Westwood - O medalhão do poder escrita por Thomaz Moreira


Capítulo 2
Uma louca roubou a minha lata de lixo // Procura-se garota loba


Notas iniciais do capítulo

Capítulo 2 e 3



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Acordei as sete horas da manhã. O sol bateu na minha cara quando eu puxei a cortina. Olhei no despertador novamente de relance. Eu estava bem atrasado para a aula.

Talvez eu não tivesse acordado tão tarde se tivesse um pai mais presente na minha vida. Não que ele seja alguém ruim ou algo do tipo. Muito pelo contrário, o meu pai é uma das melhores pessoas na minha vida. E trabalha duro para dar o melhor para mim. O carro foi um presente que eu recebi depois de longos anos em que ele trabalhou como caminhoneiro. Mas o fato de suas viagens serem muito longas acaba afetando em algumas coisas. Como nas vezes em que eu acabo precisando dele, mas ele está em outro estado.

Pulei da cama com um impulso que nem eu sei de onde veio. Corri para o banheiro com as minhas roupas para a escola. Tomei o meu banho enquanto escovava os dentes.

O espelho estava todo cheio com aquele vapor, por causa dos banhos quentes que eu tomo durante as manhãs mais frias. E isso é bem comum. Westwood é localizada no Alaska, o que significa que são raros os dias de calor.

O sol estava muito lindo lá fora. Pude o ver pela janela. Mesmo com todo aquele frio ele estava bem limpo, assim como o céu. Tempo raro em Westwood, que em sua maioria das vezes, apresenta dias cinzentos e nublados, ou cheios de chuvas. Em compensação, ainda dá para ver as estrelas durante as noites.

Penteei o meu cabelo o deixando como sempre. Um topete alto na frente da cabeleira no estilo Elvis Presley. Era um topete bastante comum, apelidado carinhosamente por Theodore de “topete de badboy”, já que de acordo com ele, esse tipo de cabelo é bem comum em personagens misteriosos de séries adolescentes.

Quanto mais eu olhava para o espelho, mais reparava em algumas características do meu corpo das quais eu não havia notado muito. Como, uma pequena mancha escura em meu pescoço. Os olhos juntos e quão castanhos eles eram, e o nariz fino. O porte físico de alguém que não pratica esportes a anos também era algo nítido, mas essa era uma coisa que era jogada em minha cara a todo instante que eu me olhava no espelho. Falando nisso, o meu rosto quadrado era o que mais me irritava. E o tom de pele claro se deve ao fato de meus descendentes serem nativos de Westwood. E a cidade em si, foi colonizada por vikings, então, faz sentido. Apesar disso, eu tenho cabelos escuros e não ruivos.

Coloquei a minha camisa xadrez, uma calça qualquer de cor preta, meus tênis velhos, porém confortáveis e estava pronto.

Saí do banheiro indo em direção a cozinha. Passei pela sala e olhei para o sofá. Foi quando eu me lembrei da noite passada. Aquela bizarrice toda. Ainda haviam algumas poucas manchas de sangue. Nada que um pouco de álcool não resolvesse, mas eu precisava fazer isso antes do meu pai voltar de viagem.

Theodore é o meu melhor amigo e sempre sabe de tudo, mas eu duvidava que ele iria acreditar nessa história. — Uma loba solitária que se transformou em uma garota e deixou manchas de sangue no sofá? Isso parecia muito mais do que loucura! — E o fato do meu amigo ser um cético de carteirinha não colaborava em nada para que ele acreditasse na história.

Estava comendo meu cereal quando recebi uma ligação. O meu celular não parava de vibrar. Eu olhei na tela e tomei um susto. Era o próprio Theodore e seis chamadas não atendidas. Eu deveria ter me distraído pensando em todas as coisas da noite passada.

Era a minha chance de falar tudo para ele. Com certeza falar pessoalmente seria a melhor opção, mas a ansiedade tomou conta de mim.

— Theo, que bom que ligou, preciso falar com você. — Disse tomando seu espaço de fala. — Cara ontem aconteceram algumas coisas bem bizarras. Vou resumir para você. Eu achei uma loba no caminho para a casa, toda machucada. Levei para a minha casa e comecei a cuidar dela.

