Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda de Seiya escrita por Masei


Capítulo 82
Tempo de Nudez


Notas iniciais do capítulo

Atravessando o Pacífico Sul, a tripulação ouve o estranho canto dos mares que os torna todos enlouquecidos, com a exceção de uma única pessoa. Uma criança que fará tudo para trazer seus amigos de volta à sanidade.



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O Galeão de Atena, após selar a terceira Relíquia do Mar, agora rumava para o Pacífico Sul e o Capitão Meko Kaire já andava um pouco ansioso por voltar para casa. Aquela havia sido uma surpresa imensa quando da sua primeira reunião com Nicol, algumas semanas atrás, junto de sua imediata, quando viu listado entre as Sete Civilizações a ilha em que ele próprio havia nascido.

— Isso não pode estar certo. — protestou ele ao ver a lista dos sete lugares que teriam de visitar.

— Algum problema, Capitão Kaire? — perguntou Nicol, procurando qualquer fora do lugar na sua lista tão cuidadosamente feita.

— Esta ilha na Polinésia fica no arquipélago em que eu nasci e cresci. — falou Kaire. — Se ali houvesse qualquer Relíquia de Poseidon, eu saberia.

— As anotações do Cavaleiro de Gêmeos são bastante precisas.

— Eu conheço cada palmo e grão de areia dessas ilhas. — ponderou Kaire.

"Há mais coisas entre o céu e a terra, Capitão, do que sonha a nossa vã filosofia".

Tanto Nicol como Kaire olharam para Geist, ainda muito séria.

— Talvez existam segredos que nem mesmo você imagina.

Kaire olhou para aquela lista um pouco confuso, e semanas depois olhava novamente, mas agora com uma certa nostalgia e leveza no peito. Era um pouco antes de ele se deitar, quando a lista iluminada por um lampião deixou seus pensamentos, pois ele ouviu muito distante um canto melodioso e bonito.

Durante aquela troca de turnos, o Galeão atravessou por uma neblina incrível no meio do oceano, um fenômeno raríssimo que a noite se levantando praticamente escondeu dos tripulantes. Seiya havia deixado o tombadilho para o convés, rumo às galerias inferiores, quando ouviu a mesma curiosa e bonita melodia, de vibratos delicados em melismas cromáticos. Geist já estava nas galerias inferiores coordenando a troca de turno quando ela e muitos marujos pararam o que estavam fazendo para melhor prestar atenção naquele canto dos mares. Em sua enfermaria, June também achou curiosa a canção e imaginou se não era alguma das marujas fazendo as vezes de diva.

Lunara já estava deitadinha em seu pequeno colchão no chão, quando uma voz suave e sussurrante suspirou nos seus ouvidos, como fazia todas as noites para que ela pudesse dormir. A pequena contrabandeou seu tocador de música junto ao sobretudo e toda noite dormia ao som de uma batida leve, espaçada e tranquila.

Mas então ela ouvia a melodia errada.

 

—/-

 

"Diário de bordo, Capitã Lunara no comando. Bom dia, marujos. Ai, esqueci do dia. Caham. Diário de bordo, dia dezessete de viagem, Capitã Lunara no comando. Bom dia, marujos. Esse é o meu diário de bordo e eu sou a Capitã Lunara, a melhor capitã dos sete mares. Hoje eu vou desfraldar as velas e logo estaremos chegando na casa do Capitão Kaire. Quer dizer, nada disso. Eu sou a Capitã. O Capitão Kaire pode ser o co-capitão. Ou o meu imediato. Ih, mas aí a Geist num vai gostar. Melhor ele ser o co-capitão. De todo modo, meus amigos, estamos chegando na casa do co-capitão. Será que todo mundo é grandão igual ele? Descobriremos no próximo diário de bordo. Capitã Lunara se despedindo. Câmbio-desligo."

Lunara soltou o botão do gravador que tinha acoplado em seu tocador, terminando seu diário de bordo falso. Ela estava ainda deitada em um colchão pequenino em que dormia à noite para acordar às primeiras luzes da manhã; e, assim que acordava, puxava seu tocador de música. Pois naquela manhã, assim que terminou seu diário de bordo à sua tripulação imaginária, ela percebeu que havia um certo alarido pelo barco. Colocou-se de pé, espreguiçou-se e escondeu o tocador de música em uma tábua solta debaixo de seu colchão.

