Love awaits in Johto escrita por zkephra


Capítulo 3
Amor Perfeito




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— Aqui está, senhorita! — a atendente devolveu o Cartão de Coordenadora de May — Inscrição número 36.

— Obrigada!

— E aqui está o seu! Inscrição número 37 — a outra atendente devolveu o cartão de Drica.

— Obrigada!

— Acho que vou ter que dar uma corridinha pros bastidores se quiser ver a sua apresentação a tempo — May comentou.

— Essa é a parte ruim de fazer a inscrição todo mundo junto, mas a gente sempre acaba dando um jeito de ver a apresentação uns dos outros. Essa é mole! Não é, Solidad?

May e Drica haviam chegado ao canto do salão, próximo ao quadro de avisos em que Solidad lia enquanto as esperava.

— Já acabaram? — Solidad, a inscrita número 35, perguntou.

Elas duas haviam encontrado Solidad saindo do hall quando chegaram. Então, rapidamente, Drica fez planos.

— Sim, estamos inscritas também! — May respondeu.

— Bem, então vamos logo!

No Shopping, May se sentia em casa. Poderia se perder fazendo compras a tarde inteira se tivesse tempo para isso.

— Eu sei que vocês não me deram escolha a não ser vir com vocês, mas eu realmente não gostaria de demorar. Eu já dei tempo de descanso o suficiente para os meus Pokémons e agora devo continuar com o treinamento.

— Relaxa, May! Você mesma disse que precisava comprar umas coisas, não disse? — Drica contrapôs.

— É… Mas nada que eu não pudesse deixar pra amanhã...

— Isso me faz lembrar daquela vez que compramos o nosso estojo de fitas juntas, Drica — disse Solidad.

— E estamos prestes a fazer isso de novo, mas agora em três!

Drica estava superanimada.

— Ai! Todos eles são lindos! E agora? — May estava indecisa.

Drica e Solidad vieram dar uma olhada.

— Acho que o rosa combina mais com você, Cunha.

— Devo concordar — consentiu Solidad.

May olhou em volta.

— Mas você já pegou um rosa, Solidad. E a Drica está com um azul-claro. Acho que se vamos fazer isso juntas, devemos pegar três cores diferentes. Então eu vou escolher… esse daqui!

May pegou um estojo de fitas laranja.

— Esse vai ser meu estojo de fitas Johto e espero enchê-lo mais rápido do que vocês!

— Vai sonhando! — provocou Drica.

— Mirar alto não vai te fazer mal nenhum, mas não pense que vou pegar leve com você, aliás, com nenhuma das duas — disse Solidad.

— E é justamente isso que vai tornar a competição valiosa! — Drica estava exultante. Estendendo a mão, ela continuou — Meninas…

May e Solidad puseram suas mãos sobre a de Drica.

— Em Johto, esse Trio…

— … vai arrasar! — as três gritaram juntas enquanto levavam as mãos para cima.

Desde criança, Drica era assim: a alegria da casa, da festa, do que fosse. Mesmo Solidad, com seu jeito mais ponderado de ser, era carregada por aquela agitação sem resistência alguma e agora que May, outra animação em pessoa, estava com elas, nada nem ninguém poderia colocar aquelas três para baixo.

Elas seguiram fazendo compras, nada de suprimentos ou coisas úteis: só bugigangas de meninas. Por volta das duas da tarde, elas se dirigiram de volta à praia e pretendiam cada uma prosseguir com seu treinamento. Mas não antes de uma foto, ou talvez duas… Por que não três ou quatro?

— Vocês têm PokéKut? — perguntou Drica, a dona da câmera digital.

— Quê? — foi a resposta de May.

— Assim que ouvi falar disso, Drica, eu tive cer-te-za de que você faria um na hora em que ouvisse falar também — foi a resposta de Solidad.

— E você estava certa, Soli! Sabe que vou te persuadir a fazer um também, né? Aliás, as duas!

— Mas o que é isso? — May perguntou.

— PokéKut é um site de relacionamentos focado em pessoas que lidam com Pokémons. — Solidad começou a explicar — Não importa se você é treinador, coordenador, criador ou só um admirador. Basta fazer um perfil e então você terá um blog. Nesse blog você pode postar tudo sobre você e os seus Pokémons, ao mesmo tempo que poderá seguir os blogs das outras pessoas e ver o que elas têm feito. Os fãs é que aproveitam! O site começou há pouco tempo, mas dizem que coordenadores como Wallace já têm mais de dez mil seguidores.

— Quem é Wallace? — May perguntou.

— Como você não sabe quem é o Wallace? — Drica retrucou — Ele deve ser o coordenador com mais fãs sobre a face da Terra!

— Acho que eu vou procurar saber então… — uma gota de vergonha alheia escorreu atrás da cabeça de May — Então fazer um perfil nesse PokéKut é como ter um site seu?

— É, eu diria que sim. Não esquecendo-se de considerar que só quem tem cadastro pode ver… essa é a ideia! — Solidad respondeu.

— Parece legal!

— Bem, vamos ao trabalho! — Drica puxou o notebook da mochila — Temos que fazer os perfis de vocês duas para eu poder marcar vocês quando postar essas fotos.

— Drica, eu tenho que treinar! — reclamou May.

— Liga não! Vai ser coisa rápida!

Uma hora depois elas tinham terminado de cadastrar nome de usuário, preencher a seção “sobre” e tirar foto de perfil.

A foto de perfil de May ficou muito bonitinha. Era ela aparecendo dos ombros pra cima, piscando um olho, fazendo o sinal de peesu (nosso “paz e amor”, lá, “paz e vitória”), com o mar ao fundo e Beautifly pousada em sua cabeça. De bônus, ainda havia na foto a rosa, já murcha, que Drew lhe dera no dia anterior e que ela estivera usando por sobre a orelha por toda a manhã. Mesmo murcha, May achou que a rosa estava bonita. Além disso, a rosa, ou melhor, ter uma rosa, acabava por ser um traço de sua carreira de coordenadora, por mais que só ela e os amigos soubessem disso. Combinava perfeitamente, já que era uma foto de perfil.

Agora, Drica estava postando as fotos daquele dia.

— Hashtag Cunha! — ela disse dando OK na publicação de uma foto dela e da May.

— Ei! Você vai usar esse apelido na internet!!? — disse May, meio desesperada de vergonha.

— Você não ficou com vergonha quando te chamei assim na frente da Solidad!

— Mas é diferente…

— Ela tem razão, Drica. É bem diferente — defendeu Solidad.

— Se te incomodar você pode negar! Quando te perguntarem, você diz “Não sei de nada disso! É só um shipp doido da Drica.”.

— Shipp? — May perguntou.

— É! — Drica exclamou, olhos brilhando.

— Shipp é quando a gente vê duas pessoas e acha que elas formariam um casal muito bonitinho, então passamos a torcer para que fiquem juntas — explicou Solidad.

— Bem, acho que eu faço isso o tempo todo então! — admitiu May — Só não sabia que tinha um nome.

— Eu também! — os olhos de Drica brilhavam ainda mais — Fazer shipps é um passatempo pra mim!

— Seja em obras fictícias, seja na vida real, shippar casais é praticamente inevitável. — Solidad continuou — Por exemplo, eu shippo Harley e Drica, queria muito que eles voltassem a ficar juntos — ela lançou no ar.

Drica se ofendeu.

— Ah, é!? Pois fique sabendo que eu shippo Solidad e Anthony antes mesmo de conhecê-lo.

— Isso era pra ser uma provocação? Devia saber que não me afeta. Já sabe que eu gosto do Anthony mesmo!

— Droga! — Drica xingou.

— Viu, May? — Solidad fechou um olho ao falar — Shippar um casal nada mais é do que torcer para que eles fiquem juntos.

— “E nós duas shippamos May e Drew muito fortemente”, a Solidad se esqueceu de dizer — Drica disse.

— “E nós duas shippamos May e Drew muito fortemente”, a Solidad foi discreta em não dizer — Solidad corrigiu.

Não fazia diferença, May já estava meio coradinha de qualquer forma mesmo.

— Mas dito isso tudo, Drica. Shipps são muito divertidos quando falamos de outrem ou quando brincamos com uma das pessoas envolvidas. Mas em se tratando de internet, acho que você devia levar a privacidade deles em consideração, principalmente sendo pessoas tão próximas.

— Mas, justamente… É o meu irmão, eu nasci pra fazer ele passar vergonha!

Era cada uma que a Drica fazia a Solidad ouvir...

— Tá! Então poupe a May.

— “Então poupe a May”, é, acho que isso eu posso fazer. — Drica clicou no botão de “editar” para mudar a legenda da foto.

— Obrigada, Solidad! — May agradeceu.

— Não há de quê, disponha! Eu tô aqui pra evitar 70% das besteiras que a Drica faz mesmo. Os outros 30% ela faz por sua conta e risco.

— Detesto quando você está mais certa que eu, Solidad. — Drica acrescentou — Pronto! Uma foto neutra de amizade. Satisfeita, May?

— Sim, com certeza. Obrigada!

— Vocês não vão postar nada no perfil de vocês? — Drica perguntou.

— Você não disse que como marcou a gente nas fotos, elas já vão aparecer no nosso perfil? — Solidad devolveu a pergunta.

— Isso mesmo.

— Então não tenho nada pra postar agora.

— Eu também devo deixar pra pensar o que quero escrever no meu perfil depois — May disse — acho que vou dar uma olhada nos outros blogs antes de começar.

— É uma boa ideia, May — concordou Solidad.

E foi aí que ele as avistou: Megera I, Megera II e a mucama Solidad sentadas na areia provavelmente desdenhando de pessoas maravilhosas como ele, Harley, o mocinho de toda a história.

— Mas o que é toda essa poluição!? Mas o que é toda essa poluição!? — chegou gesticulando com as mãos, como se estivesse a afastar o mal cheiro — Ah, é esse veneno de jararaca!

— O único veneno no ar aqui é o seu, Koffing ambulante! — Drica retrucou.

— Disse a Ekkansinha!

— Não venha me provocar, seu Muk!

— Por que eu perderia meu tempo com algo tão insignificante como uma Nidorina sem graça que nem você?

— Não seja por isso, Nidorino!

— Parem! — disse Solidad — Já não sei se estão trocando farpas ou flertando, e se for o segundo caso, é muito constrangedor estar aqui numa hora dessa.

May não conseguiu conter uma risada.

Solidad quebrara o clima pesado com sucesso, mas para Harley não seria um grande desafio fazê–lo voltar.

— Deve estar se sentindo muito confiante pra rir desse jeito, garota, —ele se referia à May — mas não se preocupa! — Harley deu um passo a frente e parou abaixado bem de frente para ela, esticando o dedo indicador em sua direção — Em Johto eu vou arrancar definitivamente esse sorriso do seu rosto e vou fazer você chorar, querida, e vai ser tão fácil quanto — ele estendeu a mão e iniciou a ação — despedaçar essa sua preciosa rosa aqui.

Tomando a rosa de May sem aviso prévio Harley a amassou com uma única mão e, ao levantar-se, soltou o que restou das pétalas ao vento com um sorriso malvado.

— Harley… — disse Drica, embasbacada.

Solidad apenas fechou os olhos em reprovação.

E May… May não esboçou reação, exceto o sincero lamento por perder aquela rosa que seus olhos não conseguiram esconder.

Aquilo foi combustível o suficiente para Harley manter o sorriso no rosto.

— Não se preocupe, o Cabelo Verde vai te dar outra mesmo! Mas cuidado!!! Pode ser logo antes dele gritar com você que nem daquela vez no Grande Festival de Kanto, aí é você mesma quem vai querer jogar ela fora.

— Já chega, Harley! — Solidad se levantou e ia começar a dizer alguma coisa.

— Tudo bem, Solidad. — May se levantou também, a interrompendo. — É só uma rosa. E eu já estava para jogar fora mesmo.

Drica nunca tinha visto May daquele jeito (bem, ela sabia que tinha conhecido May no dia anterior e que não dava pra conhecer uma pessoa em tão pouco tempo, mas pelo pouco que conhecia, não diria que um dia veria May naquela postura): as mãos fechadas, os dentes cerrados, o sorriso voltado para baixo em pura raiva e os olhos, fulminantes.

— Mas, May, era a sua rosa! — Drica começou — Ele não tinha direito de...

— Não dê corda a ele, Drica, é isso que ele quer! Escuta aqui, — May apontou o dedo indicador na direção de Harley — eu vou voltar ao meu treinamento agora e é melhor você passar o resto do dia torcendo pra não bater de frente comigo amanhã, por que se isso acontecer, Harley, é você quem vai derreter de tanto chorar!

May se virou de costas e tentando um tom mais amigável, acrescentou:

— Até mais, meninas.

— Até mais! — as duas responderam.

Tanto Drica quanto Solidad tinham umas verdades pra dizer ao Harley, mas iam esperar até que May se afastasse.

— Vai pela sombra, Camarão Torrado! — Harley gritou, o cínico inclusive acenava — Se bem que com essa nova roupa, seria melhor te chamar de… de… Esmeraldinha! — ele disse não complemente satisfeito porque “Esmeraldinha” não era humilhante o suficiente, mas era o melhor que ele conseguia pensar na hora.

May caminhava com a força de sua raiva: seus passos eram rápidos e pesados. “Fazer chorar. Ele não vai me fazer chorar!”, repetia a si mesma em pensamento.

E as lágrimas ameaçavam brotar. Sentia-se péssima por querer chorar por uma coisa tão simples. Se bem que não era a rosa, era a raiva! Isso mesmo! Era a indignação por de novo e de novo ser submetida a alguma situação constrangedora pelo Harley. E de novo e de novo se deixar atingir; e de novo e de novo ser pega de surpresa. Por que ela não ficava preparada? Por que não se acostumava? E por que era sempre tão atingida? Queria ser um muro. Queria não sentir nadinha, mas por mais que falseasse isso bem, lá estavam aquelas lágrimas tentando sair para mostrar o quanto, mais uma vez, a pancada tinha doído.

