Chuva de verão escrita por Juillet


Capítulo 4
Capítulo 4




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Depois de nos apresentarmos formalmente, eu guardei o caderno e nós continuamos a conversa, que durou o restante da noite. Eventualmente acabei explicando a ele meu diagnóstico, falando sobre a morte do meu pai e minha curta expectativa de vida. Alberto não pareceu impressionado com isso, nem me deu um daqueles olhares de pena com os quais eu já estava tão acostumado. Na verdade, ele parecia achar aquilo tudo interessante.

— Conheci alguns homens que tiveram Papulária. É uma doença bastante antiga, sabe disso? Fazia tempo que não encontrava alguém que a tivesse.

— Então o senhor conhece muitas pessoas.

— De fato, já conheci muitas pessoas.

Enquanto conversávamos, Alberto preferiu não tomar nada, mas insistia que eu continuasse bebendo. No final da noite eu já me sentia bêbado. Meu pai me ensinara a beber quando era mais novo, mas nunca foi um costume que adquiri. A embriaguez definitivamente me deixava desinibido, falando facilmente o que viesse à minha cabeça, tratando Alberto como se fosse um velho amigo. Sequer passava da meia-noite quando ele se ofereceu para me levar até a pensão que eu alugara, oferta que eu prontamente aceitei. Não estava acostumado a dormir tão tarde e o cansaço finalmente começava a tomar meu corpo. Além disso, não tinha certeza de que saberia voltar naquele estado. 

Eu disse a ele o que lembrava do endereço e ele imediatamente reconheceu o local. Explicou que ele mesmo já havia se hospedado naquela pensão e que era, de fato, boa para o preço baixo. Quando chegamos lá, ele ainda fez questão de me levar até o quarto, me ajudar com o casaco e os sapatos e me colocar na cama. 

Descobri o segredo de Alberto quase dois meses depois de nos conhecermos. Nos encontramos diversas outras vezes após aquela noite na taverna, todas durante a noite, e tivemos um caso. Ele parecia conhecer bem a cidade, me servindo de guia pelos diversos bares, restaurantes e casas noturnas que se encontravam em todo lugar. Ele também me levou ao hotel em que ele estava hospedado, um lugar muito mais luxuoso que minha pensão. Ficou claro para mim que aquele homem tinha dinheiro, e eu achava mesmo que era por esse motivo que ele nunca estava disponível durante o dia. Eu deixava ele ler meu diário, no qual eu escrevia tudo o que acontecia comigo de dia, e ele dizia gostar muito. Achava até que eu deveria escrever uma história e publicar um livro. 

Em uma noite em que não havíamos combinado de nos encontrar, eu decidi surpreendê-lo e apareci no hotel sem mandar um bilhete avisando. O homem que cuidava do hotel já estava acostumado comigo e facilmente me deixou subir. Eu abri a porta do quarto de Alberto e entrei chamando seu nome, sem saber que veria uma das coisas mais estranhas da minha vida. Sobre a cômoda ao lado da cama havia o corpo morto de um animal que parecia ser um esquilo, e sentado à mesinha de dois lugares estava Alberto. Ele segurava outro animal perto da boca e seu rosto estava manchado de sangue. Os animais ainda estavam com suas pelagens intactas.

Eu demorei um pouco para entender o que estava acontecendo. Primeiro eu achei que ele estava comendo a carne crua dos animais, mas logo percebi que não era isso. Eu não corri, não gritei ou qualquer grande reação de susto, porque eu não estava assustado. Me parecia apenas uma situação anormal e eu gostaria de ouvir uma explicação. 

Alberto também parecia bastante calmo. Ele retirou os corpos dos animais e os levou ao banheiro, onde também aproveitou para limpar o sangue do rosto. Por algum motivo, suspeito que ele sabia que eu não sairia correndo e gritando aos quatro cantos o que tinha visto. Eu o esperei e ele retornou como o Alberto de sempre. Quando ele me explicou tudo sobre ele, diversas coisas passaram a fazer sentido. Alberto era o que nós chamaríamos de vampiro, bastante parecido com os vampiros das lendas. Eu não conhecia muitas histórias sobre vampiros. Na verdade, só sabia a respeito do assunto por conta do meu interesse na biblioteca da cidade grande, tão maior e mais completa do que a pequena biblioteca do Olavo, um senhor bastante velho que possuía diversos livros em sua casa e os disponibilizava para a população da minha cidade de origem.

O que mais me deixou curioso sobre Alberto foi o fato de que nas histórias os vampiros bebiam sangue de humanos, e não de animais, mas ele rapidamente me tranquilizou.

— Sangue é sangue, Francisco. Somos tão animais quanto aqueles ali. – Ele fez um gesto apontando para o banheiro. 

Naquele dia não fiz muitas perguntas. Ele me explicou o que eu precisava saber, o motivo de não poder sair durante o dia, o motivo de nunca beber ou comer quando estávamos juntos. Também explicou que havia nascido há muito tempo e que seu corpo jamais envelheceria.