Saiu para a despensa, onde os tripulantes geralmente comiam um pedaço de pão muito consistente e bebiam algum tipo de extrato de fruta para passarem a manhã e, por vezes, o dia. Foi quando notou o primeiro sinal de um dia que seria muito mais longo do que o normal: o cozinheiro-chefe do galeão, que atendia ao turno do dia, estava dormindo em cima de sua mesa.

— Que preguiçoso. — falou Lunara, e então serviu-se sozinha do pão e do suco.

O alarido pelo barco, feito um certo vozerio animado, ainda podia ser ouvido pelas paredes de madeira do Galeão. Além dos cinco principais oficiais, o Galeão tinha ainda uma tripulação de nove ou dez bravos marujos e marujas que ajudavam na operação, principalmente para que pudesse haver aquela troca de turnos.

A pequena finalmente subiu as escadas das galerias inferiores e saiu no convés para uma algazarra completa; a primeira coisa que viu, e que era impensável, foi que o leme do navio estava completamente desocupado e girando de lá pra cá, atendendo unicamente aos humores do mar. 

Ela olhou para todos os lados e viu um grande grupo dançando a ciranda de forma muito animada entre si perto do castelo da proa. Correu até eles e viu que, no meio deles, June era a mais animada batendo palmas, cantando, puxando rimas e jogando marujos para o centro da roda para dançarem. Lunara nunca havia visto a Cavaleira de Camaleão tão solta e ficou dividida entre a animação que lhe invadiu e o choque daquilo estar acontecendo. Mas então seus pequenos olhos notaram Seiya abraçado na quilha da proa com um dos braços e deixando o outro balançar com o vento que lhe soprava os cabelos do rosto.

— Seiya! Ei, Seiya, o que você tá fazendo? — gritou a pequena, subindo no castelo de proa.

Mas o garoto parecia inebriado de uma enorme felicidade, cantando rimas divertidas para o oceano em alto e bom som, a voz de peito cheia e altíssima. Ele não parecia lhe dar ouvidos, perdido naquela loucura dos mares.

— Ai, Seiya, que música chata. O que tá acontecendo com todo mundo? — perguntava ela.

— Lunara… — começou ele em ré maior.

— O que aconteceu? — perguntou ela.

— Pequenininha, minha cara. — rimou ele, e ela percebeu que ele improvisava versos terríveis.

— Ah não, Seiya.

Ela abandonou o castelo de proa e foi na cabine da única pessoa que não se deixaria levar por toda aquela bobagem: o Capitão Kaire. Ela atravessou o convés de danças e tristezas, subiu o tombadilho e bateu na cabine do Capitão gritando por ele, para sair, para ajudar, que todos haviam ficado loucos.

— Me deixem em paz! — gritou Kaire lá de dentro.

— Mas Capitão, o seu navio está maluco! — falou ela.

— Meu navio! — repetiu o Capitão, e assim, feito um lunático, ficou gritando sem nunca sair de sua cabine.

Lunara estava um pouco perdida, pois parecia que a loucura havia atacado também seu Capitão. Ela então desceu do castelo de proa e percebeu, grudada à amurada do navio, muito séria e contemplativa, a imediata Geist. Correu até ela, pois certamente ela era a única que poderia estar sã em uma noite de arromba como aquela que aparentemente havia atacado o navio.

— Geist, todo mundo ficou louco! — começou ela.

Geist tinha os olhos focados na linha do horizonte que dividia o oceano e o céu; seus olhos, sempre tão duros, estavam emoldurados de uma sobrancelha arqueada e triste; ela tinha uma das mãos repousada na madeira da amurada, como se para manter seu equilíbrio.

— Geist, me responde! — pediu Lunara.

Mas Geist parecia incapaz de responder e simplesmente deixou-a falando sozinha, caminhando trôpega, os ombros recolhidos, para a escada que levava às galerias inferiores. No caminho, flagrou um casal apaixonado e cheio de risadinhas próximo à despensa, uma cena que antes a aviltaria sobremaneira pelo comportamento inadequado no navio, mas que ela sequer deu conta, e atravessou para sua cabine pequena, mas privada.

Fechou a porta atrás de si e imediatamente deixou escapar as lágrimas que com tanta força guardava no peito. Ela apertou uma coluna ao seu lado com uma mão e levou a outra aos olhos, como se para forçar as lágrimas voltarem para dentro de seu corpo. 