Mas não ia chorar. E estava decidido. Em vez disso, começou a correr. Correr, correr e correr praia afora.

Desviava de um grupo aqui, outro acolá; e depois de uma pessoa aqui, outra acolá. Acabou por notar que o mar estava muito mais revolto do que mais cedo, com ondas enormes. Foi então que notou que estava sozinha. Devia ter corrido demais. Diminuiu o passo, olhou pra trás. Ninguém na praia, mas havia uma vilazinha de casas por perto, depois da faixa de areia. Bem ao longe, por trás da vilazinha, ela avistou os prédios do centro da cidade e à esquerda dela, um pouco adiante, iniciava-se a mata do bosque. Nada mal! Um lugar silencioso, bom para um treino. Bom pra não ser perturbada por ninguém.

Ela colocou as mãos para trás, para pegar as Pokébolas, mas naquele momento percebeu que não estava com espírito pra isso. Os Pokémons só sofrem quando seus treinadores estão ansiosos. Sabendo que o mais certo a se fazer era organizar seus pensamentos antes de qualquer coisa, May se sentou na areia e abraçou os joelhos: era hora de pôr as ideias no lugar.

“Pense, May. ‘O quê?’, ‘O quê exatamente te perturba?’”, conversava consigo. “Harley sempre vem com uma coisa nova pra provocar, você já não sabe? Como você se deixa ficar assim? Precisa melhorar. Seus Pokémons estão te esperando. Não se deixe abater, é isso o que ele mais quer. Pense.”

Uma onda bateu bem forte contra a areia. A água veio até debaixo de onde ela estava e a areia a arrastou um pouco pra frente.

“Não se preocupa, ele vai te dar outra”; “ele vai gritar de novo com você”, as palavras exatas que Harley dissera já haviam se esvaído em sua mente, mas a essência delas voltou à tona.

“Drew! É sobre o Drew! É isso!”, May corou ali mesmo, sozinha, por causa da própria conclusão.

Bem quando ela estava progressivamente se entregando sem reservas àquela paixão, Harley trouxe à memória a ocasião que tinha pegado May de surpresa no último Grande Festival: “Eu não sou mole como você!”, Drew gritou com ela na época. E ela ficou sem reação por simplesmente não esperar aquilo dele. E mais, naquela época, ela não estava, da mesma forma, se entregando sem reservas à paixão também? Aquele grito a quebrou totalmente.

Antes, estava sendo toda gentil com o Drew porque estava enamorada dele e tinha uma esperança platônica de que ele também estivesse dela. Depois, se sentiu uma idiota por considerar aquela esperança e teve certeza de que era tudo coisa da sua cabeça. Uma certeza que se abalou todas as vezes em que ele sorriu pra ela depois daquilo até ela chegar naquele ponto: totalmente enamorada outra vez.

“Bem, tenho que admitir então que tinha a ver com a rosa afinal. Mas não com a ‘mera perda de uma rosa’ e sim com o que aquela rosa representava. Essas rosas do Drew não representam outra coisa, senão o nosso relacionamento. As primeiras não tinham valor mesmo: eram fruto de mera provocação. Mas essa… acho que essa representava algo mais… essa era valiosa em relação às outras e por isso eu a estava guardando…”.

“Harley acabou por trazer um dos meus medos à tona, e devo admitir que encará-lo antes da hora é até bom pra mim: ‘e se o Drew der pra trás e eu ficar sozinha nisso?’”

“Eu não quero! Eu não quero que isso aconteça. Mas e se acontecer? O Drew é, com certeza, mais focado na carreira do que eu (é nele que eu me inspiro, afinal). Ele parece estar apaix-, … , gos-, … , estar na minha. Boa expressão! Ele parece estar na minha agora, mas ele pode só estar aproveitando esse sentimento bom do momento e daqui a pouco cansar. E eu? E se eu estiver apaixonada ainda? Como eu fico?”

Um pouco triste, de cabeça baixa, May deixou-se mentalizar o rosto de Drew. Eram várias versões diferentes. “Você não vai embora do nada, não é? Você não faria isso, né?”.

Infelizmente, a menos que você mesmo coloque as palavras na boca delas, imaginações não respondem por si mesmas sozinhas. Então May começou a fazer considerações sobre as posturas de Drew, principalmente as últimas. E suas memórias, em especial as do dia anterior, deixaram-na exultante. May sorriu e acabou por interromper sua investigação.

“É, Drew... acho que na seara do amor, antes da declaração, ninguém pode ter certeza, não é? Então eu vou só confiar em você... e acho que você não vai me decepcionar. Sim, você não ia querer me fazer chorar”.

Estava se sentindo bem melhor. Só então percebeu que antes o seu corpo estava todo tenso e agora tinha voltado ao normal. Ela levantou-se sorridente, deu uma última olhada no mar e virou-se.

— Vamos lá, Beautifly!

— Beautifly!

— Beautifly, vamos dar uma volta nessa vila antes de começarmos a treinar — disse-lhe confiante.

— Beautifly! — o Pokémon assentiu.

Ela caminhou reto pela rua principal da vila, uma rua de terra com velhas casas de madeira ao entorno. Estava tudo silencioso exceto pelo barulho das donas de casa em seus afazeres, a voz de algumas crianças brincando e os sons dos Pokémons que habitavam cada casa.

Já longe das residências, a rua subia e terminava em um campinho que ao fundo tinha uma praça. Um lugar simples com umas árvores antigas, não tão bem cuidadas, um escorregador para crianças, dois balanços e uns cinco bancos de praça apenas. Num desses bancos havia um jovem casal de mãos dadas, o qual, sem disfarçar, já parecia estar com os olhos fitos nela antes mesmo dela perceber. Eram pessoas simples, pareciam surpresos com a presença dela ali. Bem, talvez ela estivesse atrapalhando o namoro. May sorriu-lhes fechando os olhos, deu meia pirueta e pôs-se no caminho de volta. Foi quando os ouviu aos sussurros.

— Ela está com um Beautifly, deve ser ela mesma! — disse o rapaz.

— Mas e se não for?

— Eu vou perguntar.

— Não!!

O rapaz se levantou e veio atrás de May.

— Com licença. — ele esperou até que ela se virasse — Você, por acaso, é May da cidade de Petalburg, a coordenadora Pokémon?

— Sim, sou eu mesma — respondeu meio tímida, mas buscando ser simpática.

— Isso é ótimo! Minha esposa, Penélope, é uma de suas grandes fãs. Se importaria em falar com ela por alguns minutos?

— Claro que não!

Penélope esperava envergonhada no banco. Usava um vestido simples e um chapéu de palha com flores amarradas. Quando viu May se aproximar, ela se levantou e com as mãos baixas e juntas, ela se curvou levemente dizendo:

— É um prazer conhecer você, senhorita May.

— Não, por favor, — May acenava com as duas mãos diante de si em negação — me chame só de May!

— Mas olha só que surpresa! — o rapaz começou a dizer — Parece que vocês duas compartilham uma peculiaridade: são duas menininhas tímidas! — ele dizia na esperança de deixá-las mais à vontade — Você não parece tão tímida quando está no palco, May — ele acrescentou olhando para ela.

— Tem razão! — ela admitiu — Na verdade, eu não sou tímida na maior parte do tempo, e no palco em especial, você precisa garantir sua autoestima em primeiro lugar para manter seus Pokémons confiantes. É que… eu até tenho alguns fãs, mas não falo com muitos… — com efeito, May não sabia muito bem porque estava tímida.

— Entendi: pessoas que ficam sem saber lidar com elogios. — dizia o rapaz — Bem mocinha, quando fazemos algo muito bem, somos parabenizados por isso, mas não há nada de espetaculoso nesse ato. Tornar um elogio muito pequeno, não é bom, da mesma forma que tornar um elogio muito grande, também não é bom. Elogios estão lá para serem aproveitados na medida certa, foi você mesma quem disse que é preciso manter a autoestima, não é? Então aproveite bem seus elogios.

As palavras daquele cara eram boas!

— Bem, sim! Você está certo! Vou me lembrar desse conselho! — May respondeu, já sentia-se mais à vontade.

O rapaz passou o braço em volta do ombro da esposa, ela olhou gentilmente para ele.

— Já a Penélope aqui é tímida o tempo todo! É o jeitinho dela de ser, mas eu não deixo que ela se prejudique em nada por causa disso, não é, amor?

— É sim! — Penélope respondeu meiga, ela falava muito baixo.

— Já sei! — o rapaz continuava tentando fazer Penélope se soltar — Por que não convidamos a May para tomar um café lá em casa? Lá você pode mostrar sua “Coleção May” de recortes de jornal e revista a ela!

Penélope corou.

— Rafael! — repreendeu com sua vozinha tímida.

— Eu adoraria! Se você tem uma coleção de fotos minhas, eu adoraria ver! — May concordou enfaticamente, também tentando fazer Penélope se sentir à vontade.

Penélope não disse nada a princípio, mas a reação em seu rosto era de surpresa.

— Certo. Tudo bem! — concordou por fim.

— Então vocês dois são casados? — May perguntou assentada à mesa — Vocês parecem tão jovens para isso.

— Nos casamos há uma semana. — Rafael respondeu — Tem pouco tempo.

— Uau! Uma semana? Mais vocês não deviam estar em lua de mel ou coisa assim?

Rafael riu.

— Nem todo mundo tem tempo para essas coisas, May. — disse, estendendo-lhe um copo d’água e assentando-se também em seguida.

— Obrigada! — May agradeceu antes de beber.

May reparou que a casa deles tinha um estilo bem rústico: toda em madeira, pequenininha, poucos utensílios e móveis. “Eles têm um gosto curioso!”, pensou.

Penélope veio do que provavelmente era o quarto do casal com uma caixa de papelão em mãos. Ela a colocou em cima da mesa, retirou os papéis de dentro e os pôs a frente de May, a qual começou a folheá-los.

Tinha tanta coisa sobre ela! E desde o início da carreira! Tinha uma foto dela e de Beautifly em seu primeiro torneio, uma reportagem de revista sobre seu “desempenho de sorte” no torneio de Verdanturf, uma caricatura dela e do Harley no torneio de Purika (da qual May não gostou nem um pouquinho), uma foto de jornal dela com todo o fã clube de mães da cidade de Rubello, outra reportagem que tinha como foto ela e o Skitty na apresentação do Grande Festival de Hoenn, uma outra reportagem que mostrava ela e Combusken na apresentação de primeiro round do torneio de Mulberry com a manchete “Do Charme à Robustez: pretende a princesinha de Hoenn dominar vários estilos, ou é apenas a sua inerente confusão batendo à porta de novo?”.

Mesmo ficando meio avessa com coisas como a charge e aquela última manchete, a reação de May não poderia ser outra:

— Nossa! Acho que nem a minha mãe tem uma coleção tão vasta assim! Tem coisa aqui que eu nunca tinha visto!

A coleção tinha mais coisas. May inclusive notou que algumas fotos e reportagens estavam repetidas. Geralmente as repetidas apareciam primeiro numa versão em que o papel estava perfeito e, algumas folhas depois, vinha uma mesma versão daquela foto em papel mais velho.

— Tem coisa repetida! — Penélope quis diminuir os próprios esforços — Quando eu encontro uma foto em melhor qualidade, eu trago pra casa, mas acabo esquecendo de parar para procurar a antiga e jogar fora.

— É mentira! — interrompeu o marido — Ela está sempre remexendo nisso! O motivo pelo qual não joga fora as fotos mais velhas é porque quer guardar todas as versões.

Penélope deu-lhe aquele olhar suplicante que dizia “Rafael!! Não me envergonhe!”; ao que o olhar dele respondia “Relaxa!”.

May continuou folheando os papéis enquanto Penélope preparava o café. Reparando nas bordas das páginas, amante de revistas que era, de repente, ela constatou uma coisa:

— Nossa! Tem revista de tudo quanto é lugar aqui! Kanto, Sinnoh, Unova, Galar. Me espanta que eu tenha saído em revistas de lugares em que nunca fui! Vocês foram até todos esses lugares comprar esses jornais e revistas? Ou vocês encomendaram tudo isso?

Rafael soltou uma gargalhada. Penélope deixou o bule depressa sobre a mesa e olhou na direção dele, desesperada para que ele não abrisse a boca, mas ele abriu:

— Relaxa, querida! — disse à esposa — Tudo isso é uma coisa muito simples, May. — ele se virou para a garota — A Penélope conseguiu esse material todo no nosso trabalho. Nós trabalhamos numa central de reciclagem de papel e uma das nossas funções é separar a papelada por tipo. Um dia, trabalhando, ela se deparou com uma foto sua, e depois outra, e depois outra, … Encantada, ela começou a guardar os recortes de que mais gostava, e aí está!

Penélope estava tensa pela reação da menina. Já estava preocupada porque sua casa não aparentava ser lá essas coisas e agora Rafael ainda revelava assim, de forma tão simples, que eles eram catadores de lixo!? Tudo bem que era só de papel, mas isso não mudava o fato de que era lixo. Sempre confiava cem por cento nas decisões dele, mas em algumas não conseguia deixar de ficar nervosa. O que a menina ia pensar!? Não! Por que ela se importava tanto com isso? Por que se importava com o que uma menininha ia pensar dela?

— Entendi! — May exclamou animada — Então vocês recebem carregamento de papel de todos os continentes! Por isso têm essas revistas que eu nunca vi aqui. Que trabalho legal! Pode viajar o mundo sentado num banco!

May estava com o olhar fito nos papéis.

Rafael deu uma olhadela para a esposa.

Penélope deixou-se ficar parada surpresa por alguns segundos.

