S.H.I.E.L.D.: Guerreiros Secretos (Marvel 717 2) escrita por scararmst


Capítulo 20
Consequências




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Ansiedade era um sentimento traiçoeiro. Praxis era capaz de reconhecer todos os sintomas se apresentando em seu corpo: coração levemente acelerado, uma tendência a balançar a perna sob a mesa e uma grande propensão a se sobressaltar a cada menor indicação de ouvir seu nome ser chamado.

Estava jogando um jogo perigoso. Tinha noção de sua situação atual com seu marido, e do quão mais suspeito tudo ficava a cada dia. O universo tinha um jeito cármico de arranjar suas coincidências não tão acidentais assim, e estava ficando bem visível agora. Logo agora, quando Praxis vinha planejando se afastar mais e mais de seu marido, ele parecia ter sido acometido por um desejo inexplicável de estar perto dela.

Ela se perguntava se seu desconforto poderia ser confundido com uma leve repulsa à proximidade exacerbada dele, ou se estaria claro como ela vinha alimentando uma mentira. Praxis tentava se concentrar em comer seu macarrão sem se importar com a presença do homem ao seu lado, mas a cada garfada se perguntava o que estaria se passando na mente dele. E temia saber a resposta.

O súbito interesse de Aurelius em sua pessoa só poderia ser explicado por uma das seguintes opções: ou ele estava desconfiado dela, pretendendo vigiá-la de maneira discreta e, quem sabe, descobrir qual era o segredo fatídico escondido pela mulher debaixo de tantas chaves; ou ele apenas queria estar ao lado dela, gostava de sua companhia e tinha intenções de estender momentos de proximidade, e Praxis honestamente não sabia qual das possibilidades era pior.

Se ele estava desconfiado, então ela teria problemas muito sérios muito em breve. Seu plano de fuga calculado com cuidado teve de ser jogado pela janela quando, dias atrás, ela e o marido receberam convocações diretas para testemunharem no julgamento dos Samudri, acontecendo no dia seguinte. Se Praxis se arrependeu em algum momento de suas dúvidas quanto a ir embora, foi ao ver aquele documento chegar em sua porta. Se tivesse desaparecido antes de receber a intimação, pelas leis de Attilan seria considerada desertora e, portanto, não poderiam obrigá-la a nada relacionado a burocracias locais. Mas tinha levado alguns dias a mais para partir, e agora se encontrava presa à obrigação de depor no julgamento. Se tentasse escapar disso, viriam atrás dela. Tinha certeza. E se tinha algo que não queria e não precisava quando finalmente deixasse Attilan era a polícia da cidade a procurando pelo mundo para terminar um depoimento do qual tinha escapado.

Um dia. Se tivesse hesitado um dia a menos, nada daquilo seria um problema e, a essa altura, já estaria acomodada em um apartamento em Nova Iorque, preparando-se para sua vida e deixando tudo para trás. Tudo… incluindo Aurelius.

E ali estava o problema da segunda opção. Deixar Aurelius nunca tinha sido motivo de preocupação. Os dois se detestavam; se saísse da vida dele, seria tanto melhor para ambos. Eventualmente, ele desistiria de procurar por ela, assinaria um divórcio e ambos poderiam seguir com suas vidas como bem preferissem, sem estarem presos um ao outro por um casamento inicialmente indesejado.

Inicialmente, Praxis dizia, pois mesmo para ela estava ficando difícil não perceber a mudança na atmosfera da casa. Ouvia os criados cochichando e dando risadinhas quando passava pelo corredor. Sem querer, vez ou outra, ouviu Aurelius dando ordens aos criados de coisas como “façam torta de mirtilos para a sobremesa, é a preferida de Praxis”, ou ainda “separem aquele meu roupão roxo para ela hoje, sei que ela gosta dele”.

Não precisava ser um gênio para enxergar o óbvio desenrolar de acontecimentos em sua frente e, ao menos para Praxis, estavam ficando muito claras as tentativas discretas de Aurelius em agradá-la nos mais diversos campos do dia a dia. Tudo era muito curioso de se perceber quando confrontado com a forma ainda firme e aparentemente desinteressada com a qual ele guiava o cotidiano dos dois, o que Praxis não sabia se era por inabilidade dele de se expressar de qualquer outra forma, ou se seria intencional para esconder suas verdadeiras intenções. Qualquer que fosse o cenário, tudo era diferente, estranho e repentino, e estava deixando Praxis um pouco mais confusa a cada dia sobre qual seria a decisão correta a se tomar.

