Um estranho no fundo dos olhos escrita por Yokichan


Capítulo 1
Capítulo I




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As luzes do dia esmaecem num rubor tépido quando Marcos, diante do espelho, aperta o nó da gravata. Os olhos de um verde escuro que encaram a imagem refletida daquele homem alto, o cabelo cortado rente e a fisionomia de quem se entedia com frequência, possuem uma austeridade estranha aos vinte e quatro anos, e que por isso mesmo se confunde com a juventude do rosto. Parece haver algo fora do lugar ali, algo ainda não assentado, como uma pintura que espera pela última pincelada do artista.

Ele confere o relógio de pulso enquanto abotoa a manga da camisa e deixa os ombros caírem num suspiro de quem deseja estar em outra pele – na pele de alguém que, por exemplo, não precise desperdiçar a noite de sábado em um evento da empresa. 18h26min. Marcos pensa em todos os prováveis aborrecimentos da noite: as conversas medíocres dos colegas de setor à mesa e as piadas sem graça de Schäfer, o discurso interminável do diretor sobre cooperação e produtividade, a apresentação de slides mais chata do mundo, e, por fim, música ruim e a falsidade corporativa de sempre. Ele pragueja num murmúrio. Não que ele não goste do que faz – desempenha um bom trabalho no setor de logística e ganha bem por isso – mas definitivamente detesta aqueles eventos.

Quando os ponteiros marcam 18h30min, Marcos checa se o celular e a carteira estão nos bolsos, apanha as chaves do carro e deixa o apartamento.

***

Marcos não sabe se é simples azar ou um sinal de que a noite será mesmo um martírio, mas a primeira pessoa que encontra após estacionar em frente ao Centro de Eventos e sair do carro é Schäfer. O sujeito é o coordenador do setor de logística, portanto, seu superior, o que parece lhe dar o poder de tratar os que estão sob sua responsabilidade com ares de uma intimidade inconveniente. Avançado na casa dos cinquenta anos e vestindo um terno que parece pequeno para sua figura corpulenta, o homem cumprimenta-o daquele seu modo bonachão. Estala um tapa nas costas de Marcos.

— Ei, garoto! Não te vi no almoço hoje.

O garoto, como detesta ser chamado, força um meio sorriso e pensa em dizer que a comida do refeitório da empresa anda tão ruim que ele tem preferido almoçar fora, mas simplesmente não sente nenhuma vontade de entabular uma conversa com Schäfer, especialmente depois do tapa nas costas, e apenas desconversa enquanto finge se ocupar em trancar o carro.

— Precisei resolver umas coisas na rua e comi fora.

— Que coisas alguém da tua idade pode ter pra resolver?! – uma risada que se ouve do outro lado do estacionamento. – Ah, aproveita, guri... depois vêm a mulher, os filhos e as dores de cabeça.

Schäfer ainda está rindo como se tivesse contado uma das suas piadas quando a secretária do setor de vendas passa por eles, acompanhada do marido, e pergunta ao homem como vai a esposa, de quem é amiga. Marcos os cumprimenta com um aceno e agarra a oportunidade de se livrar do superior enquanto este conta qualquer coisa sobre a mulher ter ficado para assistir a uma apresentação das crianças na escola. Que imbecil. Na medida em que se afasta dos três em direção à entrada do prédio, percebe que esteve rígido de raiva feito um poste e relaxa a musculatura contraída.

Ainda é cedo e a paciência é algo que Marcos aprendeu a cultivar ao longo do tempo.

***

Sentado à mesa com os demais colegas de setor, ele bate de leve com a unha na taça de espumante – o logo do Grupo Kreis, Transporte e Logística, fora gravado em dourado no vidro – e observa as bolhas subindo e desaparecendo. O diretor havia cumprido seu papel, entediando a todos com sua oratória, e eles tinham acabado de jantar. Ao seu lado, o jovem aprendiz recém contratado parece distraído bisbilhotando o perfil de uma garota no Instagram. Jair, cujo rosto, aos trinta anos, ainda traz as marcas da acne da adolescência, acaba de retornar do banheiro. Carla e Suzana, as duas mulheres da equipe, conversam sobre o caso problemático de um cliente e Schäfer, entre os acenos na direção do garçom, intromete-se no assunto delas.