Como podia? Aquela menina não achou nada de errado no trabalho dela, aquela única coisa que fez desde pequenininha para que ela e a vó não morressem de fome, em vez disso, ela achou “um trabalho legal”!? Quando voltou o olhar para Rafael, os olhos dele falavam aos dela “eu não disse?”.

May abriu uma folha dobrada.

— Ah, essa colagem aí fui eu que fiz. — disse Rafael — Você e seus sete Pokémons. Eu sempre me esquecia quais Pokémons você tinha, então resolvi colar todos numa folha só pra eu lembrar, e deu certo — ele explicou.

Penélope pôs o café à mesa e um bolo do dia anterior. E não conseguiu deixar de ficar feliz quando a menina elogiou os dois.

— Eu adoro erva-doce, sabia? Qualquer bolo sempre fica melhor quando você coloca erva-doce — May disse.

— É mesmo, é? — duvidou Rafael — Experimenta colocar erva-doce em um bolo de chocolate!

— Bem, eu nunca pensei nisso, mas só se pode descartar uma ideia depois de tentá-la, né?

Eles seguiam comendo e conversando.

— Então, May, — perguntou Rafael — o que te traz à nossa cidade?

— O torneio de amanhã, vocês não estavam sabendo?

— Nem sabia que Amor-Perfeito sediava um torneio Pokémon — disse Penélope, a qual já não estava mais escabreada.

Eles não tinham TV, então tudo de que tinham notícia vinha dos jornais ou de boca em boca, e volta e meia eles perdiam alguma coisa.

— Ei, Penélope, então você gosta de coordenação Pokémon? — começou May — Você pensa em se tornar uma coordenadora Pokémon também? Você já têm algum Pokémon?

O casal se entreolhou e ambos riram.

— Eu não posso pensar em uma jornada Pokémon tão cedo, May. — Penélope respondeu sorrindo e levando uma das mãos à barriga.

Rafael pôs a mão sobre a dela.

— Nos casamos porque Penélope está grávida. Ainda não chegou a três meses de gravidez, é por isso que você não está vendo a barriga.

May, a romântica, ficou extasiada.

— Que lindo! Vocês vão ter um bebê!

— Isso mesmo! — Penélope sorriu.

— Estamos muito animados, vai trazer muita alegria à nossa casa e às nossas vidas — disse Rafael.

“O típico ‘Final Feliz’”, May pensava consigo.

— Obrigada pelo lanche! Estava uma delícia! — May dizia se despedindo deles em frente a sua casa.

— Obrigada a você por ter vindo à nossa casa, May! — disse Penélope.

— Sempre que vier a Amor-Perfeito sinta-se à vontade para nos fazer uma visita. Vai ser um prazer conversar com você de novo — disse Rafael.

— O prazer é todo meu! — disse May — E Penélope, — May resolveu acrescentar — estou feliz de ter passado tempo o suficiente com você para ver o seu sorriso. Você tem um sorriso muito bonito! Tenho certeza de que se mostrar ele mais vezes para o mundo, vai perder todos os motivos que tem para ser tímida.

Penélope não conseguiu esconder a expressão de surpresa em sua face.

Eles viram May se afastar e lhe acenaram enquanto ela caminhava de volta para o campinho.

— Foi você que disse a ela, Rafael?

— Não. Em tudo o que conversamos você estava presente. Acho que ela… só recebeu um sopro de boa inspiração no ouvido.

Era uma vez uma moça de dezessete anos muito pobre, seu nome era Penélope. Era trabalhava com lixo, lixo de papel, mas era lixo. Às vezes ela só trabalhava sentada separando papéis, mas, às vezes, mandavam que ela fosse ao lixão da cidade selecionar papéis por lá também. Ela odiava seu emprego, mas era a única coisa que podia fazer, ainda mais agora que a vovó estava doente e não conseguia mais trabalhar. Um dia a moça, separando papéis, deu de cara com um sorriso muito lindo. Era de uma garotinha que não devia ter mais do que doze anos. A garotinha tinha o olhar vivo, determinado e um sorriso que tomava conta de toda a sua face. “Ela é linda!”, Penélope pensou em pura admiração.

Sem dar muita vazão ao lado dela mesma que gritava que ela estava fazendo uma coisa inútil e idiota, Penélope rasgou aquela página e a guardou no vestido até terminar seu dia de trabalho. Em casa, com uma tesoura de costura, ela recortou apenas a foto e a colocou no móvel do quarto.

Tentando entender o que a motivara a fazer isso, percebeu que a foto era uma coisa bonita de se olhar.

Uma coisa bonita para olhar. Era isso que ela queria? Bem, pelo visto sim. A vida estava uma porcaria e com a doença da vó, parecia que as coisas só iam piorar.

Eventualmente ela encontrava mais fotos daquela garota, a Sorridente, e acabava levando para casa também. Um dia, quando estava trabalhando, algo inesperado lhe aconteceu:

— Aqui! — disse uma voz masculina.

Enquanto ela estava de cabeça baixa, com as mãos treinadas separando papéis, mas a cabeça a mil, em um mundo cheio de preocupações com o dia de amanhã, uma mão apareceu entre ela e seu serviço, estendendo-lhe uma foto da Sorridente.

— Percebi que você gosta de colecionar as fotos dela, não sei de já tem essa.

“Colecionar”. Aquilo soou tão fresco, tão fútil. “Colecionar”: o tipo de atividade que só quem tem tempo sobrando na vida deve fazer.

Penélope olhou para cima.

— Quem é você? — perguntava de forma hostil — Eu não conheço você. Não fale com uma pessoa que você não conhece!

— Sou Rafael e nós já fomos apresentados, mas você está presa demais em seu mundinho de lamúria para enxergar as pessoas em volta de você, não é, Penélope, neta da dona Nádia? Eu trabalho aqui há tanto tempo quanto você, sabia?

— Hum, que seja! — ela virou o rosto — Não me confunda com uma garotinha fútil que faz coleções. Gente pobre como a gente nasceu sem o direito de fazer isso.

— Isso não é verdade! E pensar assim deve ser o motivo dessa sua cara fechada o tempo todo. Quem te olha de fora tem a impressão de que você está sempre encarando um dia de chuva. Está sempre chovendo aí dentro de você, Penélope?

— Hum! — ela virou o rosto para o outro lado.

— Sabe, seu apelido entre o pessoal é “Mudinha”, porque você nunca fala nada com ninguém. Mas eu disse a eles: “Tenho certeza de que já ouvi ela falar antes”.

— Você é quem devia falar menos e trabalhar mais. A qualquer momento algum fiscal vai nos ver aqui e nos dar uma dura.

— Pode ser. Mas então, eu devo levar isso comigo?

Penélope olhou para a foto. Era uma que ela não tinha ainda. Quis pegar, mas a ideia de que aquilo era fresco, fútil, muito fútil martelava em sua mente. Era culpa dela ser reconhecida como uma pessoa assim. Ninguém mandou começar a guardar aquelas fotos. O mais certo a se fazer era chegar em casa e jogar a dita “coleção” toda no lixo.

— Você quer! — Rafael lançou a foto na direção do colo da moça — Então pegue! É bem simples.

Penélope olhou na direção da foto, a pegou e depois olhou para cima novamente.

— Lembra quando você era mais nova, e antes do dia de trabalho começar você corria para a praia para ver o nascer do sol e antes dele terminar você fazia o mesmo para não perder o pôr do sol? Nós somos todos assim, Penélope, estamos sempre procurando uma coisa bonita para se olhar. Se essa coisa para você agora são as fotos dessa garota, então se agarre a isso e as aprecie sem se envergonhar. Por que razão privar-se das coisas de que mais gostamos nos faria mais felizes? Não há nem sentido nisso.

Rafael se virou para ir embora.

— Ei! — Penélope chamou — Em parte eu olho para o sorriso dela e vejo nela alguém que eu queria ser; eu queria poder sorrir assim; mas por outro lado eu fico com raiva porque eu não tenho porquê sorrir assim, e ela tem. E me vejo perdida num misto de admiração e inveja. Às vezes fico com tanta raiva por o mundo ser tão injusto que é como se ela própria fosse o motivo de eu estar nessa droga de situação, porque existe gente muito rica e gente muito pobre.

— Essa menina não parece rica. — Rafael se virou de volta — É que diante de paupérrimos como nós, qualquer um deve parecer endinheirado. Além disso, ela não tem culpa nenhuma sobre o que acontece com você ou comigo. Que bom que ela parece ter nascido em condições melhores que as nossas, não é? Se o sorriso dela te inspira, só siga essa inspiração. Você não precisa se lamentar porque não tem a vida dela, você pode fazer da sua própria vida uma vida feliz. Se o mero sorriso dela já te der vontade de sorrir, isso não é um motivo na sua própria vida pra sorrir?

Penélope fitou a foto.

— Bem, sim!

— Pois então! Eu sei que a falta de dinheiro está cavando buracos nos corações das famílias desse vilarejo há muito tempo. Mas se você olhar bem, Penélope, vai ver que não foi a falta de dinheiro que tirou o sorriso do seu rosto, foi essa nuvem de temporal que você insiste em carregar sobre a sua cabeça aonde vai.

Ele fez uma pausa. Seu olhar era gentil para com ela.

— Quando se está em uma situação difícil, sobre a qual você não tem controle, precisa se agarrar àquilo que esteja ao seu redor que represente para você o que de melhor há na vida. Então, que bom que um dia você esbarrou com uma das fotos dessa garota, Penélope.

Penélope olhou para a foto de novo..

— Sabe, tão mistos eram os meus sentimentos que eu fiz questão de nunca ler qual era o nome dessa garota.

— May. O nome dela é May.

— May…

— Bem, agora eu já vou indo — Rafael se virou.

— Espera! Obrigada. Pela foto.

— De nada.

— E obrigada por ter feito questão de me dizer essas coisas também. Você fez muita questão…

— Ah, isso é porque — Rafael virou o rosto de volta — você é uma coisa bonita de se ver pra mim.

Ao terminar de falar, ele voltou a caminhar e foi embora. E Penélope soube que só poderia conversar com ele de novo se o procurasse, e com um sorriso no rosto.

Voltando ao presente, o marido abraçado à esposa comentava:

— Então, a menina do sorriso bonito, acha o seu sorriso bonito. Que grata surpresa, não?

— Nunca achei que a encontraria na vida. Ela, e você, foram superimportantes pra eu me reerguer.

— E ela é bem simpática! O que você achou?

— Sim, ela é bem legal. Ela é toda a animação inocente que seu sorriso transmite.

— Bem, acho que temos um torneio para assistir amanhã!

— Mas, você já faltou o trabalho hoje porque eu estava enjoada de manhã. Vai faltar amanhã de novo? Além disso, ingressos de torneio Pokémon devem ser caros… não vão desfalcar o dinheiro das nossas despesas?

— Não vai desfalcar tanto assim. Eu vou lá falar com o chefe pela manhã, vou fazer serão pra compensar essas horas. O trabalho ainda vai estar lá depois, mas a oportunidade de assistir a May ao vivo, você só vai ter amanhã. E aposto que não vai querer perder, vai?

— É… Com certeza não.

“Obrigada por ter me dito isso, May. Agora eu vou me concentrar em fazer com que o meu sorriso seja para o meu marido e para o meu bebê o que o seu foi pra mim um dia: algo bonito de se ver para renovar a esperança de viver”, Penélope se despedia em pensamento.

May chegou de novo àquela praça e logo chamou Beautifly e Blaziken pra fora.

— Agora falta pouco para o entardecer, pessoal, mas vamos aproveitar esse tempo! Venha aqui, Beautifly! — May estendeu o braço para o Pokémon pousar.

— Beautifly!

— Beautifly, eu estive pensando e não acho que será lá muito prudente a gente usar o seu Psíquico na apresentação de amanhã.

— Beautifly! — o Pokémon lamentou.

— Mas não fica triste! Nós vamos treinar bastante, e assim que o seu Psíquico estiver afiado tenho a certeza de que a gente vai ter oportunidade de usar ele o tempo todo. Vai ser ótimo!

— Beautifly! — o Pokémon saltou do braço de May e, batendo asas, se animou.

— Muito bem! Vamos repassar a rotina da apresentação de amanhã e montar a finalização.

May pegou a caderneta de novo, cogitou alguns finais, testou, escolheu o melhor e passou a rotina toda a limpo. Nisso o sol já se punha. Depois ela, Blaziken e Beautifly repetiram a sequência do início ao fim três vezes, sendo que nas duas últimas ela saiu perfeita, exatamente como o planejado.

— É isso aí! Basta mantermos isso amanhã, pessoal! E vamos deixar a plateia e os juízes de queixo caído! Quem está comigo?

— Beautifly!

— Blaziken!

— Agora é hora de praticarmos alguma batalha.

Ela chamou o resto do time para fora, formou duplas, fez com que Blaziken e Beautifly praticassem algumas evasivas específicas, alguns ataques específicos. Por fim, parabenizou a todos e os chamou de volta.

“Agora o que está feito, está feito.”, ela concluía com as seis Pokébolas em suas mãos, “O treino termina aqui e os resultados de amanhã vão dizer se atingimos o nosso objetivo ou não”.

— Sabe, as luzes que eu vi da praia são um sinal por si só de que você não precisa estar tão preocupada assim.

Aquela voz…

May virou-se.

Em sua mão direita, uma rosa;

em seu rosto, um sorriso;

em seus olhos, confiança.

Ele estava lá, a poucos metros dela, como quem vinha da rua do vilarejo.

— Drew! — ela correu, sem hesitar, em sua direção.

Estava feliz em revê-lo. Sua presença... era como se estivesse ansiando por ela. E agora que ele tinha chegado, sentia tamanho…

alívio?

Sim, era o que era!

— Uma rosa, você me trouxe mais uma rosa! — ela se lançou a pegar a flor.

Aquela reação pegou Drew de surpresa e o desestabilizou de sua pose, a pose de quem está no controle de toda a situação. No ímpeto de cumprir a cena até o final como planejara, Drew reteve a rosa.