O fato de ter sido intimada e agora ser obrigada a permanecer em Attilan por mais tempo não ajudava muito em sua situação. No fundo, a mulher começou a temer os resultados de uma convivência alongada com Aurelius nesses termos, para os dois. Era fácil partir imaginando Aurelius provavelmente abrindo um champagne e partindo um bolo para comemorar sua ausência, mas fazê-lo tendo de imaginar o homem em prantos no quarto que costumava ser dos dois era muito diferente.

Não queria se questionar. Já tinha tomado sua decisão, e não abriria mão disso por nada; não teria seu filho em Attilan e se recusava a permitir que fosse criado ali, em meio a toda a radioatividade daquele lugar. Mas, pela primeira vez, estava questionando o papel destinado a Aurelius nisso tudo, e não vinha gostando das possíveis ramificações da situação.

Tudo era tão mais fácil quando ele a detestava… por que raios tinha de inventar sentimentalismos agora?

— Você parece preocupada — Aurelius comentou de repente, tomando um gole de sua taça de vinho. — Tem certeza de que não quer beber um pouco?

E, lá estava. O bendito sentimentalismo. Interesse. Aurelius não se sentava mais na ponta oposta da mesa, como era de costume dos dois. Estava na cadeira diretamente à direita dela, deixando a cabeceira para si e preferindo ficar perto da mulher mesmo se isso significasse se sentar ao lado da mesa. Praxis sequer sabia o que absorver dessa atitude. Era muito confuso para si.

— Você se importa? — Ela perguntou por reflexo, bebendo um gole de seu suco de laranja.

Sim, ele se importava, ela sabia disso, e teria de ouvir uma resposta do homem confirmando algo que já era de seu conhecimento, e realmente não queria ter de ouvi-la saindo da boca dele. Bem, só podia culpar a si mesma. Ninguém tinha a obrigado a perguntar.

— Se não me importasse, não me daria ao trabalho de perguntar.

Ela quase riu, travando uma pequena risada sarcástica no fundo da garganta e a disfarçando com um engasgo. Pegou sua taça, bebendo um gole do suco e tentando disfarçar a reação enquanto fingia não reparar nos olhos muito azuis de Aurelius a observando sobre a mesa. É claro, também seria mais fácil se Praxis detestasse o marido visceralmente, mas mesmo ela não poderia tentar propagar essa ideia agora. Sempre tinha o achado atraente, não teria engravidado se não pensasse assim, mas os olhos azuis dele traziam um brilho diferente que quase a fazia querer confessar em cima do jantar: estou grávida. Você vai ser pai.

Seria Aurelius um bom pai? Ela olhou para ele por um instante, pensando no tipo de vida que a aguardaria caso escolhesse esse caminho. Tanto ela quanto o filho teriam do bom e do melhor, isso era verdade, mas, tinha certeza, ali. A nova posição de Aurelius nos Chrysantheos o colocava muito perto de assumir como patriarca da família, graças à nova ajuda concedida à família real. Ele teria toda a riqueza que já tinha, aliada a um prestígio jamais antes conquistado. Finalmente estava saindo da sombra do pai, aquele velho asqueroso a quem, mesmo sem se importar tanto com Aurelius, Praxis odiava. Por que motivo deixaria tudo isso para trás?

Aurelius não deixaria Attilan. Sabia disso. Ele poderia ser um pai incrível, ter todos os meios de sustentar sua família, mas em Attilan não existia meio-termo. Ou se estava totalmente dentro, ou se estava totalmente fora. Se Aurelius não quisesse sair, e ele não iria querer, tampouco ela poderia fazê-lo.

Nunca tinha sido o tipo de sonhar com família de comercial de margarina, mas havia um certo requinte de crueldade do universo entre fazê-la escolher entre o que sabia ser o certo para seu filho e o que poderia ser quase uma história de contos de fadas. Mas era incerto. Entre o certo e o incerto, não podia permitir qualquer risco cair sobre seu filho, mesmo que partisse o coração de quem estivesse ao seu redor.

— É a intimação — respondeu enfim, decidindo tomar a rota mais segura como resposta. Algo em que Aurelius acreditaria, algo sobre o qual poderiam conversar. — Não gosto de falar em público, será ainda menos agradável fazê-lo com tanta responsabilidade envolvida.