— Mantenha sob controle. — falou ela para si própria.

Respirou fundo, com coragem, e pisou forte dentro da cabine até sua cama, como se tentasse se recompor, mas se os primeiros dois passos foram decididos, no terceiro ela titubeou, pois uma enorme dor aflorou em seu peito, fazendo com que ela tombasse na cama chorando.

— Sob controle. — balbuciou ela, completamente fora de controle.

E então socou a cama e levantou-se furiosa.

— Eu sou a imediata desse navio. Preciso focar em meu trabalho.

E sobreveio o sentimento novamente no peito, como uma avalanche. Ela apertou os punhos tentando conter, mas era impossível; as frases podiam sempre começar duríssimas, mas terminavam embargadas e em prantos.

 

—/-

 

"Diário de bordo, suplemento. Meus amigos do céu, está todo mundo louco nesse navio! Eu não sei o que aconteceu, mas eu acordei hoje de manhã e o Seiya estava cantando músicas horríveis abraçado no mastro, a June tá dançando ciranda com os marujos que deveriam estar cuidando da comida, a Geist está chorando e o Capitão não quer sair de sua cabine gritando loucuras lá de dentro. Eu acho que o pior realmente aconteceu: você está ouvindo a voz da Capitã Lunara do Galeão de Atena."

A pequenina puxou seu mini-elevador no mastro principal e nele subiu velozmente para ter alguma paz no cesto da gávea, bem como tentar adivinhar com seu atlas e carta náutica onde diabos estavam e quantas léguas haviam desviado do curso. Quando chegou no topo do mastro, viu que seu cesto da gávea estava tomado por uma divertida maruja absolutamente maravilhada olhando para dentro do binóculo de ouro, como se olhasse para um caleidoscópio.

— Ai, minha Ateninha, desce logo, moça. — falou Lunara, ajudando a mulher a sentar confortavelmente no pequeno elevador e soltando o banquinho, que desceu rápido para o convés; a maruja ainda lhe deu um tchauzinho divertido antes de desaparecer.

Não havia estrelas no céu àquela hora do dia e tudo que Lunara tinha para se orientar era a direção do vento e a leve correnteza do oceano para adivinhar, nem que fosse por alto, aonde estavam. Mas quando colocou os olhos na luneta dourada, ela viu no horizonte formações rochosas branquíssimas em alto-mar: blocos de gelo pontiagudos que, bem sabia ela, eram ainda maiores por debaixo. E é óbvio que o Galeão navegava diretamente naquela direção, ainda que lentamente. Mas mesmo lentamente, era muito perigoso.

— Droga, a gente vai bater! E eu nem alcanço o leme direito pra manobrar esse barco.

Não era só isso: a proximidade daqueles blocos enormes de gelo sugeria que o curso desviou-se tanto que era possível que eles tivessem voltado para o Oceano Índico, para onde os blocos de gelo da Antártida mais frequentemente rumavam; seria preciso uma grande correção de curso se quisessem chegar ao Pacífico Sul, o próximo destino do Galeão. Mas então era como se ninguém realmente se importasse com isso pois, do alto do cesto da gávea, as gargalhadas e cantoria da roda de música de June e seus dançarinos chegavam claramente até a pequena Lunara.

E o navio lentamente se aproximando dos blocos de gelo.

Ela finalmente teve uma ideia.

Desceu voando com suas correntes pelas velas e foi direto ao escovém da âncora: iria ancorar o navio naquela parte do mar e dar um jeito de despertar os tripulantes para que pudessem fazer algo. Nem pensou duas vezes e lançou a âncora ao mar e esperou que o barco parasse; a corrente corria, corria, corria nas profundidades do oceano, e Lunara observava aquelas grossas correntes descendo com força, torcendo para que parassem de uma vez e o barco pudesse frear.

E então a corrente parou de correr com força; a pesada âncora havia encontrado o chão do oceano e agora era questão de tempo até que se atracasse em algum lugar e o barco pudesse parar. Ela partiu dali para o castelo de proa, tirou Seiya da corda da bujarrona, onde ele fazia apresentações musicais, e olhou esperançosa para os blocos de gelo que lentamente ainda se aproximavam; o barco claramente freando aos poucos até que parou por completo.

— Ótimo, primeiro passo do plano está feito! — disse ela para si mesma.