Desinteressado de tudo aquilo, Marcos pensa que precisa buscar o laptop na assistência técnica na manhã seguinte – um problema com o disco rígido que, aparentemente, tinha sido resolvido – e assente com um sorriso discreto quando percebe que a conversa transita na sua direção. Ergue a manga da camisa e espia o relógio, na esperança de poder dar o fora dali, mas são recém 21hs.

Ele bebe um gole do espumante e considera que as coisas não estão tão ruins. Até que Schäfer resolve divertir a todos com suas piadas.

— Jair, advinha essa: quando é que um preto é gente? – e como o outro responde apenas com uma risada constrangida, Schäfer soluciona a charada. – Quando está no banheiro, batem na porta e ele responde: tem gente!

Então estoura numa gargalhada que faz Marcos sentir vontade de acertar-lhe um murro no meio do rosto. Racista de merda. Marcos pensa que qualquer preto é muito mais gente do que aquele velho cretino. Antes que sua raiva resulte em uma ordem de demissão, ele levanta-se com o pretexto de buscar uma bebida e afasta-se dali. Com alguma satisfação – mas uma satisfação exasperada –, ainda percebe que Carla balança a cabeça e resmunga qualquer coisa sobre aquilo ter sido de mau gosto. Ao menos nem todas as pessoas daquela cidade de alemães são seres humanos detestáveis.

De repente, sente vontade de fumar e sobe para o terraço. O ar fresco de setembro é o fôlego que lhe faltava para suportar aquela noite até o fim. Junto ao parapeito envidraçado, dobra as mangas da camisa – o paletó do terno ficara sobre o encosto da cadeira – e afrouxa o nó da gravata. Então suspira, cansado daquele lugar, daquele evento, daquela gente. A primeira tragada no cigarro parece aliviar a tensão dos ombros. Está arruinando os próprios pulmões – “pregando mais um prego no caixão”, como diz sua mãe –, mas realmente não se importa muito.

— Marcos.

O jovem aprendiz se aproxima com duas cervejas e ele aceita uma delas. Estende o maço de cigarros para o garoto, que recusa com um sorriso. Tão jovem. As sardas no rosto fazem parecer que ainda não tem dezoito anos.

— Espero que já tenha idade pra beber. – Marcos brinca.

— Ah, não enche. – ele ri. – Faço dezenove em dezembro.

— Sei.

— Ei, aquele Schäfer é um babaca. Se não fosse nosso superior, metia a porrada nele.

Marcos sorri antes de dar outro gole na cerveja. Gosta daquele garoto.

— Achei que estivesse distraído demais no Instagram pra ter prestado atenção. – ironiza.

— Nada. Areia demais pro meu caminhão. – ele tira o celular do bolso e abre o perfil da garota para que Marcos veja. – Saca só que gata. Ela é digital influencer.

— E?

— E garotas assim não ligam pra manés como eu. – ele dá de ombros e guarda o celular. – Mas sabe de uma coisa? Aquelas ali podem ligar.

Marcos segue a linha de visão do jovem aprendiz e vê que ele se refere a um grupo que conversa na outra ponta do terraço. Ele reconhece um cara do setor de comunicação. Há mais duas mulheres que ele não sabe quem são. Uma parece ter saído ontem da escola, ri alto de algo que o homem acabou de dizer e o rosto corado indica que já bebeu além da conta. A outra, um pouco mais velha, como em contraste, escuta e ocasionalmente deixa escapar um sorriso. Seus cabelos castanhos estão soltos e caem em ondas sobre os ombros. Marcos tem a impressão de que ela se sente desconfortável ali.

— Vamos ali. Eu conheço a Jana. – diz o jovem aprendiz, já tomando a frente.

— Jana?

— Ela mora no meu bairro.

Marcos apaga o cigarro entre o concreto do chão e a sola do sapato e segue o garoto. No caminho, abandona a cerveja já não tão gelada sobre um banco – e repara que o lugar necessita de lixeiras. Espia rapidamente para o relógio de pulso e pensa que talvez já possa ir embora sem parecer grosseiro, que talvez não esteja a fim de mais conversa fiada, mas então o jovem aprendiz já está cumprimentando a garota com jeito de escolar, Jana, e Marcos resigna-se a acompanhá-lo.

— Dani!

