicos deixavam marcas na grama, apoiando a postura aviária de um Pernalonga fora de seu percurso usual. Era apenas uma máquina, porém em uma situação adversa o suficiente para causar a comoção dos comerciantes reunidos, obstruindo coletivamente a entrada da cidade em poucos segundos até serem contidos pelos soldados do Sol. Sob seus olhos assustados, pairava um brilho prateado, um presságio já conhecido pela Salvadora de Meridiana.

 

"Mathias, pra trás!"


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Notas finais do capítulo

Uma ceninha de ação depois de tanto slice of life não machuca ninguém xP pelo menos a gente espera que não né? E existe sim esperança pra esses dois! Ficaram felizes com isso? A partir de agora vamos ter mais input do Mathias, mas até lá, me digam o que acharam! Quero agradecer como sempre a minha irmã Anny (VanillaSky, para os fãs!) que leva essa fic pra frente tanto quanto eu. Dêem uma olhadinha lá nas fics super incríveis dela por mim tá? Quero começar o capítulo 12 o mais rápido possível! Tô bem empolgado, mas como sempre, sejam pacientes xP vai ser um semestre super difícil. Até a próxima!



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