Serpente escrita por MademoiselleChociay


Capítulo 2
Abóbada Noturna




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Tudo em nós foi poesia — foi Rimbaud, Valéry, Baudelaire. Foi intenso de todas as formas, gostos, cheiros. 

Tentava recitar algo de cor, enquanto esperava o avião finalmente decolar. Je t’adore à l’égal de la voûte nocturne…¹, comecei, mas o verso seguinte era um borrão. Vou me esforçar para lembrar.

Tudo em nós foi poesia, mas agora nada mais tem de métrica. O fato é que nos acostumamos a nos perder. Não sei quem deu o primeiro passo, mas as traições mútuas se tornaram um hábito nesse último ano. Eu esperava encontrar algo de paixão nos lábios que beijava ou nas camas em que acordava, talvez ele procurasse o mesmo. Nossos risos viraram silêncio — um silêncio que dizia tudo, nós dois éramos omissos e estávamos de comum acordo. 

O apartamento refletia nossa bagunça. Presente de meu pai, no centro de Paris, com vista para a Torre, era impossível que se mudar para lá não fosse uma proposta tentadora a qualquer um — ainda mais a alguém recém-saído de um rompimento traumático, sem muita ideia do que fazer em seguida e sem coragem de encarar a ex-namorada com quem compartilhou uma vida de amizade. Mudar de país parece sempre uma boa fuga. 

Fui eu quem sugeriu. Quase um pedido, mais uma proposta. Naquele meu quarto da mansão das Pitangueiras, quando Mônica parecia para sempre perdida e ele me procurou outra vez. Sabia que me procuraria, ora, era parte do plano! Do meu plano, meu plano de anos, arquitetado nos mínimos detalhes, tanto que ainda lembrava de cor as palavras ensaiadas e sussurradas no pé do ouvido.

“Deixe essa histórria parra trás. Venha comigo parra Paris, chéri²”.

De primeira, lembro de tê-lo sentido recuar. Uma coisa era dividir secretamente a cama enquanto a namorada inocente andava sei lá por onde. Outra era assumir uma história, dividir um apartamento, a vida. Mas o que ele tinha então, além de mim? Agora que todo o Limoeiro o considerava um crápula, hipócrita, mentiroso, agora que seu nome era malfalado e malfadado por todos que o conheciam? Deixei que ele não tivesse escolha que não fosse se apaixonar por mim — por isso afagou meus cabelos, por isso me aconchegou em seu peito nu, por isso suspirou e soltou um taciturno “vou”. E eu? Sorri, vitoriosa, soprando pela primeira vez um je t’adore³. 

Quando Cebola chegou com as malas, tantas, mon Dieu, parecia definitivo! E é estranho analisar estes dois momentos: sua chegada, minha saída. Talvez o mesmo número de malas, talvez a mesma sensação de algo categórico, talvez um objetivo outro. O silêncio era o traço comum das duas cenas. Na primeira porque seus lábios se ocupavam dos meus, e o Debussy ao fundo parecia nos exigir que não o interrompesse. Na segunda porque não havia mais o que ser dito — estava nas entrelinhas, suspenso e ao mesmo tempo presente, estampado nos nossos olhares tristes e mesmo assim complacentes. Pois mesmo ele, mesmo pego de surpresa, sabia que aquele je t’adore — aquele de três, quase quatro anos atrás — tinha seu prazo de validade como qualquer coisa de artificial. 

Faltou fôlego quando as rodas deixaram o chão. Abri a janela. Subia entre as nuvens, a velocidade me dava vertigens. Respirei fundo. Je t’adore à l’égal de la voûte nocturne. Daquela altitude, ainda parecia ser noite — o Sol escondido, as estrelas um tanto mais próximas. Me veio a expressão triste de Cebola, legendada pelo verso seguinte do poema. Ô vase de tristesse, ô grande taciturne⁴. Lembrei de seu coração por um instante acelerado, ainda em nosso refúgio nas Pitangueiras, naquele tempo tão longínquo agora. Dos meus cabelos pretos e embolados sendo guardados atrás da minha orelha, do sorriso torto e solto sob meu batom borrado. Eu acreditei que o amava, ao menos por aquele instante — mas o amei enquanto não o tinha, enquanto era uma ideia. Amei o instante em que venci. E o amei um pouco mais, até que parecesse só um ornamento das minhas noites — semblante perdido do outro lado da cama, tristeza complacente estampada nas estrelas.


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Notas finais do capítulo

1 - Je t’adore à l’égal de la voûte nocturne: Eu te adoro como adoro a abóbada noturna
2- Chéri: Querido
3 - Je t'adore: eu te adoro
4 - Ô vase de tristesse, ô grande taciturne: Ó vaso de tristeza, ó grande taciturno



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