Pelo lado bom, sua resposta pareceu bastar para evitar mais perguntas. Pelo lado ruim, despertou ainda mais simpatia em Aurelius. O homem limpou a boca com o guardanapo, pousando os garfos no prato e esticando a mão sobre a mesa. Ele segurou a mão de Praxis, e a mulher pensou em recolhê-la no mesmo instante, mas em segundo pensamento, não parecia uma boa ideia. Não queria Aurelius ainda mais desconfiado de seu comportamento, e nunca tinha sido o tipo de recusar avanços físicos da parte dele. Já bastava todo o tempo sem se deitar com ele, certamente estava o deixando desconfiado. Não, ao menos o toque em sua mão precisava deixar acontecer. Precisava evitar perguntas.

— Vai ficar tudo bem, não se preocupe com isso — ele comentou, bebendo mais um gole do vinho. — Seu papel é apenas informar sobre o que viu junto comigo na investigação do chip. Não teve em envolvimento em mais nada, não é?

Mentira. Tinha, sim, tido envolvimento muito profundo na situação, e essa era outra fonte de preocupação para si. O que faria se fosse reconhecida no julgamento e os acusados revelassem a compra? O cristal estava escondido em seu guarda-roupa, em uma mala de viagem, e poderia facilmente ser encontrado por alguém. Talvez devesse encontrar um lugar mais escondido para ele.

— Eu sei — ela respondeu, tentando forçar um sorriso, mas desistindo em um átimo de segundo. Até para isso lhe faltavam as energias necessárias. — Acho que é apenas um sentimento subconsciente.

Era de todo modo uma preocupação válida e, de repente, Praxis se deu conta de que não podia ser pega de surpresa por esse tipo de revelação no dia seguinte. Precisava tomar alguma atitude para garantir o segredo de seu envolvimento na situação, ou então, aí, sim, jamais poderia deixar a cidade, pois seria presa e morta antes. Não era um risco o qual pudesse correr.

Ela engoliu em seco, limpando a boca com o guardanapo, soltando a mão de Aurelius e se levantando em seguida. O homem a olhou confuso, e dessa vez ela fez seu melhor para colocar um sorriso no rosto e fingir estar tudo bem.

— Um passeio pela cidade pode me fazer bem. Preciso tomar um pouco de ar.

— Podemos ir ao Parque Real, se quiser — Aurelius respondeu, levantando-se também e começando a ajeitar as mangas da camisa que usava.

— Obrigada — ela cortou de uma vez. — Mas eu prefiro ir sozinha. Tenho muita coisa na cabeça, preciso de um pouco de espaço.

E, pelos Kree, que ele não desconfiasse desse último pedido…

Aurelius a olhou por alguns instantes inexpressivo, e foi impossível para Praxis mensurar se teria conseguido seu objetivo ou não. Mas então ele sorriu, pequeno e compreensivo, e se sentou novamente em sua cadeira.

— Tudo bem. Eu vou terminar meu jantar, então. Por favor leve um segurança com você, está muito tarde.

Não. Sem testemunhas.

— Eu… Vou pensar. Não se preocupe comigo, eu cresci no gueto, lembra?

E essa última frase realmente pareceu ter atingido seu objetivo, pois Aurelius soltou uma risadinha fraca e anasalada, balançando a cabeça em um misto de desistência e incredulidade. E era o melhor que ela conseguiria agora. Praxis não queria dar ao marido a chance de mudar de ideia, então acenou para ele, pegou seu casaco ao lado da porta, vestiu-o e saiu.

Decidiu fazer uso dos ônibus de novo. Já teria de deixar seu nome no livro de visitantes, e até conseguiria justificar isso para as pessoas depois. “Surto de consciência”, poderia dizer, revelando uma falsa empatia pelos criminosos prestes a serem julgados por seu próprio depoimento. Mas no que dizia respeito ao próprio Aurelius descobrindo esse fato, preferia adiar o momento ao máximo, então seria melhor não ter um motorista para responder a ele onde tinha ido caso sua curiosidade o fizesse perguntar.

Assim, ela pegou um dos ônibus em direção ao Centro de Detenção de Attilan. Não ficava muito longe dali, estando o prédio localizado a poucas quadras do Palácio Real. Era do gosto dos governantes manter os prédios principais do Executivo e do Judiciário próximos a eles, e era uma decisão a que Praxis jamais iria discutir; afinal, parecia mesmo muito prático.