            Eu sabia que não era uma boa ideia contar essa história de louco assim desse jeito. Precisaria acalmá-lo mil vezes antes, mas eu estava ansioso demais para pensar nisso.

— Logan... — Ele me chamou com sua voz de garoto na puberdade. Mas eu não o deixei terminar, precisava completar a história.

— Calma um pouco, deixa eu terminar! — Insisti. — Deixei ela no meu sofá, estava sangrando. E cara! Ela se transformou em uma garota! Toda peladona!

Ele pareceu um pouco silencioso, apesar da respiração forte. Talvez estivesse nervoso. Passaram-se alguns segundos sem que ele comentasse nada, o que me deixou curioso. Ele provavelmente me chamaria de louco.

— Theo?

            Após aquele momento constrangedor, do qual eu só conseguia imaginar ele me chamando de vários sinônimos de louco, ele finalmente abriu a boca.

— Essa garota é loira, tem olhos bem azuis e uma tatuagem no pescoço? — Ele questionou gaguejando, parecia bem nervoso.

Franzi o cenho. — Como ele sabia dessas informações? Não me lembro de ter contado para ninguém. Não fazia sentido algum.

— Por que a pergunta?

— Porque ela está no seu quintal bem agora. Vasculhando o seu lixo... — Respondeu como se as palavras estivessem entaladas em sua garganta.

Eu rapidamente fui até a janela da cozinha. Abri a cortina levemente sem fazer barulhos. Vi Theodore com o celular na mão do lado de fora. O garoto nerd de calça jeans e moletom preto. Cabelos morenos e de corte social militar bem ajeitado. Dava para ver nos seus olhos castanhos o quão assustado ele estava. Paralisado, olhando diretamente para um canto.

Olhei então para a lata de lixo. Lá estava ela, derrubada no chão. Vários restos de comida espalhados pelo gramado e a garota. Aquela mesma garota de antes. Estava ali parada agindo como uma loba procurando por comida. Farejando.

Não pensei duas vezes em abrir a minha porta da frente. A menina tomou um belo susto e deu um pulo para trás. Eu vi os pontos no seu corpo, ainda estavam bem feios, demoraria um tempo para se curarem. Tinha alguns arranhões e marcas de sangue.

Ela me olhou diretamente nos meus olhos como se fosse me atacar a qualquer momento. — Não me julgue por estar com medo de uma garota pelada que é menor que eu.

— O que você faz aqui? — Perguntei gaguejando um pouco.

Ela ergueu o pescoço se levantando. Estava de pé como uma humana comum. Olhou para mim curiosa agora. Deu dois passos à frente. O suficiente para ficar bem próxima de mim. Enquanto isso, Theodore discava o número da polícia. Estava pronto para chamar o xerife a qualquer instante.

Senti sua respiração bater na minha cara. Ela estava me farejando. Agindo como uma loba. Ficou assim por alguns segundos, até que simplesmente entrou na minha casa como se nada tivesse acontecido.

Olhei para Theodore que entendia menos do que eu. Ele veio logo em seguida evitando chegar tão perto da garota. Fechei a porta e tranquei. Por sorte ninguém nos viu.

Ela estava sentada no meu sofá. Mandei Theo ir buscar uma camisa qualquer para ela usar. A garota parecia estar com muito frio.

— Você fala? — Perguntei me sentando ao lado dela.

— Sim. — Ela respondeu com uma voz bem clara e suave.

Fiquei bem satisfeito com esse progresso. Pelo menos ela não tentou me matar ou algo do tipo. Apesar disso, ela ainda parecia uma foragida, alguém que não queria ser vista.

— Quer me contar o que houve? — Perguntei.

Theodore chegou com um moletom. O meu favorito, sabe como eu fico irritado quando pegam as minhas coisas favoritas. Ele deveria estar com raiva de alguma coisa que eu fiz para ele. Apenas o xinguei com um olhar.

Ele entregou o moletom com um pouco de receio para ela. A garota demorou um pouco até colocá-lo. Mas depois que teve suas partes de cima cobertas fiquei um pouco mais tranquilo, mesmo ainda faltando as de baixo.

— Então, qual é o seu nome? — Theodore perguntou se apoiando no pilar.

— Kaila. — Ela respondeu.

Um nome bem incomum, porém, legal. Até que achei bem bacana.

