Um estranho no fundo dos olhos escrita por Yokichan


Capítulo 2
Capítulo II




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Quando Marcos acorda, na manhã seguinte, nesgas de sol penetram pelas persianas do quarto, mas ainda é cedo – ele constata ao apanhar o relógio sobre a mesinha de cabeceira. Depois de um momento de vertigem, sentado na beira da cama e sentindo o gosto azedo do espumante da noite passada, vai tateando até a janela – chuta os sapatos largados pelo caminho – e sobe as persianas. A luz preenche o quarto e o cega por um instante, mas quando seus olhos voltam a enxergar, todo aquele verde é recompensador. A vista que Marcos tem contempla um ângulo dos montes de mata fechada que formam um cinturão verde ao redor da cidade. Àquela hora da manhã, parece-lhe poder sentir no ar até mesmo o cheiro úmido das árvores.

Como um cara metódico, costuma cumprir a mesma rotina nas manhãs de domingo. Escova os dentes andando pelo apartamento, checando se tudo se encontra no seu lugar. Dá uma olhada nas notícias do dia no celular enquanto passa o café – o som da água quente escorrendo pelo filtro e caindo dentro da xícara é reconfortante, ele sempre repara. De pé diante da pia da cozinha, encarando os azulejos da parede, bebe o café, sempre forte o suficiente para acordá-lo, e come duas fatias de pão tostadas na torradeira. Por fim, veste uma bermuda larga de tecido e uma camiseta velha, calça os tênis – tecnologia ultraboost de amortecimento – e sai para correr.

Marcos gosta da sensação da corrida. Os músculos trabalhando duro durante os primeiros minutos de exercício, exigindo um esforço que parece pesado demais, para então entregarem o seu melhor desempenho quando o corpo aquece e se acostuma aos movimentos. A respiração que acompanha o ritmo das pisadas. O sentimento de exaustão, mas sobretudo de renovação, ao final dos 40min de corrida. Contudo, gosta também de como correr pelas ruas ainda silenciosas da cidade o faz sentir-se em paz. Não há tráfego barulhento e as únicas vidas que parecem existir naquele momento são a sua e a dos pássaros nos fios de luz. Eventualmente, também a do entregador de jornal quando Marcos passa por ele.

Há quem considere a ideia incoerente, mas, para Marcos, correr é relaxante. Às vezes, como agora, ele permite-se até mesmo ser engolfado pelo fluxo dos pensamentos enquanto o corpo se movimenta no piloto automático. Ele pensa em Ana, em seu sorriso encantador, mas também nas linhas de tensão de seu rosto, e recorda-se de como sentiu-se outra vez um adolescente desnorteado na presença dela. Pensa no vazio decepcionado que pareceu alojar-se no fundo do peito quando se despediu dela na noite passada. Pensa que quer muito encontrá-la novamente.

Marcos se pergunta por que diabos aquilo está acontecendo. Afinal, não é como se ele nunca tivesse ficado com uma garota, se apaixonado e namorado. Ele já havia passado por todas essas situações. A primeira vez fora na escola, durante a sexta série, quando entendeu que caía de amores por Natália Theisen, uma colega de turma. Infelizmente, o primeiro amor acabara de maneira desastrosa, pois a menina ridicularizou-o para a escola inteira depois que Marcos reuniu coragem para declarar-se.

Depois houvera Carolina Eick, no segundo ano do ensino médio, linda e problemática, com quem namorara até o terceiro ano e por quem fora muitas vezes traído, até terminarem em uma discussão que o deixara em estado de depressão por dois meses. Ele só tinha voltado a namorar quando, já na faculdade, conhecera Júlia Ribeiro. Ela cursava ciências econômicas e acabaram ficando próximos em uma disciplina em comum. Júlia era inteligente e divertida e seu mundo orbitara ao redor dela por quase um ano de relacionamento, até que, um dia, ao acordar ao seu lado, ele soube que o sentimento havia morrido, apagando-se lentamente até consumir-se de todo. No fim, ela o havia acusado de ter se apaixonado por outra pessoa – porque lhe pareceu impossível que o namorado simplesmente não a amasse mais, sem nenhum motivo razoável – e ido embora magoada.

Desde então, Marcos tinha conhecido duas ou três garotas que não passaram de uma noite e de quem hoje ele não lembra nem mesmo os nomes. Entretanto, essas garotas tinham existido e passado por sua vida. Ele havia aprendido com esses relacionamentos e crescido a partir deles, deixando de ser um garoto tolo e facilmente impressionável. Mas então por que a noite passada parecera jogá-lo de novo à estaca zero e reviver nele um sentimento nunca experimentado, angústias e inseguranças com as quais ele não sabia lidar? Por que tinha sido diferente? Por que Ana o desconcertara tanto?

Ele pensa nela e sente que uma onda de ansiedade percorre seu corpo.