Praticidade tal que a permitiu estar em seu destino em um espaço de apenas dez minutos em trânsito. Ela desceu do ônibus, conferindo o relógio e se certificando de ainda haver tempo para uma visita, embora estivesse nos últimos minutos da janela de horas para visitação. Ela colocou um óculos de Sol e um lenço nos cabelos, esperando com isso disfarçar as íris violetas e o preto inatural do cabelo como seus traços marcantes. A mulher entrou no Centro de Detenção a passos rápidos, batendo o salto no chão em um semi-desespero de pressa, conferindo o relógio a cada passo, mas se certificando, satisfeita, de chegar à recepção com meia hora de vantagem.

— Boa noite — ela anunciou, escorando-se casualmente contra a bancada. — Preciso fazer uma visita a um detento.

A recepcionista a olhou um tanto irritada. De certo a mulher não estava feliz em ficar detida na recepção alguns minutos além de seu horário de trabalho por uma visita de última hora, mas bem, era um risco, podia acontecer com qualquer um. Ela ia superar.

— Nome do visitado? — A mulher perguntou, a voz desanimada e rancorosa enquanto falava.

— Marcellus Drusamudri.

Praxis aguardou enquanto a recepcionista digitava algumas coisas. Depois, precisou passar sua digital em um leitor, dando assim sua identificação para o sistema. A mulher entregou um crachá para Praxis e liberou a catraca.

A própria inumana não queria se demorar no local. Esperava resolver o problema rapidamente, ou não resolver nada e então precisar fugir durante a noite de qualquer forma. Isso colocaria Attilan atrás dela, mas se a alternativa fosse ela mesma se tornar réu, então ainda seria uma solução melhor.

Um dos guardas a recebeu, guiando-a até uma sala de espera, e Praxis ficou ali dentro, de pé, andando de um lado a outro enquanto aguardava, sentindo cada segundo como um aviso de sentença pairando sobre sua cabeça. Ela tirou o óculos e o lenço ao se ver sozinha na sala, pois era importante Marcellus saber com quem estava falando e porquê, e esperou. A qualquer instante… A qualquer instante… 

As portas se abriram e o guarda guiou Marcellus para dentro. Por algum motivo, a incomodava ver o homem com quem tinha interagido dias antes ser conduzido para lá em um traje azul de prisioneiro, sabendo de sua culpa na situação atual dele. O rosto dele ficou um tanto branco ao vê-la, e Praxis soube ter sido reconhecida. Seus receios eram, de fato, reais.

O guarda o deixou lá e fechou a porta atrás de si, deixando-os sozinhos.

Marcellus não disse nada em um primeiro momento. Ele caminhou pela sala, observando Praxis de queixo erguido e com uma expressão sarcástica no rosto. O homem não parecia muito feliz em vê-la. Tinha feito bem em ir até lá. De outra forma, imaginava, seria entregue sem pensar duas vezes.

— Você tem muito estômago — ele comentou, sentando-se na cadeira com notada brutalidade. — Ou burrice.

Em silêncio, Praxis se sentou de frente para ele. Em verdade, não tinha parado para considerar as ramificações de sua visita, embora soubesse ser melhor tentar alguma coisa qualquer que não fazer nada, em particular depois da certeza de ter sido reconhecida por ele.

— Ou esperteza — ela retrucou, cruzando as pernas. — Eu estarei no seu julgamento amanhã.

— É… Eu sei. Quando você foi lá em casa, eu bem pensei, “de onde conheço essa madame?”… Então alguém me traz um jornal do dia, e lá está você, na primeira página, ao lado do marido, recebendo palmas por ter capturado os perigosos traficantes de terrígeno. Deve lhe custar um esforço e tanto não deixar essa máscara cair.

Ela engoliu em seco. De repente, percebeu como tinha tudo a perder, e ele nada. Não gostava dessa sensação. Não gostava de se sentir em perigo, ou de se sentir no extremo mais fraco da corda; era o lado para o qual a corda sempre arrebentava. A mulher agarrou o lenço em seu colo, tentando esfriar a cabeça e limpar os pensamentos. Seu filho. Precisava pensar em seu filho.