— E por que você está com esses machucados? — Questionei.

Estávamos prestes a começar um verdadeiro interrogatório. E com uma certa razão. A situação toda não era das mais comuns. E por mais que eu tivesse aberto as portas para ela, ainda não confiava completamente na garota. A cada segundo Kaila olhava para todos os cantos, parecia que estava se sentindo em perigo. O que não ajudava nem um pouco na parte da confiança.

— Porque eu fugi da minha antiga alcateia.

Theodore respirou fundo, pareceu bem cético. Sempre foi o cara atrapalhado que procura provar o seu ponto de vista através da ciência, mas não nega que gosta de ocultismo. O que é bem contraditório, mas rende uma enciclopédia ambulante do sobrenatural.

— Alcateia? — Ele repetiu. — Tipo lobos? — Pareceu desacreditar.

Não duvidei nem um pouco. Tendo em vista que ela já se transformou em uma loba. Depois disso fica difícil não acreditar no sobrenatural. Talvez seja um truque de mágica, e se for, ela está de parabéns por todo o teatro e efeitos especiais.

— “Os Lobos de Loki” é como chamam a nossa alcateia. — Falou. — Minha antiga alcateia. — Corrigiu. — Estão me procurando agora.

— Loki? O deus nórdico? — Perguntei imediatamente.

— Na mitologia nórdica, Loki teve um filho com uma giganta. — Theo explicou. Ele realmente entende do assunto, e mesmo não acreditando, ainda podia dar uma aula. — Uma besta gigantesca com um poder destruidor. Um lobo, Fenrir.

— Daí vem o nome... — Comentei.

— Fenrir, é como chamam o alfa. — Ela falou. — Eu preciso de água...

— Tem na geladeira, vai lá. — Theo indicou o caminho de uma maneira um tanto quanto grosseira.

Olhei para ele um pouco surpreso por acolher alguém na minha casa como se fosse a dele, mas fiquei mais surpreso ainda pela garota saber o que é uma geladeira.

Entrou na cozinha e abriu as portas da geladeira. Pegou uma garrafa de dois litros de água e começou a virá-la em sua boca. Sem pausa para respirar. Olhamos impressionados para aquela cena sem dizer uma única palavra.

— Acredita nela? — Ele me perguntou sussurrando.

— Westwood foi colonizada por antigos vikings.

— E...?

— Faz um pouco de sentido. É coisa da nossa cultura. Ou mais da cultura do sul da cidade, mas ainda é.

— Vai acreditar nela, por causa disso? — Perguntou, olhou para mim querendo me dar um tapa. Estava quase tendo um ataque.

— Ela era uma loba e virou uma humana! Pode explicar isso? — Sussurrei forçando um pouco mais a voz.

— Não posso explicar se eu não vi! — Ele respondeu com um pouco de raiva gesticulando bastante.

            Fazia sentido, e eu não vi exatamente ela se transformar. Fui de um cômodo para o outro e ela de repente estava lá.

— Então, vai fazer o quê?

— Eu não sei! — Respondi.

— Cara, ela veio na sua casa. Precisamos resolver isso. Ela poderia ter ido em qualquer lugar, por qual motivo viria aqui?

— Não sei...

Kaila voltou para a sala. Deixou a garrafa vazia sobre a pia. Fiquei impressionado com o pouco de tempo que ela levou para esvaziar aquilo.

— Eles me obrigaram a matar um inocente para conseguir uma informação. Um bruxo que vivia nas florestas. Eu não fiz. Então começaram a me caçar. Eu sou uma traidora e covarde por isso...

Theodore bufou balançando a cabeça negativamente e cruzando os braços. Bateu os pés incomodado com a situação. Posição de seu costume.

Bruxos já eram demais. Ela estava realmente passando dos limites. Talvez acreditar naquela parte já era muita idiotice mesmo.

— Não acredita em mim, não é? — Ela perguntou mais séria do que o comum.

— Sinceramente, não... — Theo respondeu antes que eu pudesse abrir a boca para falar algo.

Ela então olhou fixamente para ele. Abriu sua boca lentamente e começou a rosnar. Olhei para seus dentes. Aqueles dentes brancos estavam diferentes. As presas foram aumentando muito rápido. O que assustou Theodore e eu. Seus olhos ficaram mais azuis ainda! O que parecia impossível. Ela ia se transformar na nossa frente.