— Me dá! Você trouxe pra mim, não trouxe? — ela pediu como uma criança pequena.

Drew já tinha se estabilizado e, já sorrindo, iria explicar, como o cavalheiro motejador que é, que existia um protocolo entre eles dois no qual ele vem com a rosa e ela espera resignadamente até o momento de pegá-la. Todavia ele reparou algo de estranho em sua expressão quando olhou em seu rosto. Ela estava sorrindo, mas…

— May, — ele soltou a rosa — você está chorando?

May finalmente pegou a rosa e, feliz que estava, deu uma pirueta e parou encantada olhando para ela. Foi só aí que percebeu que Drew dissera alguma coisa e, dirigindo o olhar a ele, veio a processar as palavras. Foi quando, surpresa, verificou que era verdade.

— Só estou lacrimejando — se defendeu baixando o olhar à rosa e virando um pouco o rosto. Piscando, ela tentava conter as lágrimas.

— Mesmo assim...

Drew considerou por alguns segundos. Não era emoção pelo momento, ou, pelo menos, não era só isso. Ela estava escondendo alguma coisa.

— O que aconteceu, May?

Ela virou ainda mais o rosto.

— Só fiquei feliz… — disse baixinho.

— May… — ele deu um passo a frente e com a ponta dos dedos ergueu um pouco seu rosto até que ela tivesse de olhar pra ele — Deixa eu adivinhar. Harley? Drica?

— Bem, — seu olhar era afável — na verdade, eu conversei um pouco com a sua irmã hoje e, diferente do que parecia, ela é bem legal.

— Ah, então vocês são amiguinhas agora? — ele baixou o braço, levando as mãos de volta aos bolsos.

— Bem, sim!

— Então, foi o Harley?

Ela desviou o olhar de novo.

— May, não esconda!

Ela olhou para ele de novo, mas teve de desviar o olhar para começar a falar.

— É uma coisa bem boba da minha parte, na verdade. — ela começou — Aquela rosa... aquela rosa que você me deu ontem, o Harley pegou quando eu estava distraída e amassou na minha frente. Eu... não é que eu pretendesse guardar ela pra sempre, mas também ainda não ia jogar fora. Então, tê-la tirada de mim assim… eu não gostei! — admitiu — Mas agora que tenho esta, — ela levantou a nova rosa — está tudo bem de novo! — na última frase ela deu uma sincera ênfase na animação e lhe sorriu — Então, obrigada!

Por fora Drew apenas sorriu e disse:

— Que bom que está bem de novo, May.

Por dentro, pensava novamente como Harley era o tipo de pessoa inconveniente que não tem limites e faz o que bem entende. Se pegou pensando de novo em um jeito de pará-lo. Bem, agora seria mais fácil do que antes.

— Mas não é bobagem sua, May. — ele começou a caminhar de um lado pro outro — Sabe o que eu encontrei num dos diários da Drica uma vez?

— Ei! Você não devia mexer nos diários da sua irmã!

Ele parou por um segundo.

— Eu sou um irmão mais novo, — jogou o cabelo — é isso o que eu faço! — voltou a andar — Quer saber, ou não quer? — ele provocou — Se não quiser eu não conto.

May pensou em resistir, mas…

— Conta!

— Uma flor seca guardada entre as páginas com o dizer “Aquela flor que a pessoa H me deu”.

— E você acha que o H é de Harley? — perguntou surpresa.

— De acordo com o que a Solidad disse ontem, quase certeza de que sim. Em outras palavras, May, Harley sabe muito bem quais botões está apertando em você pra mexer com as suas emoções — Drew percebeu que em sua fala estava abrindo seus pensamentos sobre ela um pouco demais, então resolveu fechá-la apenas com um — Então toma cuidado, tá?

— Tá bom! — ela sorriu, fechando os olhos. Parecia realmente contente com a rosa em suas mãos.

— Agora, eu não sei você, mas eu comi muito pouco hoje, então vou pro centro daquela cidade devorar alguma coisa e… aposto que um certo alguém vai querer me fazer companhia nisso.

Os olhos de May, dantes brilhando de amor, agora brilhavam de gula.

Drew e May levariam cerca de uma hora de caminhada de onde estavam até o centro da cidade. Mas sabe como é, não é? Você nunca sente o tempo passar quando está fazendo uma coisa que gosta, ou quando está com uma pessoa que gosta…

A maior parte do tempo a praia esteve vazia. As pessoas só começaram a aparecer quando estavam bem próximos ao centro.

— Ih, olha lá! — Drew apontou com os olhos.

May olhou. Eram Solidad e Drica. Elas estavam tirando fotos pela praia e parecia ser alguma brincadeira porque uma corria, a outra a pegava e batiam uma foto, depois a outra corria, a primeira pegava e batiam outra foto. Era como um pique-tá de fotos.

— Honestamente, a minha irmã consegue infectar qualquer um com essas suas manias, até a Solidad. Elas parecem duas garotinhas bobas! Vamos, May! — ele começou a caminhar animado na direção delas.

May foi atrás, sentindo que algo de errado não estava certo. Foi então que reparou que normalmente, em matéria de afronta, ela estaria no outro time, sendo atacada pelo Drew e não na retaguarda dele.

— Vencer você amanhã por falta de dedicação da sua parte não vai ter tanto apelo, Solidad. Devia revisar suas companhias.

— Drew! — elas disseram juntas quando o viram.

May vinha um pouco atrás, então elas não a avistaram logo de cara.

— Drew, — Drica vinha correndo — você precisa urgente ir ver a... — nesse momento ela a avistou — Aaaaaah! — ela freou — Vocês já estavam juntos… — caçoou.

— A- a gente acabou de se encontrar! — May chegou se defendendo com os ombros encolhidos e sua rosa junto ao peito.

— Você deu outra pra ela! — dois corações apareceram no lugar dos olhos de Drica enquanto ela colocou as mãos juntas logo abaixo do queixo — Que amor!

Drew olhou para May com um olhar interrogativo.

— Ah, elas estavam comigo quando o Harley fez aquilo. — explicou brevemente.

— Ah, sim! Que seja! — ele jogou o cabelo, perto de Drica, Drew falava com um desdém propositado — E não precisa ficar se explicando pra Drica, o que ela pensa ou deixa de pensar simplesmente não importa.

Drica derreteu em uma poça d’água e evaporou furiosa, como um vulcão em erupção.

— Escuta aqui, seu pirralho maldito! Eu sou sua irmã mais velha e já tá na hora de você me respeitar.

— “Você é minha irmã mais velha e é burra como uma porta”, é a única verdade que consigo tirar disso.

Aquilo deixou ela tão irritada.

— Aaaaaaahhhhhh! — deixou-se cair de joelhos antes de começar a esbravejar de forma pirracenta. Drew se divertia em sua brincadeira preferida.

“Sabe, tô começando a achar que eu e a Drica somos muito parecidas”, May pensou, “Drew consegue irritar a gente tão facilmente, e do exato mesmo jeito.”.

— Olha só quem volto-ou! — de repente a voz cantarolante ressoou em sua orelha esquerda.

— Aaaaaaaahhhhhh! — no susto, May deu um giga salto para trás. Até esbarrou em Drew.

— Harley, não acredito que você ficou esperando ela voltar mesmo! — repreendeu Solidad.

— Não acreditou porque não quis, eu falei que ia fazer. E vejam só, devíamos ter apostado dinheiro mesmo: eles voltaram juntos. Eu ia ganhar.

— Como que você ia ganhar, se nós três achávamos que eles iam se encontrar ainda essa noite? — descrente, Drica, sentada em “W” no chão, perguntou.

— Harley sempre vence, Drica querida. Isso é só um detalhe. E você, querida May? Parece que a princesinha já teve de requisitar a presença de seu mosqueteiro mais fiel. Diga-me, May, você não fez com que o Drew fizesse juras de amor eterno excessivas depois daquilo, fez?

De raiva, May apertou a rosa firme em sua mão.

“As dúvidas que eu senti de tarde!”, May logo entendeu, “Ele fez aquilo de propósito! Não acredito que caí…”

Drew deu um passo a frente, colocando May sutilmente paratrás de si.

— Imaginei mesmo que te encontraria por aqui, Harley, rondando a minha irmã, que nem um cão sarnento suplicando por comida, ou por carinho.

Harley não gostou nem um pouquinho daquilo.

— Acho que está me entendendo mal, querido Drew.

— Eu tô te entendendo muito bem. Só tenho uma coisa pra te dizer: você não mexe com as minhas rosas e eu não mexo com as suas violetas secas, as quais, hoje em dia, devem ser muito importantes pra você, Harley, já que você virou história. — antes que Harley pudesse dizer qualquer coisa, ele emendou — E agora, — ele pegou May pela mão — nós estamos muito atrasados, — e começou a correr — atrasados pra parar de perder tempo com você! — gritou olhando para trás.

Mesmo pega de surpresa, May veio no embalo sem tropeçar. “Boa menina”, Drew lhe sorriu.

Estavam fugindo? May considerava fitando o rosto sorridente de Drew. Não, não sentia como se estivessem fugindo. Estavam sendo livres, só isso. A garota que em sua outra mão deixava sua rosa balançar ao vento sorriu de volta.

— Aaah! — Drica começou a zoar do chão onde estava mesmo — Esse lance já está bem mais avançado do que eu pensei.

“Então Drew acha que se jogar o jogo do ‘Eu não tenho vergonha do nosso namoro’ vai neutralizar as minhas armas, hein?”, Harley considerava em silêncio, de braços cruzados, enquanto fitava o casalzinho tonto, “Pois fique sabendo, moleque, que com Harley é toma lá, dá cá. E não existe um nível seguro pra você bater que vai me deixar constrangidinho demais para agir. Está tudo indo muito bem com a Atrevida, não é? Aproveite bem esse tempo, porque pode não ser hoje, nem amanhã, mas um dia eu vou fazer vocês dois se desentenderem e você vai sentir na pele o que é ter os olhinhos mais brilhantes do seu mundo te olhando com tanta raiva. Não devia ter atiçado o Harley, moleque, agora você é mais um cuja queda eu mal posso esperar pra ver”.

Virando a esquina, May soltou uma risadinha.

— Pra onde estamos indo?

— Não quer correr o risco de esbarrar com o Harley daqui a meia hora de novo, quer?

— Não!

— Então aposto que vai gostar da minha ideia.

— Que ideia?

Foi Drew quem abriu a porta e ligou o interruptor de luzes. Quando elas se acenderam, May, com as caixas de pizza em suas mãos, não pôde exclamar outra coisa senão:

— Uau!

O quarto em que Drew estava hospedado tinha a parede da frente totalmente composta por uma porta balcão de vidro que dava para uma varanda. E dali de onde estava, May já podia aferir que a vista era linda.

— Legal, né? — ele perguntou pomposo. Trancando a porta, acrescentou — Pronto, livres de Harley pelas próximas horas! Ninguém vai perder o apetite durante a refeição.

— Posso ir na varanda? — ela pediu animada, pondo logo as caixas de pizza sobre o que parecia ser o balcão da cozinha.

— Vá em frente.

May destravou a porta e logo se apressou em debruçar-se sobre o parapeito e admirar a vista. Dali de cima ela podia ver boa parte da cidade, a praia, a imensidão do mar.

— Pra lá fica, New Bark — Drew, que vinha logo atrás dela, apontou para a esquerda.

— Você tá certo! Isso quer dizer que pra lá é a cidade de Cherrygrove — May apontou para a direita.

— Isso mesmo! Segundo o calendário, vai ter um torneio lá na semana que vem.

— Significa que lá é a próxima parada? — May levantou uma das sobrancelhas.

— É… — Drew jogou o cabelo, estranhamente não tão confiante — Isso se eu tiver um bom resultado amanhã.

— Como assim? O Drew que eu conhecia não cogitaria outra coisa senão vencer ou vencer.

— Deixemos o “Drew” pra lá! Temos pizzas para comer, mas antes...

Drew lançou três Pokébolas.

— Fly!

— Raaaaaaain!

— Freeeeeeeee!

Flygon, Masquerain e Butterfree se juntaram a eles

— Eles três são a razão pela qual sempre opto por andares altos. E é por causa do Flygon que pego quartos tão espaçosos.

— Ah, faz sentido! — May estendeu a mão para acariciar Flygon — Não tinha pensado nisso! Com um Pokémon tão grande você precisa se preocupar em dobro com o bem-estar dele.

— Me diz uma coisa, May. Desprevenida do jeito que você é, ainda não teve nenhuma situação em que queria soltar seu Blaziken mas não teve como? — ele provocou.

— Ei!

— Viu? O velho Drew passa bem, até te mandou um “oi!” — de braços cruzados contra o parapeito, ele soava tanto satírico quanto amigável.

— Drew, seu… — May balançou a cabeça em reprovação, apenas para não passar batido — Não, não teve.

— Blaziken é seu primeiro Pokémon grande. — agora ele estava só comentando mesmo — Todos os outros são menores que você.

— Verdade! Eu não tinha reparado nisso também.

— Ei, pessoal! — Drew agora se dirigia aos Pokémons. — Eu sei que querem dar uma volta. Podem ir. Só não se deixem levar pelo espírito livre do Butterfree outra vez, fiquem por perto.

Os Pokémons concordaram e saíram.

— Uh! — May aproveitou-se da brecha — Parece que o Sr. Perfeito tem tido problemas com a disciplina de seus Pokémons…

Drew não deixou por menos.

— Usando de provocação como estratégia de defesa, May? — ele jogou o cabelo — Pelo visto eu deixei alguém um tanto cismada…

— Ei!

Não era justo! Como Drew conseguia conduzir a conversa de modo a sempre sair por cima?