— Você me entregou para eles? — Perguntou, direta. Não tinha porque dançar ao redor da mesa com ele, principalmente por sua visita ter sido tarde e seu tempo ser bastante limitado por conta disso.

— Poderia. Mas não — o homem respondeu, cruzando os braços e jogando as pernas para cima do canto da mesa. — Sua hipocrisia me admira. Eu fiquei me perguntando o que os grandes de Attilan fariam se soubessem que sua heroína veio negociar comigo bem debaixo do nariz deles. Eu não vi nenhuma menção ao cristal que você comprou nas reportagens, então assumi, isso não foi parte da investigação. Ele não foi entregue à Família Real como prova, não… Você queria ele para você.

Marcellus descruzou os braços novamente e começou a bater palmas, bem devagar. Saber de seu segredo ainda ser um segredo era reconfortante, mas Praxis sabia como a situação poderia mudar no dia seguinte com o calor do momento. Ainda precisava de sua garantia, e era esse o motivo de sua visita.

— Eu quero que continue assim — ela comentou, vendo Marcellus abaixar as mãos. — E estou disposta a lhe dar algo em retorno pelo seu silêncio.

— É muita cara de pau da sua parte… Eu sei que vai testemunhar amanhã e que minha cabeça já está cortada. Nada vai mudar isso. Você não pode me salvar do meu destino.

— Não — ela continuou. — Mas a lista de “últimos desejos” que o governo pode lhe ceder depois de marcar sua execução é limitada. O que vão te dar? Uma comida especial? Um filme para assistir? Eu posso te conseguir mais que isso. Deve ter algo que você deseja.

E foi ao dizer essas palavras que ela soube ter atingido um nervo exposto. Marcellus travou o maxilar, inclinando-se sobre a mesa e encarando Praxis com um olhar sério e furioso.

— Uma visita conjugal, talvez? — Perguntou, mas Praxis sabia da pergunta não ser séria. Ele estava apenas testando o território.

— Como eu disse, eu posso te conseguir mais. Sei que vai pensar em alguma coisa até lá.

E com isso, sua oferta estava na mesa. A reação de Marcellus era um grande indicativo dele estar pensando, mas conseguia imaginar que não diria nada por ora. Ele ia gostar de manter sua decisão em segredo por algum tempo, o suficiente para vê-la em desespero durante todo o depoimento. Para torturá-la. E isso era o melhor que iria conseguir.

Praxis se levantou, arrumando o lenço e colocando os óculos novamente. Ela bateu na porta para deixar a sala e o guarda a abriu, dando passagem. Isso era tudo o que podia fazer. O restante de seu destino não estava mais em suas mãos. Agora, só podia voltar para casa antes que Aurelius surtasse pensando em alguma tragédia ter acontecido, e torcer pelo melhor.

 

[...]

 

Era comum para Aurelius apreciar o silêncio, em especial aquele derivado de momentos nos quais não queria discutir os assuntos pairados no ar. Sendo uma pessoa de poucas palavras, e estando casado com uma mulher de menos palavras ainda, era muito conveniente o conforto de poder se afogar em si mesmo em quaisquer momentos que desejasse, focando apenas em seus pensamentos e não precisando dar atenção ou dispensar energia a nada externo a esse seu instante consigo.

Mas havia um outro lado para aquela situação nunca antes considerado pelo homem: e se ele quisesse falar, mas, tendo a certeza de Praxis não querer fazê-lo, se visse impossibilitado de satisfazer esse desejo?

É claro, muita coisa tinha mudado nos últimos tempos. Enquanto o carro os levava em direção ao julgamento, Aurelius encarava a esposa com um olhar distraído no rosto, vendo o leve franzido na testa dela enquanto a mulher fixava as írises violetas na janela, como se procurasse algo na rua.

Eupraxia, sempre tão introspectiva, estava ainda mais reservada. Embora os dois fossem de guardar suas pessoalidades para si, costumava existir um meio de caminho entre eles, um espaço de momento no qual compartilhavam suas vidas um com o outro. Quando a mulher se dispôs a ajudá-lo na investigação, mesmo sabendo se tratar apenas de um interesse pessoal, Aurelius não pôde se impedir de alimentar uma esperança estúpida. Já tinha compreendido a verdadeira natureza de seus sentimentos e de como tinha se apaixonado, lenta e repentinamente, pela mulher com quem já vinha dividindo tanto tempo de sua vida.