— Está bem, está bem, eu acredito! — Ele falou recuperando um pouco o folego, e escondendo o seu medo. Estava surpreso também, mas evitava demonstrar.

Dei um passo para trás com um certo medo. Foi quando ela olhou novamente para mim. Voltou ao normal em um segundo como se nada tivesse acontecido.

— Caramba...

— Você tem algum lugar para ficar? — Theodore perguntou gaguejando um pouco, com um certo medo de Kaila.

— Não.

— O meu pai está fazendo uma viagem de entrega. Isso vai demorar mais ou menos... um mês — Falei.

— O quê?! — Theo perguntou chocado. — Qual parte de “lobos psicopatas estão correndo atrás dela” você não entendeu?

— O meu pai está viajando, só quem vai estar correndo risco sou eu. E são só lobos, relaxa. — Falei tentando acalmá-lo.

— Falou como se lobos fossem inofensivos... — Resmungou.

A verdade é que eu não sabia o que estava fazendo. Tinha esquecido completamente da aula por causa de toda aquela situação.

Abrigar uma completa estranha na minha casa é loucura. Principalmente, uma estranha que se transforma em uma loba e está sendo procurada por uma alcateia. E Theodore fazia questão de me lembrar disso a cada instante.

Theo esfregou sua mão no rosto, nervoso, tentando não pirar. Batia os pés mais rápido respirando fundo.

— Está bem... — Ele sussurrou. — Mas se você morrer, eu te mato!

— Isso é possível? — Perguntei.

— Bruxos e lobos que se transformam em gente, isso é possível, certo?! — Deu para sentir de longe o sarcasmo em sua boca saindo junto as palavras.

Ele tinha razão. Parecia bem mais idiota quando saia da boca dele. Dá para entender os ataques dele. É o cara da ciência, que procura uma lógica para tudo. E quando não encontra essa lógica, significa que ele não se sente seguro. Conhecimento para Theodore é a melhor arma, e a partir do momento em que seus conhecimentos se provam nulos, ele não tem mais aonde se esconder.

— E arranja uma calça para ela!

...

Estávamos mais atrasados que o normal para outro dia na escola. Focamos tanto nossas atenções na garota e suas presas que acabamos nos esquecendo da prova teórica de química com o senhor Wilson que aconteceria em um dos primeiros horários.

Kaila adormeceu no sofá da sala. Acabei cobrindo com um edredom pequeno enquanto Theodore ainda batia seus pés incomodado. Só faltava começar a roer as unhas.

Pegamos nossas coisas e fomos para a escola. Eu tranquei a porta com receio de que quando chegasse de volta, ela estaria toda arranhada e os móveis revirados.

Talvez não tivesse sido legal ter a deixado sozinha. Kaila não é irracional, mas Theodore está certo, eu mal a conheci e já confiei nela. Um erro meu que vive acontecendo.

Fomos a pé para a escola. Tudo graças a minha incrível habilidade de esquecer as coisas. A bola da vez foi o meu carro, que eu acabei esquecendo de levar ao mecânico. Já passava do horário dos ônibus e apressamos os passos para chegar a tempo de conseguir fazer a prova.

Theo estudou por semanas, se preparou bem para a prova, como sempre. O garoto é um gênio em química e biologia e sabe fazer batatas fritas como ninguém! Já eu, bom, às vezes me sinto um lixo por não ser tão dedicado quanto Theo. Apesar dele sempre estar comigo nos dias de curtição, ele ainda consegue seu tempo para estudar e se dá bem.

Cruzamos algumas ruas passando por pequenos mercados. Lugares típicos de Westwood, todos com referências nórdicas, como o Muspelheim Coffee, um ótimo lugar para quem busca um café perfeito durante a madrugada. Atravessamos faixas de pedestres. As verdureiras já estavam abrindo, os preços sempre muito altos. Eu até entendo. O clima em Westwood não favorece muitas plantações. Por esse motivo, algumas coisas acabam sendo mais caras, a importação de outros estados é bem alta.