Jana sorri ao ver o garoto e abraça-o para beijá-lo na bochecha. Sua alegria é tanta, e provavelmente embalada pelo álcool, que eles chegam a cambalear. Nesse momento, Marcos e a até então desconhecida estão no meio de um aperto de mão – ele pensa, tarde demais, que aquilo é tão antiquado, e que os anos dentro de uma empresa o acostumaram mal para o trato com as mulheres – e, capturados pelo atrapalhamento dos outros dois, o toque se prolonga por um instante estranhamente longo. Ao se darem conta disso, seus olhares se encontram e ela, embaraçada, recolhe a mão.

Marcos percebe nela uma firmeza vacilante e a sensação o intriga.

Contudo, ao longo do resto da noite, enquanto os cinco permanecem no terraço, ela evita olhá-lo e não lhe dirige a palavra uma única vez. Quando ela se ausenta para acompanhar Jana até a frente do prédio e enviá-la em um taxi para casa, Marcos fica sabendo por Pedro, o cara do setor de comunicação, que as duas fazem parte de sua equipe. Fica sabendo também o nome dela, Ana, e que foi admitida recentemente na empresa. Mas finge ignorar o meio sorriso de sarcasmo de Pedro – e censura a si mesmo por estar demonstrando interesse demais.

***

Já é tarde quando Marcos passa pelas portas duplas da entrada do Centro de Eventos em direção ao estacionamento onde deixou o carro. A maioria das pessoas já foi embora e agora só restam aqueles bêbados demais para serem arrastados de suas mesas. Ele resmunga consigo mesmo, é um tolo por ter ficado mais tempo do que pretendia e do que julgava suportar, e mais tolo ainda por tê-la esperado de volta no terraço, pois ela não apareceu.

Ana.

Ele se sente como alguém que sorri ao avistar o garçom se aproximando com o prato, após horas de espera no restaurante, até perceber que o pedido não é o seu, mas o do sujeito da mesa ao lado. Decepcionado de um modo patético, tudo que lhe resta é ir para casa.

Mas então lhe parece que há algo despontando em seu ângulo de visão mais à direita, quase escapando-lhe, e nesse momento fortuito ele a vê ali. De pé com as mãos às costas, a claridade amarela da lâmpada de entrada emprestando-lhe ao cabelo um tom dourado, e um sorriso tímido, mas encantador, abrindo-se para ele, Ana aguarda no silêncio da noite. Como ele se demora até despertar da imobilidade do encontro, ela desvia os olhos para a rua à frente.

Marcos pigarreia baixinho e enfia as mãos nos bolsos da calça ao perceber que elas suam.

— Achei que já tinha ido embora. – ele deixa escapar e imediatamente amaldiçoa-se por revelar que esteve pensando qualquer coisa sobre ela.

— Era a ideia. – ela sorri e mostra o celular, de longe. – Mas meu Uber está demorando.

— Tu também?

Ele não sabe por que inventou aquilo, mas tira o celular do bolso e finge conferir um aplicativo. Seu carro está estacionado a alguns metros dali, Marcos não consegue evitar uma ponta de vergonha a respeito disso, mas quer ficar um pouco mais ao lado dela e não pensa duas vezes antes de revestir-se com a mentira.

Deixa os ombros caírem numa encenação de descontentamento e balança a cabeça numa negativa enquanto fita a tela do celular.

— Atrasado também. Está terminando outra corrida.

— Vamos apostar qual chega antes. – ela sugere num tom de ironia.

— O que tu quer apostar?

Ana comprime os lábios em uma expressão pensativa, então abre a bolsa e começa a procurar por algo. O tilintar de chaves e o ruído de coisas sendo reviradas ali dentro preenche o breve silêncio que cai sobre eles. Com um sussurro de assentimento, ela enfim volta a pendurar a bolsa sobre um ombro e mostra-lhe um pacotinho de Mentos já pela metade, um tanto amassado, sabor de frutas.

Ela tem um sorriso satisfeito no rosto e Marcos acha graça daquilo.

— Teu prêmio é um Mentos?

— Sim. – o sorriso murcha um pouco. – Por quê? Tu não gosta?

— Não, não é isso... – ele ri. – Espera um pouco.

Então começa a vasculhar os bolsos do terno. Cigarros – não, não seria ridículo a esse ponto. Isqueiro. Celular. Chaves do carro. Chaves do apartamento. Um clipe de metal – por que isso está ali? Carteira. Numa última esperança, ele pega a carteira de couro preto e espia para o que há nos compartimentos – dinheiro, cartões de crédito, cartões de visita, porcarias acumuladas com o tempo – até encontrar um ticket de desconto do Subway. Marcos confere que ainda está válido e decide que é um prêmio adequado.