Devia ter sido mais realista consigo. Devia ter controlado seus próprios sentimentos, devia ter se advertido: acalme-se. Ela tem seus próprios motivos para querer tomar parte nisso e, certamente, não estão nada relacionados com você.

Mas isso ele conseguia dizer a si mesmo. Isso ele conseguia entender, mesmo que doesse, pois ela mesma tinha deixado claro como seu interesse em toda a situação era dividir os méritos com ele. A parte a qual Aurelius não conseguia superar era o engano de seu próprio coração.

Nunca tinha passado tempo com Praxis assim. Todo o tempo dividido com ela sempre tinha sido carnal ou sarcástico; não existia flerte inocente ou gentileza trocada. Isso era novo, e até estranho, sob um novo ângulo. Mas ele tinha gostado. Tinha se permitido divertir com a situação, encantar-se em vê-la tão investida em algo. Eupraxia era uma mulher inteligente, e isso não era novidade para ele, mas saber e ver isto eram duas coisas muito diferentes. Ver, no caso, carregava um peso quase inesquecível.

A Praxis que tinha conhecido nos últimos dias era uma mulher dedicada, inteligente e até um pouco carinhosa, tudo debaixo da mesma clássica altivez nunca abandonada por ela. Nunca tinha a visto assim antes e, agora que tinha… Tudo tinha mudado.

Bastou a convocação para o julgamento sair, e foi como se as cores do mundo mudassem para uma escala de cinza. Praxis não tinha voltado para seus modos anteriores, não, era pior. Agora ativamente o ignorava, tanto em escalas mais íntimas quanto em escalas emocionais. Aurelius não era do tipo de se roer por rejeições, mas a recusa dela em passar tempo com ele depois do que parecia uma melhoria palpável no relacionamento dos dois conseguia ser muito mais dolorosa que o antigo status frígido de seu casamento. Antes, ao menos ela esquentava sua cama, embora não esquentasse seu coração. Agora…

— Tem algo lhe incomodando? — Ele perguntou, mais uma vez incapaz de impedir seu reflexo de curiosidade, mesmo sabendo do desinteresse dela em sua preocupação.

A mulher suspirou, virando o rosto para ele e cruzando os braços. O gesto quase soou como se ela fosse obrigada a lidar e conviver com ele, como se, caso fosse sua escolha, não estaria ali. Ele tentou não se magoar com isso. Falhou.

— Estou indo para um depoimento. É claro que estou incomodada.

Aurelius deu de ombros, tímido, arrastando-se um pouco no banco da limusine para se aproximar dela. Talvez fosse apenas sua impressão. Talvez ela estivesse apenas nervosa, e não o ignorando de fato. O homem passou o braço pelo banco do assento, estendendo a outra mão para segurar a dela.

— É só um depoimento, não se preocupe. É só contar como me ajudou e pronto. Nosso advogado não vai deixar pressionarem você. Eu falei com ele.

Praxis franziu a testa no mesmo instante, puxando sua mão para soltá-la da de Aurelius. Ele não soube dizer o que tinha feito de errado de imediato, mas ficou muito claro, alguma coisa tinha acontecido.

— Falou? Por quê?

— Bem… Você parecia muito nervosa ontem. Saiu para pegar um ar e não te vi de volta até mais de uma hora depois. Eu fiquei preocupado…

— Eu não pedi sua ajuda, Aurelius!

A mulher se levantou do banco de uma vez, desvencilhando-se do marido para se sentar na outra ponta. Ela abriu o frigobar, pegando uma garrafa de água para si, e Aurelius não sabia se ela estava de fato com sede ou usando o frigobar como desculpa para mudar seu lugar no assento, mas qualquer que fosse a resposta, a mensagem estava clara.

Aurelius suspirou, e agora era ele quem encarava o lado de fora pela janela. Não devia ter esperado diferente. Sequer sabia fazer essas coisas? Flertar? Cuidar? Ser um casal? Estava há tantos anos casado com uma mulher com quem não tinha uma relação que não seria surpresa sequer se lembrar de como um relacionamento devia funcionar de fato. Talvez tivesse feito tudo errado. Talvez nem tanto, mas não fosse do gosto dela. Talvez tivesse acertado e ela apenas não estava afim. Não conseguia nem mesmo determinar entre esses casos qual seria o correto na situação.

