Já era de tarde e finalmente o grupo de amigos de Anna-Ester havia se dispersado. Agora me encontrava entrando na grande biblioteca da faculdade, era um lugar antigo que tinha grandes estantes que vinham do chão até o teto repleta de livros.

Anna-Ester era estagiária lá, cuidava da organização dos livros e eu só notei isso quando a garota passou pela velha bibliotecária de cabelos cacheados já esbranquiçados que contrastava perfeitamente com sua pele morena se desculpando pelo atraso. Pegando uma espécie de avental marrom claro com bolsos realmente grandes que se ajustou de uma forma bonita por seu corpo, começando a empurrar um carrinho de madeira pelo local. Me senti orgulhoso por ter feito Anna se atrasar até aqui, até agora era visível o seu estado de cansaço por minha influência, mas estranhamente não me senti feliz com aquilo.

Passei a tarde toda dando novamente uma folga para Anna, afinal seu trabalho não tinha culpa de a pobre moça estar lidando com um encosto. Passando pelas mesas grandes da biblioteca era possível ver todos os tipos de pessoas, até mesmo seus encostos, não éramos uma espécie ignorante gostamos de aprender coisas novas.

Por curiosidade olhei o título de um livro de um espírito pálido e magro que segurava o livro com dedos ossudos: “101 receitas saborosas para preparar seu humano a molho italiano” resolvi ignorar esse é olhar para o seu colega ruivo á três cadeiras de distância: “Guia mundial de calvície humana, aprenda em três passos” havia fantasmas para todas as formas de pessoas. Andei mais alguns passos até ver um fantasma usando óculos escuros, na hora soube que se tratava de um visionário, eles foram pessoas que morreram de forma violenta na outra vida, a maior parte dos visionários morreram sem os olhos era uma realidade terrível, ainda mais quando se tentava ler um livro sobre: “As 10 maravilhas motivacionais que seu humano pode não ver sem você”, talvez ele tivesse pegado o livro errado, mas eu não tinha coragem suficiente para me aproximar do espírito para avisar o mesmo. Vi uma criança com um adorável exemplar de: “200 canções macabras de ninar” as crianças fantasmas eram realmente adoráveis e sem dúvida aterrorizantes.  Por último olhei para um fantasma grande e musculoso mas antes que eu pudesse ler o título de seu exemplar ele levantou os olhos raivosos em minha direção me fazendo apertar o passo para me aproximar de Anna-Ester, que caminhava alheia ao universo que estava embaixo de seu nariz, agora ela balançava levemente o rabo de cavalo – que tinha feito recentemente – no ritmo da música que tocava em seus fones.

Voltando a pensar nos fantasmas que havia visto sentados lendo a pouco tempo atrás comecei a imaginar. Que pecado eu tinha cometido em minha vida passada? Provavelmente não fui um visionário, meu corpo não carregava nenhuma cicatriz, não morri jovem demais e nem igualmente velho demais, provavelmente estava próximo dos meus 22 anos.

O que tinha sido? O que havia feito que me condenou a essa vida após a morte? Talvez eu tenha sido um homem maldoso, mesmo me sentindo particularmente menos inclinado a essa possibilidade, talvez um político corrupto? Mas antes que eu conseguisse responder minhas próprias perguntas, em um ato sensitivo empurrei Anna-Ester no mesmo minuto que ela trocava um de seus passos, fazendo a mesma bater um de seus pés atrás do outro e cair para frente empurrando o carrinho cheio de livros para frente. No mesmo segundo senti o vácuo que um exemplar grande e grosso de um livro passou em queda livre no lugar onde a garota de cabelos castanhos estava a segundos atrás, e se espatifar no chão com um som pesado e sólido. Me senti estranhamente conflitante, porque tinha feito aquilo? O livro iria acertar a garota em cheio, olhei para cima, onde o livro deveria pertencer e olhei novamente para a obra no chão, era robusto e da altura que tinha caído provavelmente faria Anna no mínimo desmaiar. Mas invés de deixar a garota lutar contra sua própria má sorte havia a empurrado, o que não deixava de ter seu valor na minha missão de dificultar sua vida, mas me senti novamente estranho como se tivesse traído um propósito muito bem delineado.

Me senti um pouco mais confortado quando olhei para frente e visualizei a garota se levantando e claramente irritada analisando a tela de seu celular, me aproximei da garota, novamente passando meu rosto por seu ombro olhando para a fonte de sua atenção. A tela do celular estava com uma trinca horrível que eu tinha certeza que não havia a minutos atrás, soltei o ar ainda sobre seu ombro em uma espécie de risada, mas me assustei quando a garota virou seu rosto em minha direção deixando sua face a centímetros da minha. Prendi minha respiração assustado e meus olhos se abriram surpresos pela proximidade, seu rosto estava tão próximo que conseguia sentir o calor que emanava de si, junto do leve cheiro de pêssego que sua pele carregava, provavelmente isso demorou muito menos que 5 segundos, mas foi o suficiente para me fazer se afastar assustado para trás, eu apenas não esperava tropeçar no livro robusto atrás de mim e cair no chão revestido por um carpete marrom claro do local. Quando levantei minha cabeça do recém tombo ainda consegui visualizar Anna-Ester voltando sua face alheia a todos os acontecimentos recentes para frente.

Ela voltou a andar indo atrás de seu carrinho com os livros sem se dar conta do livro grosso no chão junto de seu fantasma.

Comecei a me levantar no mesmo momento que o livro que havia provocado minha queda se abriu mostrando uma história interessante, parecia um daqueles romances trágicos, é realmente ele quase provocou muitas tragédias a poucos minutos atrás. Mas mesmo assim não consegui deixar o grosso volume para trás, anotei a estante que ele pertencia e o peguei em minhas mãos o fechando e olhando para seu título “A Tempestade que pertence a seus olhos”, o título era no mínimo clichê, mas estranhamente me senti cativado pelo livro velho em minhas mãos.

Com ele agora pressionado contra meu peito voltei a andar atrás de Anna-Ester.