— Pronto. – estende o ticket para a luz para que Ana possa ver. – Aposto isso.

— Uhn... – ela ergue as sobrancelhas numa atitude de admiração. – Bastante útil.

— E então? Simplesmente esperamos?

— Esperamos.

Ela sorri um sorriso quase imperceptível, os lábios finos movendo-se numa curva discreta, e volta a encarar a rua que passa em frente ao Centro de Eventos da empresa, os braços cruzados sobre o peito. Move o salto de uma das botas de cano curto como se estivesse brincando de esmagar um inseto, distraída.

Marcos recosta-se a uma das pilastras da entrada do prédio e olha na mesma direção que ela. A noite começa a esfriar e ele de repente se pergunta se deve emprestar-lhe o casaco do terno – Ana usa um vestido preto, básico e simples, e tem os braços e as pernas descobertas –, mas sente que fazê-lo seria clichê demais, praticamente arcaico naqueles dias, e simplesmente mantém-se onde está.

— Mas então... – ele começa. – O que achou do evento?

— Tinha gente demais. – ela diz após um suspiro e sorri pouco à vontade. – Como estou na empresa há pouco tempo, não conheço praticamente ninguém. Então é um pouco chato. – e depois de uma pausa: – Ainda me sinto meio deslocada.

— Mas tu e a Jana parecem se dar bem.

— Ah, eu me divirto muito com ela no trabalho. – então parece se dar conta de algo e morde o canto de um lábio. – O que vou dizer quando ela me perguntar o que aprontou hoje à noite? Se ela tivesse me ouvido e bebido menos...

— Diz que tu também não lembra de nada. – ele dá de ombros. – Problema resolvido.

Marcos percebe que fez algo errado quando todo o bom humor parece ter sumido do rosto dela. As linhas do sorriso desaparecem e então só há tensão ali, um silêncio desconfortável enquanto Ana olha para o nada, como que recordando um gosto amargo na boca. Marcos pensa que talvez a esteja importunando, afinal não passa de outro desconhecido com uma conversa sem sentido, perturbando uma garota sozinha àquela hora da noite, e está quase pedindo desculpas por qualquer coisa, quando ela enfim o encara.

Há uma espécie velada de mágoa naqueles olhos.

— Eu não minto. Nunca. E detesto esse tipo de coisa.

— Ok. – silêncio. – Eu não quis ofender nem nada do tipo.

— Tudo bem.

Marcos engole em seco e imagina se foi possível escutar aquele som. Não consegue entender como aquilo aconteceu, como o momento divertido que estavam tendo ali se transformou, num piscar de olhos, em uma situação angustiante. Eu detesto esse tipo de coisa. A dureza da voz dela pega-o de surpresa e deixa-o atordoado, e então dominado por um sentimento de culpa, pois se lembra de que está mentindo sobre ter chamado um Uber. Mas ele rapidamente enxota o pensamento para um canto escuro da consciência – aquilo não tem importância, é uma mentira inofensiva com um bom propósito – e pensa que talvez Ana esteja sendo um tanto puritana.

Está pronto para quebrar o gelo do silêncio ao perguntar se ela gostaria que ele chamasse um táxi, porque o motorista que ela solicitou está demorando além da conta e, obviamente, ela já não se sente bem ali, quando um sedan preto dobra a esquina e avança na direção deles.

— Meu Uber. – ela confere no aplicativo.

— Parece que temos um ganhador da aposta.

— É. – ela o olha com certa hesitação. – Tu quer dividir a corrida?

— Não precisa. – ele sorri. – Obrigado. Vou esperar mais um pouco.

— Certo.

O carro estaciona diante deles, o motor ainda ligado, e escuta-se o clique da porta do passageiro sendo destrancada. Ana despede-se com um sorriso acanhado e entra no carro, mas, antes que feche a porta, Marcos se dá conta de que não pagou a aposta e corre até ela com um “espera” meio gritado, meio ofegado. A princípio, ela o olha sem entender, mas então seu rosto se ilumina quando Marcos oferece-lhe o ticket.

— Obrigada.

— Garota de sorte. – ele sorri e então se afasta. – Boa noite.

Marcos fecha a porta do carro e o Uber começa a se afastar. Ele ainda permanece ali por algum tempo, observando os faróis diminuírem na noite até desaparecerem por completo. Ana. Que mulher estranha.


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