Talvez devesse parar de tentar. Aceitar que qualquer faísca imaginada por ele entre os dois nos últimos dias tinha sido apenas isso, imaginação, e nada real o suficiente para respaldar seus crescentes sentimentos. Tinha desistido de ser feliz há muito tempo e devia ter continuado assim, sem esperanças tolas e sonhos irreais. Teria sido melhor.

A limusine parou na frente do Palácio Real e Aurelius desceu, enlaçando seu braço no de Praxis para seguirem para dentro do prédio. O local estava cheio de repórteres, e o homem conseguia imaginar seu nome nas manchetes no dia seguinte mais uma vez. Praxis, tão confortável com os flashes das câmeras quanto ele, virou o rosto o escondendo em seu peito. Aurelius tentou não se focar nisso. Ela estava apenas tentando se esconder.

Depois desse momento, enfim dentro do prédio e livres dos flashes, não houve muito com o que se distrair. Já era hora do depoimento e, a julgar pelas provas reunidas, prometia ser um evento bem rápido e direto. Era mais uma exposição de provas e depoimentos que um julgamento de fato, tendo tantos veículos de mídia previsto de forma muito acertada, na opinião de Aurelius, qual seria o destino daquela tarde.

O casal entrou no Salão Principal e se sentou nas cadeiras de testemunhas reservadas a eles. Havia uma pequena bancada de juízes ao lado esquerdo, uma pequena fileira de cadeiras centrais onde Marcellus, seu irmão Drausius e seu pai Aelius esperavam, tendo sido os três apontados como suspeitos no esquema. Já estando todos presentes e esperando, no instante seguinte um dos guardas anunciou a entrada do rei e da rainha, e assim o julgamento pôde começar.

Aurelius tinha sim a impressão de que seria rápido, tanto devido às provas reunidas quanto à pressão popular por um resultado imediato, não só em Attilan, mas indiretamente no restante do mundo, desejando acima de tudo encontrar logo um culpado para a situação. Mas mesmo toda essa sua certeza não poderia prepará-lo para o que aconteceu em seguida.

Depois de um breve discurso de abertura, feito pelo rei Boltagon em língua de sinais e traduzido por sua esposa Medusalith para todos ouvirem, a mulher fez a clássica pergunta de abertura do julgamento para o trio sentado à sua frente:

— Vocês estão aqui sob acusação de traição, tendo sido supostamente responsáveis por auxiliar pessoas externas a Attilan a adquirirem carregamentos de terrígeno agora sendo utilizados em todo o mundo para um ataque terrorista contra a raça mutante. Como vocês se declaram?

Marcellus foi o primeiro a responder.

— Culpado, Vossa Alteza.

E não mudou depois disso. Drausius e Aelius repetiram o mesmo veredicto, e a sobrancelha de Medusalith subiu bem devagar em surpresa com a resposta.

Mesmo Aurelius deixou o queixo cair devagar e, a seu lado, ele viu Praxis se inclinar para frente na cadeira, assistindo a situação com um interesse surpreendente, mas genuíno. Não havia nenhum motivo para os três serem réus confessos. Não havia atenuação de pena, não havia alívio. O crime era passível de morte mesmo em sua forma mais branda, e continuaria o sendo mesmo se eles confessassem culpa. Então… qual era a jogada?

— Bem — Medusalith disse, depois de conversar com o marido por alguns segundos. — Nesse caso, acredito que toda essa firula institucional não se faz necessária. Declaro aqui os réus culpados confessos, atribuindo a eles a responsabilidade pelo crime de traição e os condenando à pena de execução em praça pública. Vocês terão alguns dias a mais para colocarem suas coisas em ordem. No mais, essa sessão está encerrada.

Impressionante. Aurelius mal havia esquentado a cadeira onde se sentou e já podia se levantar dela. Ele assistiu chocado Medusalith e Boltagon deixarem a sala e, pouco a pouco, o júri foi dispensado, e ele percebeu que ele e Praxis podiam sair também.

Os dois se levantaram em silêncio, atordoados, e, enquanto caminhava com ela para fora, não pôde deixar de se perguntar o que tinha acabado de acontecer. Eles seriam executados de qualquer forma, por qual motivo tinham facilitado a vida da Família Real? Bem, tinham ganhado alguns dias a mais para organizar as coisas e dizer suas despedidas, mas… Seria por isso? Apenas por mais uns dias de vida?