— Têm poucos meses desde que o Butterfree evoluiu e ganhou as suas asas. Agora ele quer usá-las o máximo que pode, só que às vezes ele vai mais longe do que devia… E, sim, eu já devia tê-lo feito parar. O velho “Drew” ficaria decepcionado comigo, só que agora tô tentando ser mais brando com ele do que eu normalmente seria. Espero que dê certo logo, não quero ter que dar um chá de Pokébola nele.

— Mas que maldade! Vai deixar ele sair só pra se alimentar!?

— Quando a disciplina das palavras não é útil, a disciplina da força faz-se necessária. Mas em vez de ficar discutindo sobre esses pontos em que a gente discorda totalmente, por que não chamamos o resto dos nossos Pokémons pra gente poder dar a ração deles e finalmente comer?

Drew, de onde estava mesmo, lançou as Pokébolas restantes.

— Rose-rade!

— Ab-sol!

— É uma boa ideia! — May concordou alegre.

Em seguida, correu até o meio do quarto para lançar as suas Pokébolas todas de uma vez, mas foi interrompida pela curiosidade de um certo felino.

— Absol? — ela disse ao se deparar com o belo Pokémon de pêlo branco que se impunha em sua frente, interrompendo seus passos e…

farejando-a?

— O que tá fazendo, Absol!? — Roserade perguntava.

— É mesmo aquela humana da outra vez? A humana que o mestre quer fazer de fêmea? A pele dela está diferente! — ele dizia enquanto farejava May.

— Ah, isso não é pele! Os humanos jogam essa coisa por cima da pele, e, às vezes, eles trocam, daí muda de cor. Levei tantos sustos antes de entender isso… Achava que era um golpe deles, um de camuflagem.

— Humanos estranhos!

O conceito de roupa não fazia sentido para a maioria dos Pokémons. Talvez fizesse para aqueles cujos treinadores vivem colocando roupinhas para enfeitar, mas não era esse o caso.

— Tudo bem aí, May? — Drew se aproximou.

Drew estranhara aquilo: o Absol nunca tinha saído farejando ninguém antes. Percebera que May a princípio se assustara, mas agora parecia à vontade. Tinha até se abaixado para tentar lhe fazer carinho. Coisa em que não fora muito bem-sucedida porque o Pokémon começou a farejar-lhe a mão…

— Tudo ótimo!

— Se quiser eu chamo ele de volta para a Pokébola.

— Não tem necessidade! O Absol só está me conhecendo melhor, não é mesmo, Absol?

Como o Pokémon não a deixava fazer carinho, May se levantou de novo.

— Ei! — disse Absol — Eu ainda não farejei sua face o suficiente — ele se preparou para pular.

— Absol, não! — Roserade tentou avisar.

Tarde demais. Como se desse um bote, o Pokémon voou com as duas patas em cima de May e retomou o farejamento, agora no rosto da humana.

— Absol, o que tá fazendo!? — Roserade perguntou alarmada.

— Olha, Roserade! Essa diferença vocês não tinham notado: as fêmeas têm almofadinhas na frente do busto, e são fofinhas! — ele apalpou com uma das patas.

— Tira as patas daí!!! — Roserade ordenou com veemência.

— Anh? — Absol ficou sem entender a urgência na voz dela. Antes que cogitasse descer, sentiu a energia da Humansfera o puxar de volta.

— Já chega! Pokébola pra você! — Drew disse fitando a Pokébola dele — Me desculpe por isso, May. Está tudo bem?

— Ah, sim! — ela disse meio sem jeito — Só me pegou desprevenida! Mas ele nem sabia o que estava fazendo! Você não devia tê-lo recolhido. Traga ele de volta e vamos explicar a ele.

— Sim, parece necessário. Mas eu começo.

Drew virou-se de costas e jogou a Pokébola, de modo que ele ficou entre Absol e May. Ao sair da Pokébola, Absol se sentou com jeito de que sabia que tinha feito algo de errado, só não sabia o quê.

— Absol, você fez algo extremamente ofensivo para a May…

— Pode tirar o “extremamente” e deixar só o “ofensivo”? — May interrompeu.

— Não faz diferença! Ele não vai entender as palavras mesmo, só o ímpeto da minha intenção.

— Então pode ter o ímpeto de ser menos severo com ele?

— Espera aí, May! Espera a sua vez! Absol, — Drew voltou a se dirigir ao Pokémon — você fez algo inadmissível, é uma ofensa para uma garota, apenas pessoas de mal coração fariam isso. Então quero que vá lá e peça desculpas agora mesmo! E não torne a fazer isso com nenhuma garota!

Drew deu um passo para o lado, liberando o caminho entre Absol e May.

Absol sabia como pedir desculpas: veio de mansinho em direção a ela de cabeça abaixada com um olhar submisso.

May se abaixou também e começou a lhe fazer carinho suavemente no pelo do pescoço.

— Está tudo bem! Eu sei que você não fez por mal! Não estou com raiva — ela dizia gentilmente — Vamos ser amigos, tá?

O carinho dela era tão macio e demorado…

— Roserade — Absol cochichou.

— Sim.

— Acho que eu quero ser treinado por uma fêmea a partir de agora. Se todas forem dóceis assim, posso servi-las até o fim do mundo…

— Seu… seu... traidor! — Roserade se ofendeu de fato — Isso é uma falta de respeito para com o Mestre! Seu calhorda!

— Diga o que quiser! Eu não quero que ela pare com isso tão cedo!

Absol se jogou no chão e deixou May fazer carinho na sua barriga.

— Ei, ele nunca fez isso comigo! — observou Drew, abaixando-se ao lado dela.

— Bem, vamos entender que eu tenho um dom para fazer amizades… — May disse se gabando — Ei, — ela acrescentou — é impressão minha ou eles dois estão se desentendendo?

— Não é impressão sua. Já percebi que desde que chegou o Absol é mestre em gerar atritos com a Roserade. E pelos sentimentos dela, acho que é ele quem provoca.

— Drew! Isso é maravilhoso! — ela brincou — Significa que você achou um Pokémon igualzinho a você! — May riu ao final da fala.

Drew prendeu a princípio o sorriso com os lábios, mas acabou rindo também.

— Muito boa! Mas agora, Senhorita Simpatia, o que acha de voltarmos a nos concentrar em comer?

— Comer, comer! — May comemorou cantarolando.

Ela soltou seus Pokémons e em seguida May e Drew começaram a arrumar as respectivas rações. Como estavam com muita fome, roubaram dois pedaços de pizza das caixas no meio do processo.

Na hora de se sentar para comer, May veio com suas ideias e sugeriu que eles ficassem no limite entre o quarto e a varanda, porque assim aproveitariam tanto o ambiente interior como o exterior ao mesmo tempo. Drew não se opôs. Tinha essa coisa de curtir as ideias dela que ele nunca faria por si mesmo.

Ao colocar o almofadão no chão e se sentar, May olhou bem para as guloseimas a sua frente, pegou uma lata de refri e comentou:

— Eu comecei meu dia com cachorro-quente e tô terminando com pizza e refrigerante, é melhor eu me preocupar em comer coisas mais saudáveis amanhã — ela abriu sua lata.

— Mas isso é normal quando a gente tá focado em alguma atividade, May. Como hoje: um dia de treinamento intenso. É perfeitamente normal cozinhar o mínimo necessário, ou mesmo não cozinhar, para sobrar mais tempo de treino. — ele abriu sua lata também — Desde que não deixe isso virar rotina, acho que não há problema nenhum.

Os dois tomaram um gole de refrigerante.

— É, você está certo.

— Sou Drew, como eu poderia não estar certo? — ele brincou.

— Bem, quando você escolheu Pepsi no lugar de Coca-Cola, pareceu bem errado pra mim.

— É você quem está errada por preferir Coca-Cola, May. O sabor da Pepsi está a ordens de grandeza acima do da Coca-Cola.

“E então, as duas pessoas que não conseguiam concordar nem se o melhor era Coca ou Pepsi, acharam que seria muito boa ideia sentar-se num encontro uma com a outra. Só quero ver onde isso vai parar, May!”.

— Ah, é mesmo, Drew? E quem é que prefere pizza portuguesa à calabresa?

— Nem vem! Você come pizza doce! Até então, quando me ofereciam pizza doce eu pensava “quem é que come essa droga?!”.

— Muita gente come! Eu não sou tão estranha assim! Você não sai muito, sai, Drew?

— Hum… Eu não saio muito, May? Provavelmente eu já fui a mais restaurantes acima de três estrelas do que você sonha em pisar durante toda a sua vida — ele fez inveja.

May chorou rios. Aquilo era… verdade.

— Mas digo assim, você não sai muito pra comer com amigos. Pessoas diferentes de você, que têm costumes diferentes dos seus, até estranhos, mas que depois de tanto ver, você acaba achando normal.

— É, eu raramente faço minhas refeições acompanhado. Então, isso me torna um cara mal, May? — ele mexeu no cabelo — É um dos traços da minha personalidade de vilão?

Ela riu.

— Não. Ou, pelo menos, o jeito com que está sendo um cara mal agora é bem legal.

May ficou vermelha no momento em que terminou de falar. “Eu não devia ter dito uma coisa dessas assim!!”, pensou.

Drew apenas deu um sorriso.

— Então você vai comigo, não vai?

— Anh?

— Numa próxima vez, quando tivermos oportunidade, você vai me acompanhar num desses restaurantes, não vai? Você sabe… já que é minha amiga. Assim eu posso deixar de ser o cara mal. — ele brincou, mordendo um pedaço de pizza logo em seguida.

Só naquela hora May percebeu que, desde o dia anterior, sempre que ela se metia numa situação constrangedora quando eles dois estavam sozinhos, Drew tratava de sorrir como se nada tivesse acontecido e acabava por tirá-la daquele mar de embaraço.

— Ah, sim! Claro que eu vou! — sorriu aliviada. De alguma forma feliz com a nova descoberta. Bem, talvez “informação” fosse uma palavra melhor...

— Bulba-saur! — Bulbassauro veio mexer no joelho de May.

— O que foi, Bulbassauro?

— Bulba! — ela apontou para um canto atrás de May.

Lá estava Beautifly adormecida ao lado de seu pote de comida.

— Beautifly! — May se levantou depressa — O que há de errado com você? — ela pegou Beautifly no colo.

Tão adormecida que estava, Beautifly não despertou.

— Ela deve estar só cansada, não? — Drew disse, levantando-se também.

— É… pode ser. Mas é estranho a Beautifly deixar comida desse jeito... E você, Blaziken? — ela perguntou dirigindo-se ao grandalhão.

— Blaziken — ele respondeu. Já tendo terminado de comer, descansava sentado. Parecia muito sonolento.

— Será que eu forcei vocês dois demais? — abaixando-se, May se perguntou enquanto fazia um carinho no joelho de Blaziken.

— Não devia se preocupar tanto, May. Você não conseguiria forçar seus Pokémons além dos limites, nem se você tentasse muito — Drew disse por detrás dela.

Ela sabia que não deveria, mas ficou muito incomodada com aquilo. Talvez porque remetesse direto ao incidente do último Grande Festival de que ela havia se lembrado pela tarde. May desviou o olhar e virou de costas antes de dizer:

— Ah, é! Eu sou “mole demais”, né, Drew?

Ele não esperava que, a esse ponto, qualquer implicância dele fosse levá-la a ficar brava de verdade. A essa altura já era pra ser só um jogo, mas aquilo não seria um problema...

Drew pôs as mãos nos bolsos, por mais que ela não estivesse olhando, e em seguida riu soando propositalmente mal. Se ela olhasse para trás veria um olhar confiante em sua face.

— Eu não tô dizendo que é falta de capacidade sua, sua besta. Eu tô dizendo que você é doce demais pra fazer isso.

Se sua florzinha tinha se ofendido, estava disposto a dar-lhe todas as regalias do mundo para fazê-la se sentir melhor. Sem nunca sair por baixo, é claro.

“Doce!?”, May, agradecida por estar de costas, corou.

O ritmo do flerte deles era como uma dança: ora na trivialidade do dia a dia, ora na efemeridade de declarações atípicas como aquela, as quais desembocavam na trivialidade do dia a dia de novo. Mas fosse nos picos de flerte ou nos vales de amizade, May estava gostando muito de toda a dança, a qual Drew conduzia magistralmente bem.

— Eu realmente deixei alguém cismada. — Drew relembrou o que dissera mais cedo — Beeeeeemmm cismada.

— É, você deixou alguém cismada! — ela se levantou e se virou — E agora vai ter que se dar ao trabalho de desfazer isso.

“Olha pra ela! Tão confiante!”, Drew estava satisfeito. “Eu me acho, você sabe! E é por isso que vou sentir falta do seu rosto corando a toda hora, do desconcerto tomando conta da sua face unicamente por causa de mim. Mas agora você sabe qual caminho está trilhando, não é, May? A cada dia, menos minha amiga, mais minha namorada, até que a gente possa dizer isso com todas as letras.”.

— Com prazer! — ele fechou os olhos e virou de lado, jogando o cabelo — Vai ser muito fácil, reverto os danos em três tempos!

— Acho bom!

— Agora, por que não põe eles dois pra descansarem nas Pokébolas? Uma boa noite de sono, uma manhã tranquila de descanso amanhã, e, à tarde, eles estarão novinhos em folha para o torneio.

— Você está certo.

Ela chamou Blaziken e depois Beautifly. E então se deparou com a mão estendida de Drew.

— Agora, senhorita, os pedaços de pizza que Vossa Mercê requisitara estão a lhe esperar e, por mal dos meus pecados, creio que nenhum deles me apeteça para que eu possa degustá-los em teu lugar.

— Nossa, Drew! — ela lhe deu a mão — Acho que pizzas e pessoas que falavam assim nunca viveram ao mesmo tempo!

— A começar pelo fato de que as pizzas nunca estiveram vivas, May.

Ela riu.

— Você me entendeu!

“Estou muito feliz, Drew!”