Dava para ver as mercadorias dos estabelecimentos chegando pela manhã. Grandes caminhões com cargas próximas a Yggdrasil Street. Uma rua enorme que liga à vários lugares famosos da cidade. Localizada bem no meio do centro de Westwood. Também conhecida como “o único calçadão da cidade”. Não é bem o único, mas com certeza é o mais famoso. Não chegamos a cruzá-lo, mas todos os dias eu passava por lá no caminho da escola. Não importa o horário, está sempre cheia de pessoas. Durante as manhãs, os mercados recebem as mercadorias de fora. Durante as tardes, as pessoas fazem as suas compras. E durante as noites, a rua fica infestada de gente a procura dos melhores bares. E essa é uma característica da cidade, os bares estão sempre cheios, chega a ser assustador. É comum passar na frente do Aegir’s pub e vê-lo cheio pelas manhãs de uma segunda-feira. Incomum para turistas, natural para nós. Assim como os bares estão sempre cheios, os lugares de pesca também. A Mermaid’s bay é um dos pontos mais frios da cidade, porém, isso não afasta os pescadores da região.

Assunto é o que não nos faltava. Durante todo o caminho conversamos sobre Kaila. Lembrei do quão pessimista o Theo podia ser. Eu já sabia que ele era, mas nem tanto. Chegou a irritar, falava a todo momento das possíveis chances de tudo dar errado. Não esqueceu nenhuma.

Chegamos no colégio. A placa no alto dizia “Westwood Olimpic High School”. Três bandeiras estendidas. Uma do país, outra da escola, uma âncora e no fundo duas listras na horizontal, uma cinza e outra branca. E a bandeira da cidade, uma árvore de cor dourada, representando Yggdrasil num fundo branco.

Cruzei pelos corredores nos quais esbarramos com algumas pessoas. Tudo normal, pessoas que nunca nos cumprimentavam. Cada um no seu canto, com seu grupo. Aqueles barulhos de adolescentes conversando num tom tão alto, para que todos na escola possam ouvir.

Em seguida, passamos pelos troféus que ficam ali exibidos para qualquer um. Estava muito bem estampado ali, todos os méritos que o nosso time de basquete havia conseguido ao longo de anos.

A sala do orientador estava logo perto. Nas paredes, alguns cartazes de incentivo a atividades extras. Mas um em si me chamou bastante atenção.

O cartaz não era de atividade extra ou algo do tipo. Estava dizendo “procura-se”. Senti um frio na barriga quando vi uma pintura da Kaila naquele papel.  Ela parecia bem triste naquele fundo morto lá atrás. Era ela, eu tinha certeza. Eram os mesmos traços, e eu nunca iria confundir aqueles olhos, estavam tão azuis quanto eu lembrava que eram.

Theo me deu alguns tapinhas no ombro ao ver o papel pendurado. Nem sabia o que comentar. Foi como se só agora estivesse caído a ficha de que eu estava abrigando uma possível fugitiva e que provavelmente teria problemas por isso.

— Os senhores a conhecem? — Ouvi uma voz grossa e máscula vir de trás de mim.

Nós nos viramos para ver a figura. Um homem alto cabelos grisalhos e curtos. Um cavanhaque fechado bem feito. Apesar disso, não parecia ser tão velho. Estava na casa dos 40. Tinha um porte físico de alguém que malha bastante. Aquele uniforme era bem fácil de identificar. E a estrela dourada no peito dizendo “xerife” também.

Ele nos olhou bem sério. Foi quando eu notei o quão escuro eram aqueles olhos. Um castanho, diferente. Talvez eu estivesse vendo coisas por conta do nervosismo.

— Não, não... Senhor, xerife, senhor. — Theo gaguejou. Ele tem aquela clássica habilidade de não conseguir fechar a boca em momentos inoportunos. — Só achamos meio triste que uma adolescente como ela tenha sumido.

Ele encarou Theo como se estivesse olhando para dentro da alma do garoto. As palavras ficaram entaladas na garganta do garoto.

— Não se deixem enganar pela pintura. — Falou fazendo uma pausa. — Essa aí deixou seis dos meus melhores homens no hospital.

Fiquei quase sem saber o que falar. O meu maior medo naquele momento era de chegar em casa e encontrar meu pai morto. Mesmo sabendo que ele estava viajando e que não chegariam tão cedo.

— Temos uma prova de química agora, senhor. E estamos um pouco atrasados. — Eu falei um pouco tímido.

