Sentença de Vida escrita por Vinefrost


Capítulo 2
Assuntos Inacabados




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Curitiba, 2024 

Alexa Ferreira 

Governo comemora um ano da Sentença de Vida 

Medida aprovada em 2023 reflete uma queda de 45% nos índices de violência e criminalidade no país   

Digito o título e a chamada da minha matéria para o jornal impresso de um veículo curitibano, mas não sei como continuar esse texto sem sentir vergonha pela pessoa que me tornei por conta de uma empresa que bajula o governo. Por isso, encaro o cursor piscando constantemente, à espera da próxima palavra. Preciso continuar e passar a impressão de que sou imparcial, mesmo que a imparcialidade seja um conto de fadas no jornalismo. 

Na prática, quando você está tentando ser imparcial, na verdade está demonstrando de qual lado prefere estar. A falta de posicionamento apenas revela que você concorda com aquilo que está publicando. 

Quando se é jornalista, principalmente freelancer, é necessário aceitar o que lhe mandam produzir, além das suas próprias pautas. É o seu trabalho e você precisa ganhar dinheiro, mesmo que a matéria seja sobre a lei que condenou injustamente o seu irmão. Respiro profundamente e continuo digitando, as teclas fazem mais barulho do que o normal ao serem pressionadas com força: 

O presidente Messias da Costa, em comunicado oficial do Planalto, comemorou a maior queda nos índices de violência e criminalidade no Brasil nos últimos sete anos. A redução de 45% é resultado da medida provisória aprovada em janeiro de 2023, a Sentença de Vida, após três anos de pesquisa. Costa aproveitou o momento para anunciar o investimento de R$ 10 bilhões na construção de complexos médicos e judiciários nas cidades mais populosas de cada estado, aliviando a carga das capitais, que atualmente recebem todos os casos de Sentença de Vida no estado. 

O governo precisava de resultados e usou o meu irmão para isso. Renato não deve ser o único condenado injustamente a ilustrar essas estatísticas. Qual é a estimativa para o número de pessoas que sofreram a Sentença de Vida para virar propaganda? Tudo aconteceu tão rápido; um dia divulgaram a proposta e no próximo mês o hospital que estavam construindo na verdade era um complexo com ala médica, penitenciária e jurídica. Três em um, facilitando a condenação e o cumprimento da sentença após o juiz bater o martelo. 

— O combo perfeito – sussurro, a voz carregada de cansaço, mágoa e, principalmente, revolta.  

Engulo o choro enquanto continuo a matéria: 

Relembre a trajetória da Sentença de Vida, o polêmico projeto que gerou indignação popular 

Sem alternativas para a redução da criminalidade no país, o governo brasileiro desenvolveu em segredo, durante o primeiro mandato do presidente, um projeto em colaboração com diversos cientistas pelo país. Quando Messias da Costa anunciou que havia encontrado a solução para a crescente violência durante sua campanha de reeleição em 2022, ninguém esperava que a salvação parecesse o roteiro de um filme de ficção científica, muito menos que apresentaria dados positivos nas pesquisas. Em meio a protestos religiosos, alegando que a essência vital nada mais é do que a alma dos seres humanos, e cidadãos que discordavam da proposta, pois a consideravam antiética; a medida provisória instaurada em caráter de urgência conquistou a população após os primeiros resultados positivos. 

Com três meses de seu lançamento, a Sentença de Vida foi enviada como proposta de lei e aprovada pelo Congresso Nacional e, posteriormente, sancionada pelo presidente. A nova lei agora integra o Código Penal brasileiro. 

 A incerteza de que a maioria dos votantes foi comprada pairava no ar como uma válida teoria após o resultado; afinal, vários membros da bancada são religiosos com princípios similares aos dos manifestantes contrários à lei. 

Tomo mais um gole do meu café e ajeito os meus óculos, uma mania de anos. Só mais alguns parágrafos... 

Entenda como funciona a lei na prática: a essência de vital é transferida do criminoso para a vítima em estado grave, causando a morte do condenado e a recuperação do paciente. 

Só podem ser condenados os criminosos pegos em flagrante ou que seja comprovado, por meio de uma investigação, que foram os responsáveis pelo crime. Como o tempo de investigação é crucial devido à gravidade dos ferimentos das vítimas, se elas morrerem antes que uma condenação seja realizada, a efetividade da lei é perdida. Uma equipe especializada foi treinada para agir nos casos envolvendo uma possível Sentença de Vida. A força-tarefa “Em Defesa da Vida”, o EDV, conta com policiais militares, investigadores civis, promotores e juízes, trabalhando em conjunto na execução da lei. 

Amada ou odiada, não é possível negar a eficácia da Sentença de Vida. Pesquisas apontam que 52% da população brasileira afirma sentir-se mais segura ao sair de casa para a rua, índice que só aumenta a cada nova coleta de dados. Resta esperar, e torcer, para que o sucesso se estenda ainda mais pelo resto do país após o anúncio da criação dos novos complexos. 

Incluo a entrevista que realizei com um Renascido, Adriano Santos, que recebeu a sentença após uma invasão de domicílio que quase resultou em sua morte. Finalizo minha matéria e me sinto uma verdadeira mentirosa ao apertar enviar no e-mail e encaminhar para o editor. Por isso, faço uma careta e mostro o dedo do meio para a tela do notebook assim que a mensagem de confirmação de envio é exibida. 