E decide, meio que por instinto, que precisa vê-la outra vez.

***

Um pouco antes do meio dia, Marcos pega o laptop consertado na loja de assistência técnica que fica no shopping e aproveita para levar algo para o almoço. Como é domingo e a praça de alimentação está bastante tumultuada, ele opta pelo restaurante menos movimentado. No caminho, acaba passando em frente ao Subway e lembra-se do ticket de desconto que deu à Ana. Enquanto observa os rostos das pessoas que aguardam na fila de pedidos, imagina como seria incrível se ela estivesse ali, justo agora.

Mas é claro que não está.

***

Em casa, a primeira coisa que Marcos faz depois de ligar o computador e se certificar de que está funcionando corretamente é procurar por ela nas redes sociais. Ana – Ana de quê? Ele não sabe seu sobrenome e compreende que certamente existem milhares de Anas na internet, mas tem algumas cartas na manga: sabe onde ela trabalha e com quem.

Então abre o perfil da empresa no Facebook e xinga baixinho ao perceber quantas pessoas curtem a página. Mais de 150 mil usuários. Mesmo assim, ele descobre que não consegue ter acesso a todos os nomes, apenas aos que são seus amigos na rede social. Tenta então encontrá-la nos perfis de Daniel, o jovem aprendiz, e de Pedro, do setor de comunicação. Nada. Tanto um como o outro não parecem tê-la na lista de amigos. Marcos começa a cogitar a ideia decepcionante de que Ana possa não estar nas redes sociais – improvável, mas não impossível –, quando encontra, no perfil de Daniel, uma publicação em que Jana está marcada. E eis que, ao conferir a lista de amigos de Jana, lá está quem ele procura.

Ana Reichert.

Ele reconhece o rosto dela pela foto de perfil e sente que sua respiração, quando finalmente lembra de soltar o ar, treme suavemente. Patético. Marcos tem ímpetos de bater em si mesmo. Mil vezes patético. Vacilando por uma garota como se fosse um rapazinho imberbe. Mesmo assim, hesita em clicar sobre o nome dela. Ana Reichert – ele repete num murmúrio e gosta de como o nome soa em sua boca.

Levanta-se nervoso, a cadeira girando silenciosamente no cômodo que ele usa como escritório, e vai até a janela. Lá fora, um homem e um garoto pequeno passam em suas respectivas bicicletas, o garoto usando um capacete azul. No prédio em frente, na sacada do apartamento mais baixo, um casal de meia idade divide uma cuia de chimarrão, a garrafa térmica no chão entre eles. No apartamento acima, a mesma placa de “ALUGA-SE” colocada há alguns meses. No mais, apenas a brisa modorrenta do início da tarde de domingo.

Marcos pragueja consigo mesmo e coça a cabeça com raiva.

Que seja.

De volta ao computador, clica sobre o perfil de Ana e ele se abre. Um observador silencioso, Marcos invade aquele mundo virtual em que cada postagem, cada comentário e cada foto possuem um valor inestimável. E após mais de uma hora rolando o feed da página e absorvendo cuidadosamente cada informação ali exposta, suas habilidades de raciocínio e de planejamento acabam constatando algumas coisas interessantes a respeito daquela mulher.

Primeiro, que Ana é uma pessoa das artes. 26 anos, formada em Produção e Mídia Audiovisual com especialização em Design Gráfico, as publicações a respeito de filmes, livros e assuntos vinculados ao universo artístico não são poucas. Crime e Castigo parece ser seu livro preferido, embora tenha detestado o filme Match Point, uma espécie de releitura da obra. Dentre os filmes que ela mais gosta – Onde os fracos não têm vez, Stalker, Brilho eterno de uma mente sem lembranças e Histórias cruzadas—, Marcos percebe uma combinação curiosa, uma mistura de violência, filosofia, romance e crítica social. Há também links compartilhados sobre temas teóricos da arte, como uma matéria sobre O grito, de Munch, um estudo da obra de Scorsese e posts acerca de estética em Design.

Segundo, que ela não é e nunca foi uma garota popular. Os rostos que aparecem nas fotos são, quase sempre, os mesmos: as duas irmãs mais novas, os pais, um ou dois amigos e ela mesma. A exceção é uma foto em que Ana está ao lado de uma professora, uma espécie de orientadora, no dia da formatura da graduação. Nenhum namorado – informação importante. Ana e as irmãs são bastante parecidas, Marcos observa, olhando para uma foto em que as três estão juntas em um restaurante japonês. Nas fotos em que ela está sozinha, nunca sorri. Eventualmente, há aquela tímida curva de sorriso, uma luz muito discreta que se acende no rosto, que Marcos conheceu na noite anterior.