— Sem problemas... — Ele abriu caminho para nós.

Fomos andando até o final do corredor respirando de fundo. Tive de puxar Theo que havia travado na presença do xerife, e com toda razão. Olhei de relance para trás e vi o xerife pendurando mais alguns cartazes. Aquele cara era um pouco assustador apesar da pinta de sedutor.

Entramos na sala. Já era a terceira aula. Tomamos um esporro do professor por quase perder a prova e um dia de aula inteiro. Mas conseguimos.

Estavam todos já preparados para fazer a prova, todos menos eu. Que não conseguia pensar em outra coisa a não ser o problema que eu tinha me metido.

Ele distribuiu as provas em cada mesa. A virei quando disse para virar. Eram dez questões, para a minha sorte todas de assinalar. Tenho um longo histórico de não estudar para provas, mas quando se trata de química as coisas mudam um pouco. Minha nota estava extremamente baixa com o senhor Wilson. E ele já me encarava com olhar de reprovação. Às vezes eu achava que ele se escondia em uma sala secreta, para rir das minhas respostas em testes, enquanto se deliciava com um vinho seco bem caro. Ainda tenho as minhas dúvidas.

Fiquei batendo o lápis na mesa enquanto tentava pensar naquela prova e deixar a garota de lado.

Quando eu finalmente me foquei na prova notei que não estava tão difícil assim. Isso era um alívio, pelo menos alguma coisa boa.

Uma questão dizia: “Que resultado obteremos se misturarmos açúcar e magnésio?” As respostas estavam na ponta da língua. E o fato de ser de assinalar me fez lembrar a resposta. Uma bela explosão naquele caso.

Demorei vinte minutos para fazer a prova. Theodore fez em no máximo três. Foi um dos últimos a chegar na sala junto comigo e o primeiro a entregar a prova, que ironia. Eu esperava algo muito mais complicado, não essas perguntas de ensino fundamental.

Tivemos que ficar o resto da aula de cabeça baixa esperando os outros terminarem. Ela não estava tão difícil assim, para a minha sorte.

Olhei para o lado e vi Theo pesquisando algo em seu celular. Não consegui ver o que era, mas ele me parecia bem focado.

O sinal tocou e os alunos saíram da sala como uma verdadeira manada de elefantes desesperados por comida. Fomos juntos com a manada. Ouvimos tudo sobre a prova, questões e gente reclamando da dificuldade dela. O que eu achei um absurdo.

Fomos para o pátio aonde encontramos Megan. A garota por quem Theo é “secretamente” apaixonado, desde a quarta série. A clássica popular do colégio, com boas notas, bonita e seu jeito seco de falar. Estava com seu grupo de “amigas” foi quando passamos para cumprimenta-la.

Nos aproximamos e vimos um garoto por perto. O que fez Theo quase rosnar. O menino estava sentado junto as amigas da Megan de pernas cruzadas. Seus cabelos escuros de longas pontas não chegavam a deixá-lo emo, eles eram arrepiados, num bom estilo. Seus óculos redondos eram ajeitados a cada dez segundos. E ele tinha um sorriso tímido e perfeito, como sua própria personalidade. O garoto era o que qualquer um poderia chamar de fofo. Não parava de sorrir. Um provável aluno novo. Nunca tínhamos reparado nele antes.

— Por que vocês se atrasaram tanto? — Megan perguntou. Fazia o papel de mãe nas horas vagas. — Já é a terceira vez que chegam depois da primeira aula só nessa semana!

Estava bonita e bem arrumada como sempre. Uma calça colada preta, assim como sua blusa. A jaqueta com pelos era um contraste para aquela cor roxa. O salto caro também de cor preto chamava bastante atenção. Cabelos ruivos e lisos, muito bem cuidados, pele clara e bem maquiada. Além do batom vermelho chamativo nos lábios carnudos. Aquele nariz perfeito que causa inveja na maioria das outras meninas da escola. Uma cintura bem bonita. Seu corpo bem cuidado era o resultado de uma bela dieta e meses de academia.

— Visita inesperada... — Comentei, foi o máximo que eu consegui bolar.

— As sete horas da manhã? — Ela questionou franzindo a testa.