Aurelius não poderia fingir entender os desesperos de alguém prestes a morrer. De repente, imaginou-se no lugar deles, sabendo estar diante de uma condenação da qual não se poderia escapar, e sabendo que uma confissão lhe daria alguns dias a mais. Talvez tivesse, sim, a mesma atitude.

Sentiu-se um tanto enjoado ao pensar nisso. Ele enlaçou seu braço ao de Praxis de novo enquanto saíam, abaixando a cabeça e sentindo a boca e a garganta ressecadas. Os repórteres aparentemente tinham descoberto muito rápido o motivo de não ter acontecido uma sessão e todos terem sido dispensados tão rápido, e já estavam cheios de perguntas para fazer.

— Senhor Chrysantheos! Senhor Chrysantheos, por que o senhor acha que os réus seguiram por essa rota?

— Eu não sei… Com licença, minha esposa e eu estamos um tanto cansados…

— Senhora Aristarche, é verdade que a senhora foi a mente por trás da dedução da identidade dos réus?

A mulher levantou o rosto para a repórter um tanto incomodada e Aurelius de repente se sentiu puxado, quase arrastado por Praxis enquanto tentavam desbravar o mar de repórteres e desviar dos microfones enfiados em seus rostos. Mas era difícil. Mesmo Aurelius, com quase dois metros de altura, estava tendo dificuldades, e olhando para a limusine parada na rua a metros de distância, viu que seus seguranças tinham dificuldade também.

— Senhor Chrysantheos, como é ser o novo patriarca da família?

O homem parou onde estava, virando-se para trás. A jornalista que havia feito a pergunta não parecia esperar se deparar com um Aurelius surpreso, tendo piscado assustada ao ver a expressão de confusão do homem.

— Oh, o senhor não sabe? Há poucos minutos, seu pai emitiu um ofício de titularidade passando a posição social da família para você. Meus parabéns!

Seu pai? Por que raios ele faria isso? Aurelius pegou o celular no bolso às pressas, ignorando por um instante os puxões de Praxis em direção à limusine. Ela não parecia interessada na situação, mas era um tanto urgente para ele saber do que se tratava. O homem viu logo de cara novas mensagens de sua mãe, nas quais ela explicava, em resumo, como seu pai tinha decidido nomeá-lo e se aposentar enquanto estava literalmente por cima de tudo e todos, em um momento tão alto de sua vida. Mesmo ainda não tendo filhos, tinha sido escolha deles fazer a transição em um momento no qual o nome da família estava na boca das pessoas e, de certa forma, a escolha era exatamente o tipo de coisa que seu pai faria, sem se importar em falar com ele ou perguntar se o momento seria propício para Aurelius. Teria de acontecer mais cedo ou mais tarde, por que não quando pudesse sugar ao máximo a popularidade conquistada por seu filho por conta própria?

Sanguessuga desgraçado.

— Não tenho nada a comentar — Aurelius respondeu, apertando o braço em volta do de Praxis e se empurrando entre os repórteres com mais energia até alcançar a limusine. 

Entrou no carro com a esposa, jogando-se no assento e respirando fundo, passando as mãos pelos cabelos. Seu pai não podia ter feito isso agora, não era nada justo consigo uma coisa dessas… Ele era obrigado a comparecer à execução por ser o investigador e testemunha principal do caso e, quando o fizesse, seria cercado de perguntas, fotos, incômodos e socializações com as quais não queria ter de lidar no mesmo dia no qual ia assistir três cabeças sendo cortadas. Como seu pai podia ser tão egoísta e insensível? Não podia esperar, duas semanas a mais que fossem, se queria tanto surfar na popularidade momentânea?

Mas daí, também, por que esperava diferente? Já devia ter imaginado. Era seu pai. E ele não valia nada.

Aurelius resmungou, abriu o frigobar e tirou uma garrafa de uísque de lá, bebendo direto do bico. Não adiantaria querer falar sobre o assunto. Sabia que Praxis não estava nem aí para ele.


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Notas finais do capítulo

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Além dessa, tenho vagas também para uma interativa original sobre revoltas civis. Acesse aqui:
https://www.spiritfanfiction.com/historia/a-rosa-do-tempo--interativa-19350882/

Considere também dar uma olhada nas minhas outras histórias? :D Eu tenho coisas para vários gostos ^^

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