Terceiro, que Ana tem um gato amarelo chamado Boris. A gama de fotos do gato é excepcionalmente variada. Boris dormindo no sofá, de barriga para cima. Boris pegando sol nas janelas. Boris sobre as pernas de Ana enquanto ela lê. Boris depois de ter caçado um gafanhoto, que mantém debaixo de uma pata enquanto olha para a câmera. Boris escondido nas cobertas da cama, apenas o rabo para o lado de fora. Boris no alto da geladeira. Boris de olhos entreabertos recebendo um carinho entre as orelhas. Boris comendo. Marcos pega-se sorrindo enquanto assiste, pela quinta vez, a um vídeo gravado pelo celular em que Boris mia ao pé da mesa toda vez que Ana lhe pergunta se ele quer peixe. Ela está comendo um filé grelhado e acaba dando um pedaço ao gato.

Escutar a voz dela o aquece e o faz sentir-se bem.

E, por fim, que ela não é do tipo que gosta de sair por aí. Exceto duas viagens registradas ali, uma para o Museu de Arte de São Paulo e outra para o Festival de Cinema de Gramado, nada indica que Ana seja alguém que frequente festas e que goste de explorar o mundo. Na maioria, suas fotos parecem acontecer dentro de casa – provavelmente, ela mora sozinha – ou em ambiente familiar. Marcos lembra-se de seu feitio reservado no evento da empresa e pensa que as peças se encaixam.

Ele reclina-se melhor na cadeira e encara o teto. Solta a respiração pesada e se pergunta, entre a dúvida e a ansiedade, se aquela é mesmo Ana. Ana Reichert. Ele sabe que as redes sociais, ao mesmo tempo em que muito mascaram, muito expõem. Em que medida a mulher que ele conheceu na noite passada está ali, naquele perfil? Marcos fecha os olhos e recorda-se da sombra de perturbação passando pelo rosto dela quando disse detestar mentiras. E imagina que parte de sua história ela está escondendo.

De qualquer modo, Marcos quer estar com ela outra vez.

Mas não vai enviar-lhe um convite de amizade no Facebook, delatando de maneira ridícula todo o seu interesse. Não quer que ela pense que ele está correndo atrás – embora esteja. Seu modus operandi costuma ser mais meticuloso. Então ele compreende que, novamente, precisa ter paciência.

***

Ainda não é muito tarde quando Marcos desvia os olhos das páginas do livro – A elite do atraso, de Jessé Souza – porque já não está prestando atenção aos problemas políticos e sociais do brasileiro e deixa os pensamentos percorrerem seu próprio caminho. Recostado à cabeceira da cama e parcialmente iluminado pelo abajur ao lado, o livro ainda aberto sobre o colo, ele se pergunta que tipo de cara é.

A primeira resposta que lhe vem à mente é “um cara comum”. Marcos Diehl. 24 anos. Formado em Logística. Trabalha no Grupo Kreis desde que foi contratado como jovem aprendiz, aos dezessete anos, tendo passado por outros dois cargos dentro da empresa até chegar onde está agora. Tem um irmão mais velho com quem não se dá muito bem por considerá-lo um tanto reacionário e uma mãe que liga uma vez por semana. O pai faleceu há cinco anos – infarto fulminante enquanto assistia ao jogo do Grêmio na sala de casa. Mantém contato com poucos amigos dos tempos de escola, apesar de não ser muito próximo de nenhum deles. Nunca se envolveu em muito problema e paga as contas em dia. Casualmente, fuma um cigarro ou outro. Reconhece ser orgulhoso e talvez fechado demais – não se lembra da última vez em que se permitiu desabafar com outra pessoa –, mas pensa que cada um tem seus defeitos.

Vive naquela cidade de fascistas e racistas enrustidos – um mal característico das cidades do Sul do Brasil, infelizmente – desde que nasceu. Contudo, é um bom lugar para se morar. Custo de vida razoável. Economia em crescimento. Serviços públicos funcionais. Universidade e hospital locais. Áreas verdes. Poluição relativamente controlada. Marcos faz parte daquele lugar e cumpre seu papel – trabalha, paga os impostos e vive de acordo com as regras comuns – como um cidadão qualquer.

Nada especial.

Mas sente que algo extraordinário, estranhamente irregular, começa a se insinuar na sua existência de “cara comum”. Algo de que a vida ordinária de todos os dias não dá conta e que as experiências que pensa ter construído até então não conseguem compreender. Marcos tem a sensação incômoda de que qualquer coisa lhe escapa, como uma coceira de leve na garganta que não passa, não importa quantos copos de água ele beba. É possível que o encontro com Ana tenha mudado nessa escala sua concepção de mundo? Afinal, quem ele é, além de um número no registro geral de identificação civil?

Ao desligar a luz do abajur e afundar no travesseiro, Marcos pensa que talvez esteja apenas divagando sobre bobagens aleatórias e desliza lentamente para um escuro sem sonhos.


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