“Posso ver que está feliz, May”

Uma melodia tênue e suave começou a ressoar no ambiente.

Sem perder a postura, Drew foi verificar. Virou o rosto na direção do aparelho de som e foi certeiro no palpite.

— Roserade! — Drew ralhou.

Lá estava o Pokémon controlando o apetrecho com Absol logo atrás, os dois olhando em sua direção, o que fazia a situação toda parecer um motim.

— Ok! — ele levantou uma sobrancelha — Talvez isso não seja má ideia! — virando-se para May acrescentou — Quer dançar, May?

— Sim! — ela aceitou animada.

Drew começou a guiá-la.

Rapidamente ele se surpreendeu com o quanto May era uma parceira de dança perfeita. Ela seguia seus movimentos com naturalidade e deixava o corpo solto na medida certa para que ele mudasse a direção da dança. Não se lembrava de ter guiado alguém tão facilmente assim.

— Você já fez isso antes, não fez, May?

— Mas é claro! Eu adoro dançar. Sozinha ou não, eu faço isso sempre que tenho oportunidade.

— Como pensei.

— E como notou?

— Você tá muito à vontade.

— Então quer dizer que isso eu faço bem, Drew? — ela lhe provocou.

Ele assentiu com a cabeça e ficou em silêncio, mas seu olhar… seu olhar lhe atiçava a curiosidade e May não pôde deixar de perguntar:

— No que está pensando, Drew?

No quanto aquela dança com a May estava sendo mais divertida que o esperado, assim como a noite com ela estava sendo mais divertida que o esperado, assim como cada momento passado com a May ultimamente vinha sendo mais prazeroso que o esperado; tanto que, quando se despedia dela, mal podia esperar para encontrá-la de novo. E, por fim, no quanto era cedo demais para lhe fazer qualquer elogio a esse respeito.

— Em nada. No que você está pensando?

— Bem... Estou pensando que essa música me faz sentir como se um monte de fadinhas estivessem dançando pela floresta por entre as árvores, por entre os galhos…

Ele lhe deu um olhar gentil.

— É… Não posso dizer que não combina com a melodia…

— Essa flautinha… é o que me faz pensar assim.

— Eu quase sempre coloco esse tipo de música para os meus Pokémons ouvirem. Ela reflete natureza, leveza… E é uma forma de dizer a eles o que eu quero deles.

— É genial! Nós podemos falar uma linguagem diferente dos Pokémons, mas a música…

— A música é universal! — ele completou.

— Isso!

Subitamente, aquela faixa acabou. May foi pega de surpresa, mas Drew, que sabia de cór cada nota daquele CD, havia terminado a dança em posição perfeita.

A faixa seguinte começou a tocar.

— Agora, a gente deveria voltar às pizzas — ele piscou um olho.

Ela riu e o seguiu. Drew manteve o aparelho de som ligado, era uma boa música ambiente no final das contas. Masquerain, Flygon e Butterfree voltaram de seu passeio noturno e Drew lhes apontou seus potes de ração.

— Então — May pegou um pedaço generoso de pizza de frango com catupiry — sobre o que podemos falar agora?

— Que tal sobre preferências? Por exemplo, nós dois gostamos de pizza, mas qual é a sua comida preferida?

Eles falaram um pouco sobre comida, músicas e filmes de que gostavam. Em algum ponto, a conversa chegou em idade.

— Então quer dizer que você ainda tem onze, sua criança? — Drew perguntou logo antes de morder um pedaço de Marguerita.

— S-sim. Isso significa que você já tem doze, né?

Ele assentiu e May riu do modo como qualquer coisa pequena que deixasse Drew sair por cima fazia ele se sentir o dono do pedaço.

— Mas falta só dois meses pra eu fazer doze também!

— Não muda o fato de que você tem onze agora, May…

— É só um ano de diferença, não fique agindo como se fosse grande coisa!

— Só tá dizendo isso porque você é que é a mais nova.

— Nisso você tá certo…

May terminou a pizza de banana com canela e, ainda mastigando, pegou já meio desinteressada um pedaço de pizza de chocolate. Ia morder, mas de repente reparou no quanto estava cansada e deixou-se escorregar no almofadão, deitando onde dantes estava sentada.

— Isso… quer dizer que o sorvete é todo meu? — Drew provocou.

— Não — disse May. Olhos fechados, barriga para cima. — Me dá uns minutos que eu vou conseguir comer o sorvete também.

Drew ficou em silêncio, esperando pra ver se ela ia dizer alguma coisa.

— Drew? — abrindo um olho, May perguntou apenas depois de um minuto.

— Não vai dormir, hein!

— Eu não vou dormir! Só tô descansando um pouquinho pra poder voltar a comer.

Ele riu e se levantou. Tinha certeza de ter visto mais almofadas no armário.

— Aí! — ele fez sinal.

May abriu os olhos e pegou as três almofadas que ele lançou. Drew acabou pegando almofadas para ele também. Ele levou a caixa de pizza para a bancada da cozinha, pegou os sorvetes no freezer e colheres nas gavetas.

— Então, — ele começou, batendo forte os potes de sorvete no chão. O susto que May levou testificou que ela já estava dormindo — acho que vai ser dar umas colheradas nesse sorvete e levar você de volta para o Centro Pokémon, certo?

May, percebendo que ia dormir mesmo, forçou-se a se sentar.

— Sim. — ela admitiu pegando um dos potes — Mas tem mais uma coisa que eu queria aproveitar pra falar com você antes de ir, Drew.

Ela olhou na direção dele esperando por uma resposta. A colher de sorvete presa entre os lábios, virada de cabeça pra baixo.

— Manda! — ele estava sentando em frente a ela, também comendo sorvete.

— Lembra que ontem, quando você me perguntou sobre a sua mãe, eu disse que preferia deixar as ideias se assentarem na minha cabeça?

— Sim, lembro.

— Bem, elas se assentaram, e eu… dentre várias coisas, eu pensei que... bem, uma hora nós vamos estar competindo em Hoenn de novo, não é?

— Sim, é bem provável.

— Quando isso acontecer… vamos estar viajando pelo continente. Então, um dia, quando estivermos passando próximo a sua cidade… Você se importaria… Você me levaria pra ver o túmulo da sua mãe?

De todas as perguntas entre o céu e a terra, Drew não esperava por aquela.

— Ai! Me desculpe, Drew! — ela disse ao ver a expressão de surpresa no rosto dele — Mil perdões! Primeiro eu deveria ter perguntado se ela tem um túmulo — disse, lembrando-se das condições da morte dela.

— Tem, ela tem sim, May. — ele a tranquilizou — Não se preocupe, só me pegou de surpresa. Deixa eu ver se eu entendi, então você quer… falar com ela?

— Bem... Sim! Eu fiquei pensando no que me disse: que não tenho ninguém próximo que tenha partido. Mas mesmo não tendo, eu sempre acreditei que nossos parentes e conhecidos, quando morrem, podem ver a gente de algum lugar e podem até nos ajudar. Eu… percebi que você não acredita em nada disso, Drew. Mas como eu acredito, bem… eu lamentei por não ter conhecido a sua mãe, então pensei que visitá-la seria uma forma de… interagir com ela… agora.

Drew sorriu. Tinha um olhar gentil.

— Claro, May, vou te levar lá um dia. Não vou esquecer.

Internamente ele mesmo percebeu aquela gentiliza e constatou também o quanto aquilo ela inusitado. Sempre, sempre desprezou qualquer um que pensasse diferente dele nesse aspecto. E isso incluíra a Drica. Que tipo de idiota consideraria que os mortos podem nos ouvir de alguma forma?! Eles estão mortos!! A conclusão era tão clara e sem sombra de dúvida em sua cabeça. E a May… a May era a primeira que recebia naturalmente aquele favor da parte dele. Pela primeira vez ele não ligou, pela primeira vez ele se dispôs, sem reservas, a ficar quieto e “ajudar nos ritos”. Aquele tipo de gentileza, de ser afável mesmo sem concordar, que Drica devia esperar dele. E ela, que era sua irmã, que era família, não o teve até então…

— Não me espanta que você e a Drica tenham ficado amigas rápido, May. Vocês são parecidas em algumas coisas.

— Por que está falando isso? A Drica gosta de visitar o túmulo da mãe de vocês também?

— Acho que ela faz isso sempre que tem oportunidade. E só não faz mais porque tem de viver viajando. E ela… ela chega ao absurdo de dizer que sempre ouve a voz da mamãe e que às vezes, sempre quando ela está sozinha, a mamãe vem visitá-la, pela manhã, ou na hora de dormir.

— Mas, Drew, se ela tem relatos tão precisos, deve ser verdade...

— Isso é demais pra mim, May... — ele interrompeu — Sempre acreditei que ela estivesse mentindo, bancando a louca de propósito… Que precisasse de tratamento médico. Mas agora... — ele fez uma leve pausa — Agora penso que, mesmo mantendo a minha ideia, eu devia ter sido mais legal com ela nesse aspecto. Ela estava sofrendo também.

— Mas você pode ser legal com ela a partir de agora! Não pode voltar no tempo, mas pode fazer diferente daqui pra frente!

Drew levantou o olhar e se deparou com May sorrindo.

A luz dela iluminava a noite.

Ou isso, ou era algum tipo de magia só funcionava com ele.

“May, se continuar fazendo isso, a qualquer hora eu vou perder o controle, saltar e te beijar.”, ele pensou enquanto lhe sorria.

— Quer ver uma foto dela, May, da minha mãe? — Drew se levantou e foi em direção à sua mesinha de cabeceira. De lá trouxe dois porta-retratos — Quando eu vou ficar muitos dias num quarto, sempre arrumo um lugar pra eles. — disse ao se sentar ao lado de May.

— Há quanto tempo está nessa cidade, Drew?

— Quinze dias — ele disse apenas. Excluindo o fato de que perder nos últimos dois torneios fez com que ele se fixasse numa cidade para executar um treino mais intenso por dias seguidos. — Aqui.

Drew lhe entregou os porta-retratos. May se ateve àquele que tinha uma foto de Ágatha sentada. Ela tinha ares de princesa.

Como Drica, Ágatha tinha cabelos azuis-claros, porém ondulados. Se bem que, por causa das tranças, May não tinha reparado se o cabelo de Drica era ondulado. Uma grande diferença eram os olhos.

— Sua mãe era tão bonita! A Drica se parece bastante com ela. A diferença são só os olhos.

— A vovó dizia que tinha escolhido o nome “Ágatha” por causa da cor dos olhos dela. Eu, como um bom moleque implicante, vivia dizendo que se era pela cor dos olhos, ela devia ter chamado a minha mãe de “Ametista”, porque existiam ágatas de muitas cores, mas ametistas eram de uma só. Até o dia em que, pesquisando, reparei que os olhos da minha mãe eram iguaizinhos a duas ágatas rosas. Aí então, parei de perturbar a minha vó.

— Me diz, Drew, alguma pessoa consegue ficar perto de você sem ser tida como alvo de implicância, hein?

— Claro que não! — ele debochou — Não por muito tempo…

May riu. Ela fitou a foto novamente.

— Acho que agora não me lembro de como ágatas rosas são.

— A gente resolve isso muito rápido.

Drew se levantou e pegou seu notebook na escrivaninha. Abrindo, ele pesquisou “ágata rosa” na internet.

— Aqui — ele apoiou no chão e virou a tela para ela.

— Nossa! — May comparou com a foto — É igualzinho mesmo! Até esses anéis…

— E a ametista não parece tanto — ele pesquisou e mostrou.

— É, tem razão.

No outro porta-retrato estava a família toda: os pais e as duas crianças. O Drew como um garotinho foi a primeira coisa que lhe chamou atenção.

— Você não mudou nada! E essa cara de convencido num garotinho tão pequeno é de morrer de rir.

— Que é que eu posso fazer? — Drew jogou o cabelo — Eu sempre fui muito bom em tudo o que fazia. Uma pessoa deve se orgulhar de seus talentos, não?

May riu. Estava muito na dele. Suas poses de exibido não a incomodavam mais. Na verdade o que ele parecia é um cara bem legal.

— E você também tinha cara de quem vivia aprontando uma.

— Até que por conta própria, não. Mas acontece que eu tinha uma sócia.

May olhou para Drica na foto, com os cabelos soltos, efetivamente ondulados como os da mãe, e um lacinho na cabeça. Diferente da mãe, ela não parecia sublime como uma princesa, parecia sapeca.

— Quantos anos vocês dois tinham nessa foto, Drew?

— Deixa eu ver… eu cinco, ela nove. E foi antes dos Budew nascerem, tanto que eles não estão na foto.

— Vocês todos parecem bem felizes aqui.

— Nós estávamos! Eu me lembro bem desse dia: a mamãe disse que se eu e a Drica brigássemos antes da hora da foto, ia colocar os dois de castigo sentados um de frente pro outro e a gente não ia poder falar nem desviar o olhar.

— Ah, posso imaginar que os dois se sentiram bem motivados a não cair nesse castigo, né?

— Anh-hã.

— Mas essa foto tá bem espontânea. Nem parece a foto “do dia de tirar foto”.

— Ah, é que esta não é a foto da ameaça em questão. Essa está lá em casa em alguma parede, a que você está segurando nós tiramos logo depois da oficial.

— Oficial?

— É… — Drew ponderou um pouco se já devia contar à May ou não, quando decidiu que sim tomou a rosa do cabelo dela, segurou-a de olhos fechados e cheirando-a, continuou — Há mais coisas que me tornam um príncipe do que rosas ou minha postura impecável, May. Minha família está se preocupando em manter o rastro da genealogia há dezessete gerações.

— Dezessete?

— Sim. Somos do ramo principal, por isso costumávamos atualizar a foto oficial da família de ano em ano. — Drew estendeu-lhe a flor novamente — Sua rosa, Senhorita.