Quando aquela fuzarca toda passasse no navio e as estrelas aparecessem no céu, eles poderiam fazer um ajuste mais fino e zarpar para o Pacífico Sul. Agora precisava dar um jeito de acordar o Capitão, que havia se trancado em sua cabine.

Voltando da bujarrona até o mastro central, Lunara foi surpreendida por June, que a tomou pelas mãos e a jogou no meio da ciranda onde todos cantavam para ela dançar.

— Dança, Lunara. Dan-dança, Lunara!

Em coro, sob risadas e divertimentos. Lunara protestou e engatinhou para fora dali, passando por debaixo das pernas de um marujo desatento, que morreu de rir com aquilo. Levantou-se, foi ao tombadilho tentar novamente acordar o Capitão Kaire nem que fosse à base do tapa, quando viu Seiya reaparecer cantando.

— O capitão mandou, o marujo: sim, senhor!

E repetia e repetia os versos tontos com os braços soltos ao lado do corpo; Lunara empurrava ele para longe do leme, para onde ele teimava em voltar para comandar a 'aeronave', como ele chamava, quando a porta da cabine do Capitão irrompeu num estouro, revelando a figura sorumbática e lunática de Meko Kaire.

— Quem aqui está querendo roubar meu sobretudo de Capitão? Ninguém tomará meu navio! Eu sou o único Capitão! Não haverá motim algum!

Lunara deixou Seiya de lado para tentar chamar a atenção do Capitão Kaire, que não dava nada por ela.

— Capitão, Capitão! Capitão Kaire! Me escute, está todo mundo maluco! Capitão, eu preciso da sua ajuda!

Mas do jeito que saiu o Capitão, ele entrou de volta, trancando-se novamente na cabine, urrando diversos impropérios paranóicos. Lunara esgoelou-se do lado de fora até que caiu ajoelhada e cansada de bater na porta que negava-se a abrir. Era terrível ser a única dona de sua sanidade, pois ela era uma garotinha; novamente precisou colar em Seiya, que teimava em dirigir o navio como se fosse um caminhão dançante diante do leme.

— Sai daí, Seiya. — reclamou ela.

— Eu sou o Capitão!

— Não é! — gritou Kaire da sua cabine, sua voz abafada pela porta trancada.

— Ai, Seiya, você tá bem louco.

— Lunara!

— Eu mesma. — respondeu ela, tentando tirar ele dali. — Você podia ficar bom, porque eu realmente precisava de alguém nesse leme. Mas não dançando assim, mas que coisa, Seiya.

— Canta comigo, Lunazinha!

— Eu nem gosto de música. — mentiu ela.

— Lunara, posso te pedir uma coisa? — falou ele, todo abobalhado a abraçando.

— O que é, Seiya?

— Quer ser minha irmãzinha?

— Ai, Seiya. — ela super queria, mas que momento inoportuno.

— Eu até te perdôo de ter me envenenado.

— Você tá falando um monte de bobagem! — falou Lunara.

— Bobagem coisa nenhuma, que a Shiryu me contou que foi você que me envenenou um monte. A Morte do Terror da Morte Negra.

Lunara ficou boquiaberta ao ver que, mesmo diante daquela loucura inebriada, Seiya havia lhe dado, na verdade, uma grande ideia.

Ela ia envenenar todo mundo.

 

—/-

 

"Diário de bordo, suplemento. Esse é o dia mais louco de todos. A Capitã Lunara decidiu que vai envenenar toda a tripulação do Galeão de Atena! Eles vão me matar, mas se der errado eles vão morrer. Mas num vai dar errado. Eu lembro direitinho daquela receita e eu já fucei na enfermaria da June e encontrei algumas coisas pra minha poção mágica. Vai dar certo. Ai, Ateninha, é bom dar certo. Se esse for o último diário de bordo nessa fita, então deu errado. Deu muito errado. Yahoy!"

Feito uma cientista maluca, Lunara procurava e olhava os frascos que June mantinha muito bem guardados em suas estantes, quando encontrou alguns extratos que, se não eram exatamente os ingredientes de sua poção da Morte Negra, eram similares, graças às descrições que June anexava em cada frasco sobre as raízes, as origens e os efeitos de cada ingrediente. Lunara jogou o que precisava em um frasco e decidiu-se por satisfeita, mas então um novo problema se apareceu:

— Droga, num vai ter o suficiente. E eu ainda usei tudo que a June tinha. Ei. A June!