Minhas lembranças daquele dia só existem por conta do meu registro no diário. Eu estava tão calmo, tão silencioso ouvindo Alberto falar de sua existência sobre-humana, completamente esquisita e diferente de tudo que eu conhecia em minha vida. Eu prometi a ele que não contaria a ninguém, saí do hotel e voltei para a pensão. Me deitei na cama e dormi sem sequer escrever no diário. No outro dia eu tratei de fazer isso, é claro, e não lembraria de muitos detalhes além da imagem dos animais mortos se não tivesse registrado. Era como se minha calma tivesse anestesiado todos os meus sentidos: a visão de Alberto, as palavras de Alberto, a distância entre Alberto e eu enquanto ele me contava suas condições vampirescas. Mas um tempo depois, quando o efeito da anestesia já tinha passado, tudo aquilo virou não mais que um borrão em minhas memórias.

Eu precisei de uma semana para contatá-lo. Por sorte, eu nunca fui uma pessoa religiosa e não acreditava que existia uma divisão bem definida entre bem e mal. Em vários momentos durante aquela semana eu me perguntei se Alberto não estava mentindo, inventando uma história maluca. Me perguntei se ele mesmo não havia perdido a cabeça e se eu devia voltar a falar com ele em algum momento, se não seria melhor me afastar dele e fingir que nada havia acontecido. Escrevi muito em meu diário naqueles dias.

Minha decisão final foi procurá-lo. Certamente não foi a melhor ideia possível, visto que de um jeito ou de outro Alberto era uma pessoa perigosa, sendo louco ou sobrenatural. Entretanto, tantas coisas se encaixaram após as explicações dele e eu não podia evitar admitir que aqueles quase dois meses foram suficientes para eu desenvolver afeto por Alberto. Eu não queria evitá-lo, essa é a verdade.

Então escrevi um bilhete e mandei entregar a ele, dizendo que eu apareceria outra vez no hotel à noite. Assim que eu cheguei, antes mesmo de bater na porta do quarto de Alberto ele se antecipou em abrí-la. 

— Consigo sentir seu cheiro de longe – ele explicou para minha cara confusa.

— Mas aquele dia…

— Havia o cheiro de sangue.

Eu assenti com a cabeça, compreendendo. 

Alberto abriu passagem para eu entrar no quarto. Primeiro nós nos sentamos e conversamos. Aquele foi o momento em que eu pedi mais explicações. Perguntei sobre tudo: todas as coisas que o tornavam diferente de um ser humano normal. Perguntei sobre a vida dele, o lugar onde ele nasceu, a duração de sua vida. Alberto foi paciente. Mais tarde ele me contou que nunca havia falado sobre isso com um humano, nunca tivera motivos para revelar sua identidade vampiresca.

— Eu fui descuidado. Eu deixei isso acontecer.

— Parte da culpa é minha, eu deveria ter avisado que viria.

Alberto não respondeu. Ficamos em silêncio por um momento. Eu olhei para o rosto de Alberto e pela primeira vez desde que o havia conhecido ele parecia sozinho. Alberto parecia sozinho no mundo.

— Eu estava planejando terminar minha vida quando nos encontramos na taverna, sabia?

Fiz que não com a cabeça.

— Por quê?

Ele suspirou e recostou as costas na cabeceira da cama. Então olhou para mim.

— Há uma falta de significado na existência das coisas, Francisco. E eu não posso mudar isso vivendo nas sombras da noite. Nunca pude. Possuir a eternidade é a coisa mais egoísta que me aconteceu. Eu tenho muito dinheiro, eu falo diversos idiomas, eu estive em diversos lugares no mundo. Eu vi a vida das pessoas mudar e depois mudar outra vez. Por mais que eu faça parte de tudo isso, nada disso faz parte de mim. 

Eu não entendi Alberto naquele primeiro momento, mas não demorou para eu perceber o que tudo aquilo significava para ele. De certa forma, nós não éramos tão diferentes. O que eu estava fazendo naquela cidade se não absorver o máximo possível do mundo do jeito que ele era para em seguida desaparecer? Eu sabia que não tinha o direito de ficar, criar laços e raízes como qualquer outra pessoa faria. Naquele mundo eu era uma chuva de verão passageira que aparece para provar o suor e a sujeira nos corpos das pessoas e vai embora. A diferença é que eu não tinha a opção de continuar por lá, por mais desconectado de tudo e todos que eu estivesse, e pensar nisso me fez chegar à conclusão de que eu não gostaria de ter essa opção. 

Mas eu não pensei em nada disso naquele dia. Eu disse a Alberto que não me importava, que ele era uma boa pessoa apesar de tudo. Eu não estava assustado, eu não pretendia ir embora tão cedo. Disse que ainda planejava ficar em Formosa do Sul até o Natal e que após isso partiria para um lugar novo. Disse também que não rejeitaria um companheiro de viagem, caso ele estivesse interessado.

A verdade é que eu queria muito que Alberto aceitasse ficar comigo por mais tempo.


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