— Obrigada! — May pegou e a cheirou, em seguida deixou-a ao seu lado, no chão, e voltou sua atenção ao porta-retrato de novo.

— Seu pai se parece com, aliás, você se parece com seu pai, Drew. Mas com esses óculos redondos e pequenos e essa boina antiga e esse cabelo longo sem corte, ...

— Eu sei, eu já disse ao velho Mark que ele parece um nerd e que poderia se arrumar melhor, mas ele não me ouve. Diz que tá muito bem assim. Na real, só falta um cachimbo e um cachecol pra ele completar a fantasia de tio, só que do século passado.

May riu. De fato, Mark, diferentemente de Ágatha, não passava ares de nobreza. Na foto de família eles pareciam bem coesos, mas se fosse comparar a imagem dele naquela foto com a de Ágatha na sua foto sozinha, o casal tinha um aspecto de “A Dama e o Vagabundo”.

— Nem preciso dizer que a história do ramo principal é por parte de mãe, né? E digamos que meu pai não fez muita força pra se encaixar…

May riu de novo.

— O que importa é que eles pareciam felizes!

— Ah! Eles eram! — Drew confirmou.

— Então seu pai se chama Mark? — May perguntou retoricamente — A cor do cabelo de vocês dois é idêntica. Mas não consigo dizer qual é a cor dos olhos dele por causa do reflexo do óculos.

— São castanhos.

— E o que ele faz?

— Muitas coisas. Ele pesquisa diversos assuntos, uns relacionados a Pokémon e outros não.

— Isso faz dele um Pesquisador Pokémon então, não?

— Mais ou menos. Ele nunca estudou em instituições de ensino e nunca teve títulos, por isso prefere não ser confundido com um. Mas, ao mesmo tempo, ele é uma enciclopédia, May. Sabe de muita coisa, tem sempre um detalhe a mais a acrescentar. Foi assim que eu comecei a chamar ele de “Estudioso Pokémon”. Acho que no fundo ele não gosta de rótulos, mas esse ele até que aceitou.

— Isso é legal!

Fazendo algo que não era de seu feitio, Drew começou a dissertar animadamente sobre o pai.

— Ele e a mãe tinham especial admiração pelos Pokémons de água. Ele viajava pelo mundo em suas pesquisas, a mãe era coordenadora Pokémon. O pai disse que nunca tinha assistido a um torneio e quando viu as habilidades de coordenadora dela, ficou fascinado. Nas palavras dele: “nunca tinha visto um jeito tão artístico de mostrar as habilidades de um Pokémon; até então eu vinha enxergando a arte como algo despropositado, mas tive que dar o braço a torcer àquilo, que me arrebatara por inteiro”.

— Despropositado?

— Você sabe, May, gostamos do que fazemos mas, na hora do “vamos ver”, habilidades de luta com Pokémons são uma coisa essencial, mostrar como eles são “lindos e brilhantes”, não.

— O seu pai... parece que ele é bem diferente de você, Drew!

— Por quê?

— Primeiro por causa do estilo descuidado, e depois, você nunca diria que o que você faz é “despropositado”.

— Mas eu acabei de dizer.

— Mas você faz isso muito bem!

— Não muda o fato de ser não-essencial. — Drew deu um riso — Você não consegue separar as coisas, May? Se for legal então tem que ser essencial?

Ela assentiu, brincando de convencida. Drew riu de novo.

— Tudo bem, pode manter essa opinião. Acho que ela é não-essencial.

— Ei!

Ele riu mais uma vez.

— Essa foi boa, não foi?

— Foi sim — ela sorriu.

— Ei, May, quer ver alguma das apresentações dela?

— Quero.

Sem dificuldade, Drew procurou e achou uma das apresentações da mãe (no PokéTube, devo dizer). Era uma apresentação de Grande Fesvival. Drew lembrava-se do dia, lembrava-se de estar lá como criança, mas a noção de que era um Grande Festival lhe faltava. Para ele, a mãe estava sempre vencendo o mesmo tipo de competição.

— Ela era… incrível!

— Incrível? Com essa? — Drew tomou o notebook do colo de May — Espera até ver essa daqui. É minha preferida, e de muita gente também.

Drew colocou o notebook no chão, de forma que os dois pudessem ver. A jovem Ágatha estava, novamente, com seu Milotic no palco.

— Ela tinha vinte e um anos nessa época. Foi no auge da carreira.

May estava impressionada. Os movimentos que Ágatha executava com seu Milotic eram...

— Fora de série. Ela era fora de série, Drew! Digo, o Milotic já é em si um Pokémon muito bonito, mas a forma como ela conseguiu expressar essa beleza é… divina!

— Olha bem, a apresentação ainda não acabou…

May não podia acreditar no que estava vendo.

— Milotic, para finalizar, vamos executar a Agonia do Ser — Ágatha disse no vídeo.

— Agonia do ser? — May perguntou — Nunca ouvi falar nesse golpe.

— Não é um golpe, é uma sequência de combinações dela. Presta atenção.

— Milotic — Ágatha ordenava no vídeo — Use o Anel Restaurador.

Milotic foi envolto por seu Anel Restaurador, um de seus mais belos e impressionantes golpes.

— Salva-Guarda!

Milotic executou, brilhando todo em verde.

— Proteção.

Uma esfera verde surgiu em torno de Milotic, a coordenadora deixou-a ser admirada por precisos segundos antes de chamar o próximo golpe.

— E agora começa a emoção… — Drew comentou rapidamente.

— Pulso d’água — Ágatha ordenou subitamente.

Com Milotic apoiado no solo, o Pulso d’água foi lançado a 90°, formando uma coluna de água no estádio.

— Transforme numa Hidro-bomba! — a voz de Ágatha, inicialmente serena, agora transmitia urgência e Milotic deveras reverberava aquela urgência em seus movimentos.

O Pulso d’água foi encorpado pela Hidro-bomba e a coluna se tornou mais robusta.

— Que entre o Ciclone!

Milotic soltou um Ciclone que abarcou a Hidro-Bomba e tornou o, antes delgado, Pulso d’água num redemoinho denso de alta velocidade cujas águas chegavam a rugir. Mas uma vez, ela foi precisa em manter o movimento pelos segundos estritamente necessários antes de chamar o próximo golpe.

— Agora diminua para o Raio de Gelo — a voz de Ágatha deixara a urgência de lado e Milotic seguia-a como o badalar de uma dança.

Gentilmente, o Pokémon fez com que o grande redemoinho que se formara fosse condensado num Raio de Gelo que era ainda mais fino do que o Pulso d’água inicial. Ela manteve o movimento por algum tempo.

— Agora, Milotic, disperse usando o Anel Restaurador novamente — a coordenadora tinha voltado a seu tom sereno de falar.

Milotic usou o Anel Restaurador e lá estava ele: divino outra vez.

— Encerre com a Restauração.

Milotic brilhou em amarelo, usando a Restauração e o resultado foi centenas de fagulhas brilhantes por todo o ar ao redor dele.

Então, tanto Ágatha quanto Milotic fizeram uma reverência à plateia. Ela pegou nas bordas do vestido levemente para se curvar e May achou aquilo tão doce da parte dela.

— Então, May, o que a apresentação te fez sentir? — Drew se virou para ela — May? Tá chorando de novo! — ele fechou o notebook.

— Anh? — May levou os dedos ao rosto e constatou que era verdade — E eu não percebi de novo!

Ele olhou pra ela. Ela olhou pra ele.

— O que aconteceu? — ele começou a perguntar.

— Ah! Não me consola! — ela acenou em negação com as duas mãos diante de si — Eu me sentiria horrível se você me consolasse. E eu não tô chorando, tô só lacrimejando!

— Ok. E da outra vez que tava “lacrimejando” estava triste de verdade com algo. Aconteceu mais alguma coisa de tarde que você não contou, May?

— Não — ela acenou em negação com as mãos diante de si de novo — Não aconteceu mais nada além do que você já sabe.

— Então foi… — ele olhou na direção do notebook — o vídeo?

— Não! — ela não queria responder que sim, então olhou pra baixo, pro lado, ia tentar inventar alguma coisa, mas nisso foi pega.

— Ah, foi sim!

— Mas não precisa me consolar! — pela terceira vez, May já ia acenando em negação com as duas mãos a frente de si.

Só que Drew fez algo que a fez parar com os acenos.

Ele estendeu a mão em direção à sua cabeça. Mas parou no meio do caminho, isso porque ele mesmo se repreendeu ao fazer aquilo. Mas, em análise, Drew disse a si mesmo que não se tratava de um gesto romântico. Ela estava chorando, não estava? E ele era um homem, não era? Por mais que tivesse a intenção de ser seu namorado, antes de tudo era seu amigo, não era? Então a necessidade de apaziguá–la devia superar qualquer reserva em demonstrar seus sentimentos além do desejado, não devia? Era isso! Era nessa linha que iria agir. Drew abaixou a mão, acariciando sua cabeça. Bem no topo, sem jeito, como você faz com um Pokémon que não conhece.

— Isso é vergonhoso. É a sua mãe! Devia ser eu a te consolar, e não o contrário. Eu sou uma negação.

— Eu sou um homem, você é uma mulher. As coisas parecem estar cada qual em seu lugar pra mim, May.

Ele não estava satisfeito com o modo como a estava acariciando. Parecia um bisonho, um iniciante. E ele não gostava de se sentir um iniciante em área nenhuma.

Levemente, com o dedo, ele começou a puxar a beirada de seu lenço, fazendo-o escorregar, e o tirou com a outra mão, a esquerda. Ele relaxou os dedos e deixou-os acariciarem levemente seu cabelo. O movimento se tornou mais natural e ele ficou satisfeito.

May estava quieta, quieta e tímida. Mas ela estava gostando, estava bem claro em sua expressão.

Encorajado por aquilo, Drew então… então desceu a mão para o seu rosto.

Ele acariciava sua bochecha com o polegar e os outros dedos estavam por debaixo de sua orelha, uma orelha bem quente, por sinal. E, assim como ele mesmo devaneara muitas vezes, sua mão passava por detrás do cabelo dela.

O rosto dela estava em suas mãos… Estava surpreso. Mesmo resoluto, imaginava que demoraria muito tempo para estar assim com ela. Inclusive a imaginava mais velha em seus devaneios, e a ele também. Mas estavam ali, assim, agora.

Ele mesmo sentiu o rosto esquentar. Mal sinal. Ele era Drew, sem espaço para fraquezas ou embaraços. Era melhor cortar essa o quanto antes.

— Então, May, vai me falar o que te fez chorar agora?

E por falar em chorar, já não havia lágrimas em seus olhos. Elas já haviam se secado.

— Drew, — ela levantou a própria mão e a pôs sobre a dele. E então, ela, com os olhos fechados, fez-lhe um carinho na palma da mão com o próprio rosto.

“May, diferente de você, tem alguém tentando não corar aqui”, ele pensou sorrindo embasbacado, “Ah, você é tão fofa! Fofa e linda!”.

— obrigada! — ela completou — Estou melhor.

— Estou vendo, e estou satisfeito com isso. Mas não se esquive do que eu perguntei.

— Drew — ela abriu os olhos — foi bem simples. Mas talvez triste demais para compartilhar com você. Se pelo menos estivéssemos falando de um outro alguém, que não fosse da sua fa…

— May… — ele cobrou.

Ela deu um risinho.

— Você não me deixaria guardar isso pra mim, não é? Vai me fazer falar nem que leve a noite inteira, não é?

— Mas que esperta você! Que bom que pegou a ideia rápido.

Ela riu novamente antes de dizer.

— Drew, eu apenas, e acho que isso nunca tinha acontecido comigo antes, me impressionei com a ideia de que aquela pessoa que estava ali no vídeo… — May se interrompeu — a ideia de que… aquela voz que eu estava ouvindo, não é mais possível de se ouvir em som ambiente, porque ela não pode mais falar. E as coisas lindas que ela planejou para aquela apresentação… elas não podem mais ser vistas ao vivo, porque ela não pode mais planejar nada… — May lacrimejava novamente — E então, eu senti de um jeito, quase como se eu estivesse vendo um fantasma, uma imagem que está presa ao passado, e que no presente, já não é mais. Ela já não pode fazer mais nada, já não podemos conversar com ela, lhe perguntar mais nada, porque ela não pode responder.

Ao terminar toda a explicação, May acrescentou:

— Ah, Drew! Eu sabia que não devia ter te falado…

— Que verme inútil que eu sou. Depois de tudo o que eu falei sobre ser forte, aqui estou eu chorando também. — Drew limpou suas lágrimas com as costas da mão esquerda.

As palavras dela tinham sido contundentes e falado direto ao seu coração, melhor, expressado tão bem o que ele sentia que, mesmo sendo uma pessoa tão racional, foi impossível não sentir porque…

— Era a sua mãe, Drew. Você não precisa se envergonhar por chorar — May pôs as mãos em seus ombros. Agora ela estava ainda mais perto.

— Mas você devia ter me contado sim, May. Eu pedi, não foi? Ficaria chateado se não contasse, mentisse ou escondesse algo. Quero que saiba que pode contar comigo, em qualquer coisa. Mesmo que a princípio tenha a ver mais comigo do que com você, ainda assim eu vou ser forte o suficiente para você poder contar comigo, entendeu?

“Ele… ele está querendo dizer mais do que realmente está dizendo, não está?”, May se perguntou. Encabulada, ela apenas assentiu.

— As palavras que você disse… Expressam muito bem a face mais temida da morte, o afastamento. E você as colocou tão bem, May… Até agora meu pai sempre foi a pessoa que melhor entendeu meus sentimentos, mas acho que amanhã vou ligar pro meu velho e falar pra ele se cuidar porque ele está com uma concorrente talentosa. Você colocou aqueles sentimentos em palavras de um jeito que nem eu tinha feito.