Brilhante como só ela, Lunara logo percebeu que não precisava envenenar todo mundo, apenas a pessoa mais capaz de tirá-los daquele estado enlouquecido: a própria oficial-médica.

— Se der errado, ela morre. Se der certo, ela me mata. — falou Lunara, subindo as escadas com uma seta envenenada nas mãos e o antídoto na outra.

June dançava ainda a ciranda no convés e, assim que viu Lunara, correu na sua direção e a pequena aproveitou o embalo para espetá-la na perna com a seta embebida; June ficou um segundo em silêncio olhando para sua coxa trespassada, até que olhou para o rosto extremamente sem graça de Lunara, que não poderia explicar o que havia acontecido ou os motivos daquilo. E então June desatou a dar risada e puxou a pequena para o meio da roda, onde ficou girando-a com os braços, gargalhando feito uma louca.

Até que ela titubeou e caiu dura no chão, muito zonza e passando mal, embora ainda mantivesse o sorriso sem fôlego no rosto. No leme, Seiya ainda cantava e as loucuras de Kaire em sua cabine podiam ser ouvidas mesmo dali. Os marujos rodearam o corpo de June e dançaram jogando as pernas pra lá e pra cá no ritmo, feito um cabaré.

Lunara ajoelhou-se diante de June e rasgou o tecido de sua perna, para que ver que, da ferida, uma mancha amarelada começou a se espalhar lentamente pelo corpo dela.

— Ihh, a cor tá esquisita. — comentou ela, com o antídoto na outra mão.

Era preciso deixar que o veneno se espalhasse o suficiente para que, ao usar o antídoto para remover seu efeito, não sobrasse absolutamente nada no corpo de June, nem seu veneno, nem qualquer que tenha sido aquele efeito inebriante.

Enquanto June sofria no chão, a festa comia solta pelo convés; muita cantoria e dança de uma tripulação desproporcionalmente feliz. Mas Lunara ficou ao lado de June enquanto ela era coberta por um tom de manga fortíssimo até que não houvesse uma única parte de seu corpo que não estivesse naquele tom esquisito. A pequena espetou o antídoto no mesmo lugar da ferida, torcendo para que desse certo, e segurou sua mão.

Os minutos passavam muito lentamente e, na terceira canção que Seiya cantava jogado no leme, June finalmente começou a perder a cor de manga para voltar a ter a cor de sua pele normalizada. Ela voltou a respirar normalmente e lentamente seus olhos foram se abrindo, aos poucos.

— June. — chamou Lunara, torcendo para que ela estivesse livre daquela loucura.

June foi logo rodeada pelos marujos cantantes, ao que ela reagiu com extrema confusão.

— O que aconteceu? — perguntou ela.

Lunara finalmente abraçou June no chão, agradecendo demais por ela ter voltado ao normal, mas a Cavaleira de Camaleão olhou para os braços e notou o tom de cor de sua pele com muito assombro. Lunara precisou explicar tudo tim-tim por tim-tim.

 

—/-

 

Assim que June ouviu o relato desesperado e desembestado da pequena Lunara, ela percebeu que sua cor lentamente voltava ao normal, mas encontrou cada marujo e oficial exatamente como ela havia descrito. Enlouquecidos, cada qual à sua maneira.

— O que foi que aconteceu de noite? — perguntou Lunara.

— Uma música. Uma canção belíssima em alto-mar.

— Uma música?

— Sim, mas agora não temos tempo, a noite logo vai cair, vamos à enfermaria.

— Vai criar mais desses venenos? — perguntou Lunara.

— Claro que não, mas que ideia. — respondeu June. — Eu sei exatamente o que podemos fazer para trazê-los de volta sem que a pele deles fique cor de manga.

— Ai, desculpa.

— Venha!

As duas desceram, desviando de dançarinos e poetas, e correram até a enfermaria, onde June quase enlouqueceu pela segunda vez por causa da bagunça deixada pela pequena; os frascos todos fora da estante, fora de ordem, as etiquetas manchadas e sobras de veneno na mesa. Lunara talvez não tenha levado das boas ali mesmo, pois June sabia que era melhor não perder tempo.