— Testemunha de Jeová... — Theo respondeu rapidamente acenando a cabeça positivamente sorrindo. Ele ajustou a alça de sua mochila disfarçando um pouco.

Ouvi o garoto dar uma leve risada, bem tímida. Ainda estava sorrindo. Aquele sorriso não irritava, era muito fofo, assim como ele arrumando aqueles óculos. O menino estava muito bem arrumado. Calça preta, jaqueta de couro com muitos zíperes e um belo cachecol.

Megan deu um sinal para que suas outras amigas, desconhecidas, fossem embora. Tenho que confessar, ter uma amiga no topo da popularidade da escola faz eu me sentir bem. Ela até parecia ser daquelas garotas irritantes que só pensam em gastar, mas realmente não era. E depois de doze anos de experiência ao lado dela, eu posso falar com toda certeza. Nossas mães eram muito amigas, e isso acabou fazendo com que nós criássemos uma amizade bem grande desde pequenos. Nada malicioso, era puramente amizade. E quando a minha mãe morreu, por algum motivo, Megan assumiu o papel dela. Nunca me abandonou, mesmo com toda a fama na escola atualmente, e a quantidade gigantesca de amigos.

— Esse é o Peter, é aluno novo aqui. — Apresentou.

Ele sorriu para nós acenando. Nos olhava com os olhos quase fechados. Parecia aqueles personagens fofos de animes.

O cumprimentei com um aperto de mão enquanto Theo só acenou. Ciúmes, claramente.

Passamos todo o intervalo juntos enquanto conversávamos. Falei do teste de química, e o quão fácil foi. Megan comentou sobre os trabalhos que entregou, e os garotos que tentavam chamar ela para sair. A lista era bem grande. Em uma primeira olhada, dava para deduzir que ela fazia isso para se gabar, mas na realidade, ela falava para desabafar sobre o quão incomodada estava.

Por um momento eu me distraí e acabei esquecendo da Kaila e todos os problemas que me meti. Theo estava enchendo o saco de Megan novamente, então provavelmente também tinha esquecido.

Peter estava anotando algumas coisas em uma pequena agenda, não consegui ver ao certo o que era.

O sinal tocou, eu teria biologia e ele matemática avançada. Precisava me separar de Theodore. As aulas seguintes foram um saco. E eu ainda fui advertido pelo professor a ficar depois do horário para ir na coordenação. Levar um daqueles esporros por chegar tão atrasado. Theo também foi chamado.

Não prestei atenção em nada. Dormi todas as outras aulas. Até notei que Peter tinha aula de educação física comigo. Ele ficou na arquibancada da quadra de vôlei sozinho com fones de ouvido. Ainda estava escrevendo naquele caderninho e sempre feliz. Não dei muita bola, afinal eu só queria dormir e evitar um jogo de vôlei.

Quando o sinal da última aula tocou e os alunos começaram a sair para voltarem a suas casas, eu me senti muito mais aliviado. Só teria que ouvi um esporro e poderia finalmente voltar para a minha casa.

Peguei as minhas coisas e saí andando por último. O colégio já estava bem vazio e em pouquíssimos segundos, o que chega a ser assustador. Mesmo partilhando da vontade de chegar em casa logo. Alunos eram praticamente raros e se eu os encontrava eles estavam indo embora.

Cheguei no corredor da sala da coordenação. Foi quando eu encontrei Theodore ansioso, para variar. Entramos juntos e encontramos o senhor Louis.

Ele nos olhou dos pés à cabeça. Só queria ir embora assim como a gente. O horário também não colaborou em nada.

Tomamos uma advertência. A segunda, só nessa semana. Caso chegássemos a uma terceira, seria suspensão na certa. Foi um esporro do tipo “Garotos, de novo? Sério? Vocês precisam ter mais responsabilidade!”, num tom bem suave.

Deixamos a sala do coordenador depois de um simples sermão. Achei que seria o maior esporro da minha vida, mas ele estava tão cansado quanto a gente.

Cruzamos um corredor. Todo o lugar já estava vazio e silencioso. O único som era de nossos passos ecoando por todo ambiente. Mas vimos algo lá no final, bem no final.

Chegamos um pouco mais perto e o meu coração disparou. Eu e Theo escutamos aquelas patas no corredor.