Ele não estava disfarçando seu olhar de admiração e May, embora vermelha, não se sentia confusa nem tinha medo de que ele a visse assim. Porque estava lisonjeada com o elogio e, naquela hora, não tinha dúvida nenhuma de que ele gostava dela. O momento, estava perfeito para um beijo, não estava?

“Momento perfeito para um beijo, May”, Drew pensava, “E eu sei que você deve estar pensando o mesmo. Mas não vamos nos beijar hoje, May. Agora que eu decidi que vamos ficar juntos, vou fazer com que tudo seja perfeito, do início ao fim. Ficar perto de você… sua luz ofusca meus planos. Perto de você só tenho vontade de pegar na sua mão e correr, e correr, e correr. E em algum momento nós vamos parar e eu vou te suspender no ar e girar, e girar, e girar. E depois nós vamos correr de novo… E por isso, May, eu vou seguir com meus planos por agora, a ordem e o tempo das coisas que planejei. Qualquer mudança nesse plano precisa ser feita longe de você, porque perto de você, eu só sou levado pela sua doçura que confunde e nocauteia completamente qualquer razão que haja em mim. Confia em mim, May. Me espera e nós vamos dançar essa dança juntos.”.

— Safiras.

— Anh?

— Se o nome da minha mãe foi dado como Ágatha porque os olhos dela pareciam duas ágatas, bem, se fossem seguir a mesma lógica pra você, o nome deveria ser Safira, porque seus olhos parecem duas safiras.

Enquanto falava, Drew acariciou seu rosto com o polegar uma última vez, então, ainda sorrindo, retirou sua mão do rosto de May e a trouxe a seu colo.

“Ah! No que eu estava pensando também!? Que tipo de pessoa que eu sou!?”, May pensava, já retirando as mãos dos ombros de Drew e trazendo-as a seu colo, “Por que estou aqui pensando que ele vai me beijar em meio a uma conversa sobre a mãe dele, a falecida mãe dele? Vai ver o que dizem está certo: meninas que só pensam em romances o tempo todo são fúteis e sem cérebro. Eu deveria me concentrar mais nos assuntos e em suas importâncias!”.

— A minha mãe escolheu May porque é o mês que eu nasci — ela disse.

— Bem em meio à Primavera.*

*Na versão japonesa, o nome da May é Haruka, que significa “perfume da primavera”, tal fato pode ter influenciado a escolha do nome ocidental, May, que traduzido é “maio”, o mês que fica bem no meio da primavera no hemisfério norte, enquanto que no sul é outono.

— Isso mesmo!

— Acho que a escolha da sua mãe foi perfeita, seu nome combina com você.

May se avermelhou, desta vez com vergonha mesmo. Totalmente perdida, já não sabia dizer se Drew gostava realmente dela ou se aquele monte de elogios eram uma sequência de coincidências que levavam a crer que ele gostava quando na verdade só estava tentando ser um bom amigo e se ela demonstrasse que gostava dele estaria pagando um mico tremendo!

— Ei, May, se algo serve de consolo, agora vou te dizer o que ia dizer ao término do vídeo. Sabe por que aquela sequência se chama “Agonia do Ser”?

— Não tenho ideia, Drew. — May logo ficou curiosa — Mas há um motivo pra isso, quero dizer, um significado nesse nome?

— Se há! Na minha família, eles não guardam lembrança da genealogia por acaso, há um estatuto de regras. E na adolescência, a minha mãe, que era filha única, estava destinada a ser a próxima líder da família.

— E isso era ruim?

— Não, se você estivesse satisfeito com a vida que tem, porque o próximo líder não tinha permissão de deixar a cidade, nem mesmo de sair das terras da família sem aviso prévio. Estava destinado a uma vida cativa, e se isso não coincidisse com seus anseios, poderia ser deveras sufocante. E era o caso dela. Mesmo quando ela ainda não sabia o que queria, sabia que não queria ficar ali, passar o resto da vida presa entre aquelas paredes, administrando finanças para as quais ela não ligava.

— Bem, e o que ela fez? Porque ela foi uma coordenadora Pokémon afinal.

Drew sorriu.

— Aos quinze anos, já farta daquele cotidiano e já decidida a competir nos torneios Pokémon, ela deixou a mansão em segredo e fugiu com seu Feebas.

— Isso é bom! — os olhos de May brilharam — Então foi assim que ela conseguiu.

— Bem, a história é um pouco longa, mas em linhas gerais, sim, foi assim que ela conseguiu. A melhor parte é que, no final das contas, a minha mãe conseguiu até revogar a obrigação familiar de que o próximo herdeiro fique preso às terras da família. E, veja, May, por causa do que ela fez, tanto a Drica quanto eu pudemos sair livremente para nossas jornadas aos dez anos, sem precisar assentar o caminho pra isso, como ela teve que fazer. E é por isso, May, que a sequência “Agonia do Ser” tem tanto significado: representa a agonia dela mesma durante a adolescência, tendo de trilhar um caminho que ela não escolheu trilhar, enquanto o que queria ficava de lado.

— Uau! — May exclamou impressionada.

— Quando a gente era criança, a gente nunca viu a mamãe apresentar essa sequência e ela também não gostava que a gente ficasse procurando por vídeos de apresentações antigas dela. Só depois de alguns anos descobri o porquê, foi meu pai quem me contou: a sequência representava o auge de sua tristeza, desespero, desânimo; que são sentimentos ruins. Era uma fase passada e, como mãe, ela não queria que os filhos vissem aquele lado sofrido dela; tinha um lado de alegria para mostrar agora.

— Uau! Ela era uma pessoa incrível! — os olhos de May brilhavam ainda mais.

— Sou suspeito pra falar. Bem, toda aquela sequência tem um significado: a abertura, que consiste no Anel Restaurador+Salva-Guarda+Proteção, representa a essência do ser: calma e tranquila dentro de cada qual. O pulso d’Água representa o início de uma turbulência, a qual só vai crescendo enquanto passa pela Hidro-Bomba e chega a seu ápice no Ciclone. Ali, em meio ao ápice do desespero, o Raio de Gelo vem fino, tomando o lugar da turbulência porque representa o alcançar de uma solução. Então, o movimento diminui para o Anel Restaurador, a essência do ser habitando calma dentro dele mesmo outra vez e, por fim, a Restauração representa que agora aquele ser está em paz consigo mesmo.

— Uau!

— Está falando muitos “uau!”, May.

— É que… ela é incrível mesmo! Eu nunca ia pensar em dar significado a uma combinação, quanto mais a uma sequência! E eu nunca ouvi falar de alguém que tenha feito isso. Eu achei o que ela fez incrível, Drew!

Drew sorriu.

— É, eu também acho, toda vez. Ela é realmente alguém para se inspirar. O que me lembra…

Drew pegou os porta-retratos do chão e o notebook e os colocou na mesinha de cabeceira. Depois voltou para as suas almofadas, onde estava dantes. Suspirando internamente, May lamentou que ele estivesse se afastando. O aparelho de som continuava espalhando sua música calma pelo ar.

— Ei, May, eu não quero que mencione nenhuma palavra do que vou te dizer agora para a Drica, tá legal? E isso se estende ao que falei sobre ela mais cedo. Quero compartilhar algumas coisas com você a título de curiosidade, mas as coisas que tenho para resolver com ela vou resolver cada qual a seu tempo. Por isso, gostaria de contar com seu sigilo. Posso?

— Claro que pode!

— Esse vai ser o terceiro torneio de que vou participar aqui em Johto, e até agora nenhuma fita. Se amanhã eu não conseguir nada de novo, vou me retirar para um treino mais pesado. E devo admitir que com a Drica aqui, por mais que eu tenha me planejado bem, as chances de vencer amanhã caem bastante.

— Ver você admitir algo assim é bem estranho.

— É, eu sei. Eu percebi que preciso ser mais realista se quiser vencer. Só assim vou ser capaz de superar a Drica, a Solidad e todo mundo que aparecer no caminho, mesmo qualquer Princesinha de Hoenn que venha contra mim — galante, Drew levantou uma sobrancelha, sorridente.

May adorou o gesto dele e se avermelhou, ao mesmo tempo sentiu o sono bater-lhe, ainda mais forte do que mais cedo, então deitou-se nas almofadas de novo.

— Está interessante, continue.

— Você não parece tão interessada…

— Eu tô sim! Eu tô te ouvindo, só preciso descansar um pouco os olhos.

— Hum…

Drew deitou-se também. E jogou o braço por cima dos olhos.

“Bem, a verdade é que já conversamos bastante coisa hoje, talvez fosse melhor deixar esse assunto para outra ocasião”, ele refletia.

— Drew? — sem mexer o braço ou abrir os olhos, ele ouviu a voz de May.

— Sim?

— Achei que tinha dormido.

— Ainda tô aqui.

— Continua a história. Eu quero ouvir o que você pensa da sua irmã.

— Já conversamos muita coisa, vamos deixar isso pra outro dia.

May estava curiosa, mas concordava que tinham conversado coisa demais. Tinha tanto para ela refletir… Estava tão sonolenta que demorou um pouco para responder:

— Tudo bem!

E então eles ficaram em silêncio e a tranquila música do CD foi o único som que restou naquele ambiente.

Foi Drew o primeiro a acordar, três horas depois. Estava com frio. May dormia a seu lado, virada para a outra direção. Seu Eevee e seu Squirtle tinham vindo deitar-se junto a ela e ela estava encolhida.

“Deve estar com frio também”, pensou.

Levantando-se do chão, ele foi em silêncio até o armário e pegou um cobertor. Só então notou que a luz elétrica estava apagada.

“Roserade, há sete anos apagando a luz quando o Drew cai num sono”, ele bolou o comercial em sua cabeça, “Mas antes costumava ser porque eu estava lendo”.

Apesar da luz estar apagada, Drew enxergava quase tudo claramente porque a luz da lua invadia o quarto, somado ao fato de que ele estava com as pupilas dilatadas visto que tinha acabado de acordar. De longe, ele percebeu o aparelho de som aceso. “Deve ter tocado os três CDs até acabar”.

Numa checagem rápida, todos os Pokémons deles que não estavam nas Pokébolas dormiam tranquilos, cada qual como preferia, espalhados pelo quarto.

Drew cobriu May primeiro, tomando o cuidado de não deixar os dois Pokémons junto dela sufocados debaixo do cobertor. Tão logo May foi coberta, ela puxou o cobertor e se mexeu. Ele imaginou que ela fosse acordar, mas não, ela continuou dormindo. Ressonava de um jeito tão inocente… Ele se deixou ficar ali admirando-a um pouco. “O que fez comigo, May? Me sinto tão idiota e, ao mesmo tempo, eu gosto disso!”, ele sorriu.

Levantando-se, desligou o aparelho de som. Havia umas coisinhas fora do lugar aqui e ali, mas nada que ele precisasse arrumar naquela hora. Drew então pegou um cobertor para ele e voltou para a “cama” de almofadas.

Sentou-se. Agora May estava virada para ele. O jeito com que ela agarrava o cobertor com a mão e o prendia debaixo do rosto… Ela era tão bonitinha... A observou por algum tempo a mais. Era uma oportunidade única! Observar a May sem ter que se preocupar com o que ela ia pensar dele. Só olhar e relaxar!

A razão de seu frio era óbvia: a porta balcão de vidro estava aberta, ou melhor, escancarada. Mas não havia como fechá-la agora. As “camas” de almofadas deles estavam estendidas bem onde a porta correria. “Bem, não há nada demais em dormir assim, não é? É praticamente como dormir ao relento, mas isso não é muito diferente de um acampamento”, pensou.

Drew enfim se deitou. Foi uma coincidência que acabassem dormindo no mesmo quarto, mas ele gostou da situação. Amanhã poderia zoar a May por dizer que estava só “descansando os olhos” e em seguida dormir a noite inteira. Além do que, aquela primeira noite juntos “Não, isso pega mal! Lado a lado.”. Aquela primeira noite lado a lado abriria oportunidade para outras noites como aquela que fossem planejadas.

Ao fechar os olhos sentia-se tão bem... A satisfação de que tudo estava dando certo, se encaminhando sem problemas para seu devido lugar. Aquele sentimento era tão leve… Deixando-se levar por ele, Drew adormeceu.

Narrador de Pokémon: Enquanto Drew descansa na tranquilidade de estar guiando seu romance num mar de rosas perfeito, May sente a insegurança de ser amada ou não. Esses sentimentos de cada qual estão enevoados para o outro e embora não estejam para causar nenhum atrito por agora são a semente de um mal que só vai desabrochar no futuro. Fiquem ligados!

 


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Notas finais do capítulo

Notas da autora:

Eu sei que final de capítulo não é lugar adequado para dedicatória, mas se eu colocasse no início, a primeira seria um spoiler, nesse caso:

Permitam-me dedicar este capítulo à minha cachorrinha a qual é muito amorosa e adorar farejar e escalar a gente, apoiando frequentemente as patas no meu busto, o que me deu a inspiração para a cena do Absol investigando a May.

Em acréscimo posterior, permitam-me dedicar o capítulo também à minha sogra. Durante o final do desenvolvimento desde capítulo, todos nós na minha casa ficamos com covid, mas minha sogra foi quem teve os sintomas mais graves. Um deles, inclusive, foi um desmaio por baixa oxigenação que a levou para o hospital. Nós ficamos muito preocupados, mas ela só precisou ficar lá dois dias. Estou tão exultante por ela ter voltado para casa sã e salva que decidi dedicar este capítulo a ela também. Até pensei em dedicar outro capítulo, talvez até um livro inteiro, mas acontece que essa situação toda ocorreu justamente no desenvolver deste capítulo, logo, a dedicação de nenhum outro capítulo (ou obra) seria tão significativa quanto a deste. Escrever é uma das coisas que faço de melhor, então não há um presente melhor que eu possa dar a alguém do que uma dedicatória.

******, estamos muito felizes que você está de volta! o/ ^^