"Diário de bordo, suplemento. Meus amigos, que desenrolar fascinante. Não é que deu certo? A June está de volta e agora está sintetizando um antídoto para todo mundo no Galeão.

Solta esse gravador e me ajuda!

Ai, tá bom. Capitã Lunara se despedindo. Câmbio-desligo!"

Juntas, as duas sintetizaram um líquido imbuído de ervas e até mesmo do Cosmo de June, que ela disse ser capaz de cortar os efeitos alucinóginos que a tripulação parecia estar experimentando. Fez todas as doses que precisavam e, juntas, aplicaram uma a uma na tripulação.

— Onde está a imediata?

— Chorando na cabine dela.

— Chorando? — perguntou June, incrédula, e então deixou escapar um sorriso. — Eu preciso ver isso.

Juntas foram até a cabine de Geist, que ficava nas galerias inferiores, para encontrar a porta fechada, mas os soluços de dentro podiam ser ouvidos espaçados. As duas abriram e encontraram Geist ajoelhada no chão, abraçada ao monte de roupa que fazia de travesseiro, lágrimas nos olhos; quando a imediata encontrou as duas em sua porta, seus olhos pareciam suplicar.

— Ele não vai me perdoar. — dizia ela.

— Ora, mulher, recomponha-se. — falou June, aproximando-se dela com a dose.

— Eu o amo. — falou Geist, chorando.

— Supera.

E então aplicou a dose na garota, que parecia sequer ter sentido qualquer dor, pois o que doía de verdade era o aperto que sentia no peito. 

— Te esperamos no convés. — falou June, levantando-se. — Vamos, Lunara.

E partiram espetando todos os marujos e marujas do Galeão. Todos acalmavam-se dali a alguns minutos da aplicação e, bem sabia June, demoraria ainda algumas horas até que todos normalizassem, pois sua solução era muito menos agressiva que o veneno de Lunara, mas ao menos ninguém ficaria cor de manga.

June e Lunara estavam diante da cabine trancada do Capitão Kaire, Seiya parecia desmaiado ao lado do leme e o céu já anunciava a queda da noite. Imperava o silêncio pelo Galeão de Atena, mas o Capitão continuava a esbravejar suas paranoias dentro da cabine.

— Eu posso ouvir o silêncio aí de fora. Eu sei que estão tramando! Mas podem vir, que eu sou o Capitão Kaire. Podem vir que eu estou preparado!

As duas entreolharam-se.

— A gente tem que fazer ele sair dali. — falou Lunara.

— Mas se ele sair e a gente usar a dose nele, ele vai ter certeza de que está tendo um motim e que o estamos atacando. E ele é um Cavaleiro de Prata, não temos qualquer chance contra ele.

— O que fazemos? — perguntou Lunara.

June olhou para Seiya e teve uma ideia.

— Busque suas correntes, Lunara.

As duas acorrentaram o corpo desacordado de Seiya e bateram na porta de Kaire.

— Capitão! Aqui é a June, eu consegui capturar o motineiro do Seiya, ele está acorrentado! Venha ver!

Silêncio do outro lado da porta.

Passos pesados na madeira. June tinha o corpo de Seiya no colo, coberto de correntes, e a dose estava nas mãos de Lunara. Assim que a porta abriu, o corpanzil de Meko colocou-se adiante para ver o corpo de Seiya todo acorrentado; June jogou o corpo para que Meko o segurasse e, no mesmo momento, Lunara aplicou-lhe a dose no quadril. Ele reclamou de dor, mas pensou ter sido as correntes soltas do corpo de Seiya, que ele recebeu triunfante.

O Capitão Kaire começou a enumerar os crimes de Seiya, quando sua voz embargou e ele caiu desacordado como todos os outros tripulantes. June e Lunara entreolharam-se e sorriram. 

Missão cumprida.

 

—/-

 

No decorrer das horas, pouco a pouco todos foram acordando de suas loucuras. Havia muito o que limpar, o que corrigir, o navio precisava ser manobrado para o Pacífico Sul, a âncora precisava ser içada novamente e tudo isso foi feito antes mesmo que o Capitão desse qualquer ordem, pois Geist acordou antes e percebeu o caos em que estavam.

E enquanto o convés era limpo pelos marujos dançantes de antes, o Capitão convocou seus oficiais para uma reunião extraordinária e noturna em sua cabine, onde ficou sabendo pelas palavras de Lunara e então de June dos incríveis acontecimentos daquele muito longo dia.