Era um lobo, bem grande, com quase um metro e meio de altura. Seu pelo, escuro e pontudo. Estava nos olhando de lá do final do corredor. Havia parado de andar. Sentou-se e ficou apenas observando.

Eu e Theo ficamos parados com medo de dar os próximos passos. Pensávamos no que fazer. Aconteceu tudo muito rápido. Só conseguia pensar em como um lobo daquele entrou na escola, e ninguém viu. Meu coração estava disparado e a respiração de Theodore estava praticamente ecoando pelo corredor.

— Fala pra mim que essa é a nossa loba... — Ele disse.

— Ela tem pelo branco... — Falei.

— Então quem é esse aí? — As palavras entalaram na sua garganta com medo daquela criatura logo a sua frente.

Parei de falar, tentando me acalmar um pouco, pensando que talvez fosse algum amigo da Kaila ou algo do tipo. O lobo não tinha nos atacado até então. Estava ali parado por mais de cinco minutos sem se mover, apenas nos observando, como se quisesse algo, mas não fosse nos machucar.

— Você acha que ele quer a Kaila? — Theo perguntou. Mais uma vez abriu a boca em um momento que não precisava ter aberto.

Foi logo depois que ele falou isso que eu ouvi o lobo rosnar. Como se ele tivesse ficado extremamente irritado do nada. Então para a nossa “sorte”, ele veio correndo, mas parecia estar saltando, pegando um impulso bem forte. Foi tão rápido que a gente mal teve tempo para se defender.

A única coisa que eu consegui fazer foi me agarrar ao Theo, fechar os olhos, e dar um grito tão agudo que fez eu questionar o poder das minhas cordas vocais. Ele fez o mesmo em mim. Torci para que tudo aquilo fosse um sonho. Mesmo de olhos fechados, escutava o barulho das pegadas pelo corredor.

Até que ouvi outro som, muito estranho, não soube bem descrever. Era como uma corrente de elétrica, porém mais grossa. Logo depois veio aquele uivo, incomum. O lobo tinha se ferido.

Abri meu olho direito curioso e bem devagar. Estava segurando bem forte os braços de Theo.

Só então que eu vi aquela figura encapuzada de costas para a gente bem na nossa frente. O lobo estava no chão como se tivesse sido derrubado. Eu não entendi nada do que aconteceu, muito menos Theodore.

A figura encapuzada estava usando um tipo de manto preto, cobria bem o seu rosto. E o tecido era bem estranho, rodeado por um tipo de névoa escura. Parecia até que a névoa fazia parte do manto, ou que a névoa era o manto. Muito confuso e ao mesmo tempo assustador.

O lobo se colocou de pé novamente, mesmo com uma certa dificuldade. Cambaleou, mas tentou outro ataque. Pegou um impulso correndo e pulou na direção da figura misteriosa. Com sua boca aberta e presas expostas, estava prestes dar uma bela mordida. Mas o homem na névoa foi defendido por um tipo de escudo, numa cor branca meio transparente ao levantar sua mão e gritar “Gwendokai”. Eu juro que vi aquilo, não estava ficando louco. Estava ao redor da figura encapuzada. Um círculo perfeito que o cobria completamente. E ainda assim cabiam mais algumas pessoas lá dentro.

A fera bateu seu rosto no escudo ao saltar. A palma da mão do homem estava bem aberta, como se ele estivesse fazendo um grande esforço para manter aquele escudo.

A criatura rosnou olhando para a figura misteriosa e depois para nós. Deu alguns passos para trás mostrando suas presas. Verdadeiras lâminas assustadoras.

Logo depois deixou o local correndo. Respiramos fundo quando ele nos deu as costas. Não tinha entendido nada do que havia acontecido ali.

Eu só pensei em Theodore. Depois de ver aquele lobo, a figura no traje com névoa escura, e ser defendido por um escudo invisível, acreditar no sobrenatural não era mais uma opção.

Estava de boca aberta passando a mão em seu rosto. Eu queria saber quem era aquele homem, e por qual motivo nos ajudou. Mas ele desapareceu na nossa frente. Ele caminhou até uma área um pouco escura do corredor e se desfez na pequena escuridão.

— O que foi que acabou de acontecer aqui!? — Theodore perguntou aos berros surtando.

— Eu não faço a mínima ideia! — Respondi no mesmo tom.

 


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