Não posso me dar ao luxo de tentar outro emprego, merda, nem sou fixa ainda. Acredito que a minha oportunidade de fazer a diferença está próxima, mesmo que para o meu irmão seja tarde demais, ainda posso ajudar outras pessoas a não caírem nesse golpe. Ou tornar pública a história daqueles que tiveram o mesmo destino que Renato. 

Eles podiam ser baixos, mas eu posso ser pior. Principalmente depois de ignorarem meu testemunho de que estava com Renato no horário do crime, ou quando sumiram misteriosamente com as gravações das câmeras que confirmavam seu álibi. Menos de vinte e quatro horas depois do fatídico evento, meu irmão já havia sido sentenciado e seu destino selado, dar a sua vida para a vítima de assalto baleada em estado grave. 

A arma nunca foi encontrada, a testemunha que alegou que meu irmão era o atirador mentiu descaradamente, os policiais mais ainda ao abordarem Renato em frente ao prédio em que ele aguardava para uma entrevista de emprego. Fato este que também foi negado pela agência que ligou três dias antes para convocá-lo. Foi uma puta armação, com local, data e hora marcadas. Renato só foi azarado o bastante para ser o escolhido nessa teia de mentiras. 

Me distraio com a mensagem de Ferraz avisando que já chegou; libero sua entrada no prédio e destranco a porta. Alguns minutos depois, ele aperta a campainha, grito para entrar seguro o riso quando percebo sua cara feia: 

— Você e sua mania de nunca conferir quem está na porta, algum dia isso vai ser um problema – comenta ao passar pela porta e trancá-la atrás de si. 

Observo o homem com pele de ébano e olhos castanhos me encarar de volta esperando uma resposta, o rosto anguloso destacado pelas sobrancelhas arqueadas: 

— Nunca foi – retruco debochada. - Conseguiu o que lhe pedi? 

— Não foi fácil, a informação que solicitou é confidencial – ele retira o documento da bolsa transversal e me entrega. - Todas as informações relacionadas à Sentença de Vida estão a cargo da força-tarefa. 

— E mais uma vez você me surpreendeu, Davi Ferraz - agradeço ao pegar o documento em suas mãos, mas o investigador da polícia civil o segura mais forte, o retendo entre nós. 

— Tenho os meus contatos – confessa divertido, e completa ao soltar o arquivo: - Está me devendo essa. Posso ser preso pelo que fiz, você tem noção disso, não é? 

— Sim – respondo séria. - Como posso lhe retribuir? 

— Apenas mantenha-se segura, sabe muito bem do que eles são capazes. Pesquise o que precisar, mas não banque a investigadora e interrogue. Foi sorte aquela bala não lhe acertar – Ferraz cruza os braços. - Foi queima de arquivo, Alexa. Ou um alerta para ficar quieta. 

— Eu sei, dei bobeira, devia ter me disfarçado - ele suspira insatisfeito. - Mas não tinha como saber que a minha fonte iria aceitar suborno. 

— Você é impossível – o investigador confere o relógio e finaliza: - Meu horário de almoço está acabando, promete que não vai se arriscar? 

— Promete que vai me falar quando algum de meus pedidos for arriscado demais? - rebato. 

— Como se você ligasse... - lança, indignado. 

— Sabe que me importo – digo me aproximando. - Você é o meu principal recurso dentro da polícia, seria um desperdício perdê-lo. 

Ferraz ri, seu sorriso permanece no rosto enquanto se despede e vai embora. Uma relação estranha, de fato. Não esperava que meu ex-namorado permanecesse ao meu lado após o término, mas ele esteve presente quando Renato foi condenado injustamente, a única pessoa que acreditou em mim. E continua acreditando ao ponto de arriscar seu emprego para conseguir informações sigilosas essenciais para a minha investigação. 

Abro uma garrafa de vinho e me sirvo de uma taça generosa, um dos luxos de não ter um trabalho fixo e produzir conteúdo de casa, é poder me embriagar ao meio-dia como se fosse final de semana. Mas isso não passa apenas de uma desculpa, o arquivo serviu de gatilho para a morte do meu irmão, preciso de um leve incentivo para seguir em frente. 

Encaro a pasta com relutância, a informação que espero encontrar está diretamente relacionada à condenação de Renato. Dou um segundo gole demorado na taça e acabo virando todo o seu conteúdo. 

— Vamos lá, você consegue. O andamento da sua investigação depende desse nome – anuncio, uma forma de encorajamento. 

Ainda é muito doloroso ler qualquer informação relacionada ao caso, éramos muito próximos, sua injustiça apenas tornava sua morte mais pesada de suportar. Finalmente, folheio o documento e, após alguns minutos lendo seu conteúdo, encontro o nome da pessoa responsável por certificar falsamente sua presença no local do crime do qual foi acusado, a vítima. Carolina Monteiro, trinta anos, secretária, logo abaixo seu endereço no centro de Curitiba. 

— Achei você, Carolina – digo em voz alta, enfatizando cada sílaba do seu nome. - Nós temos assuntos inacabados para tratar. 

Em nome de Renato, meu irmão, juro que vou cobrá-la e desmascarar essa conspiração. 


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