— Eu também me lembro de ouvir aquela estranha canção. — comentou Kaire, caminhando dentro de sua cabine. — Sereias.

— Sereias ou sirenes, Capitão? — perguntou Geist.

— Boa pergunta, imediata. A verdade é que jamais saberemos. — respondeu ele. — Que bom que estava alerta, alferes Lunara. 

Ela assentiu, contente, quando o Capitão então lhe perguntou.

— Agora, o que eu não entendo é como que todos nós enlouquecemos com as canções do mar e você não foi afetada.

Lunara olhava para o Capitão um pouco constrangida antes de confessar:

— É que eu tava escutando música antes de dormir e acho que não ouvi a canção do mar.

— Escutando música? — perguntou o Capitão, muito sério.

— É. — respondeu Lunara, muito sem graça. — Eu tenho um tocador de música bem pequeno, só pra mim.

— Imediata Geist, o que dizem as regras do Galeão sobre tocadores de música em meu navio?

— Proibido, Capitão.

Ele concordou e então olhou para Lunara, muito sério. O Capitão estendeu a mão, pedindo para ela que lhe entregasse o pequeno tocador que ela tinha, junto de seus fones pequenos. Ela muito sem graça tirou de dentro de seu sobretudo e deu ao seu Capitão, diante dos olhares de todos os oficiais.

O Capitão tirou os fones do tocador e apertou para tocar a última faixa para que todos pudessem ouvir no alto-falante do aparelho.

"Diário de bordo, suplemento. Meus amigos, que desenrolar fascinante. Não é que deu certo? A June está de volta e agora está sintetizando um antídoto para todo mundo no Galeão.

Solta esse gravador e me ajuda!

Ai, tá bom. Capitã Lunara se despedindo. Câmbio-desligo!"

Enquanto escutava, a face do Capitão Kaire dividia-se entre a surpresa e a graça, enquanto Seiya ria ao lado de Lunara, que lhe cutucava para parar de rir.

— Capitã Lunara? — perguntou Kaire.

— É. Ele também dá pra gravar. — falou ela, envergonhada.

Kaire sorria com o aparelho nas mãos, mas Lunara estava um pouquinho murcha de vergonha na cadeira. O Capitão se levantou e foi até ela, apertou para gravar no aparelho e discorreu com sua voz de trovão.

"Diário de bordo, suplemento. Quem fala é o Capitão Meko Kaire do Galeão de Atena e, por meio deste registro, informo que a regulamentação para tocadores de música está revogada em meu navio, de modo que a alferes-engenheira Lunara pode escutar suas músicas antes de dormir. A não ser, é claro, que minha imediata se oponha."

O Capitão então aproximou-se de Geist com o gravador, e ela falou um pouco constrangida no microfone.

"Não me oponho.

Que fique registrado que ela não se opõe. De minha parte, eu gostaria de adicionar a esse relaxamento das regras uma recomendação direta do Capitão. A alferes-engenheira Lunara desempenhou de maneira exemplar sua função à bordo desse Galeão e, graças à sua engenhosidade, estamos todos novamente aptos para nossas funções e rumando para nosso destino correto. De modo que eu pessoalmente gostaria de promovê-la ao posto de tenente."

A boca de Lunara abriu-se imediatamente quando seus olhinhos brilharam enormemente; seu sonho de virar Capitã havia acabado de ficar mais próximo e ninguém mais a chamaria de alferes Lunara naquele navio. Ela tentou ao seu modo se conter, mas claramente parecia pular de alegria na cadeira quando o Capitão Kaire lhe devolveu o tocador-gravador.

— Muito bem, Lunara. — falou ele.

Ela sorriu junto de todos.


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Notas finais do capítulo

SOBRE O CAPÍTULO: Como não fazer um capítulo em que todo mundo fica maluco em alto-mar? Além de trazer uma importância maior para a Lunara de forma que o leitor simpatize mais com ela, já que é uma personagem nova e original. A ideia vem de episódios clássicos de Star Trek, mas que também vem de histórias famosas e clássicas de navegações, como a própria Odisseia e o canto das sereias.

PRÓXIMO CAPÍTULO: OS PRESENTES DE UM NAVEGANTE

A tripulação do Esperança de Atena finalmente chega às ilhas onde o Capitão Meko nasceu.




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