Chuva de verão escrita por Juillet


Capítulo 2
Capítulo 2




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A vida com meu pai pendurado na parede continuou quase a mesma. Dias repetidos de acordar, assistir as aulas, trabalhar e dormir. Minha mãe uma pessoa mais calma nos cômodos da casa, deslocando-se entre eles silenciosamente. As risadas de Jorge e Isabela baixinhas nos cantos, como se tivéssemos acabado de enterrar nosso pai e fosse desrespeitoso falar em voz alta.

Meu desrespeito à imagem de seu último dia de vida encolhido no colchão não como se fosse gente, mas alguma outra coisa enrugada e ossuda assustando as íris dos meus olhos, me fazendo pensar em mim mesmo em algum futuro não tão distante e de repente minha cara enrugada prestes a morrer. 

Mas eu afastava a imagem da cabeça e me concentrava nas risadinhas quase inaudíveis vindas do outro cômodo. 

Nós aprendemos a ignorar o que houve. Esquecer a sentença de morte amarrada no meu tornozelo e no de Jorge e fingir que a vida é longa, tão infinita quanto o horizonte pintado de azul na praia.

Visitamos a praia naquela primavera. Um dia quente demais para o meu gosto, perfeito para as brincadeiras de Jorge e Isabela iluminadas pelos raios de Sol. Estendemos um pano sob a sombra de uma árvore, longe o suficiente do mar para transformar as pessoas nadando em pontinhos cercados de água. Minha mãe gritando para que meus irmãos não corressem longe demais e minutos depois suas bochechas e ombros pintados de rosa.

— Será que vai descascar?

E meu pai em algum lugar além do mundo dizendo que não importava. Meus olhos fixos na areia da praia escorrendo pelos meus dedos e todas aquelas vozes se misturando na sombra da árvore, como se não pudesse haver paz apesar do rosto sereno e os olhos fechados da minha mãe. Os pontinhos percorrendo a praia em movimentos despreocupados, certos de que haveria gente suficiente no mundo e mães e irmãos suficientes para segurar as mãos de todos eles e garantir que o dia seguinte chegaria, assim como todos os outros.

Quando os olhos da minha mãe abriam de novo, a mesma hesitação de sempre sobre as pernas em que caminhávamos e os braços com os quais Jorge e eu a abraçávamos na cozinha, o cheiro de alho e cebola viajando os espaços até nossos narizes e na força do aperto que ela distribuía igualmente no ombro de cada um, eu quase podia ouvir as palavras passando por sua mente.

— Será que eu mesma enterrarei meus filhos?

Ou talvez fossem apenas os ecos dos meus batimentos cardíacos oscilando em meus ouvidos na sombra da árvore, o mar sumindo no horizonte e eu me perguntava o que poderia existir depois do oceano.

Foi em um desses meses após a morte do meu pai que a família Nascimento apareceu em nossa casa em uma tarde de sábado. Um casal com dois filhos pequenos, dois meninos de seis ou sete anos. Moravam não mais que um quilômetro de distância de nós e pararam seu veículo de duas portas em frente ao nosso jardim. Lembro de espiar pela janela com Jorge enquanto o senhor e a senhora Nascimento saíam do automóvel, seguidos dos dois filhos. Levavam com eles duas grandes bolsas, as quais pareciam estar abarrotadas de coisas. 

Minha mãe imediatamente chamou os três filhos e nos mandou trocar de roupa, pois não estávamos apresentáveis, enquanto ela mesma passava as mãos nos cabelos e ajeitava o avental. Estávamos acostumados a receber visitas de vizinhos abastados desde que meu pai adoeceu. Todos pareciam comovidos com a nossa situação, sabiam que meu pai não podia mais trabalhar e que, apesar de não sermos miseráveis, minha mãe virara uma viúva com três bocas para alimentar. Até me arrumaram trabalho depois que meu pai ficou debilitado.

Nós recebemos a família em nossa sala de estar, meu pai da parede observando a senhora Nascimento alisar a saia e com um sorriso forçado pedir baixinho para os filhos ficarem em silêncio, enquanto o senhor Nascimento andava de um lado para o outro fumando.  

— Nem imagino o que você está passando, dona Clara. Não sei o que faria se soubesse que meus filhos… – A senhora Nascimento tapou a boca com uma mão e olhou para os dois meninos brincando no chão. – Se soubesse que eles também podem ter a doença. 

— É, madame. Infelizmente, não é apenas uma possibilidade. Eles realmente terão a doença um dia. 

A senhora Nascimento limpou a garganta e abriu outro de seus grandes sorrisos, pegando uma das sacolas e começando a tirar os objetos lá dentro.

— Nós gostaríamos de deixar algumas coisinhas com vocês, não é mesmo, querido?

O senhor Nascimento assentiu e soprou fumaça. 

Dentro das sacolas ela tirou roupas usadas, brinquedos coloridos de madeira e até alguns livros pequenos de histórias para crianças. Também havia um livro em branco, no qual a senhora Nascimento disse que podíamos escrever ou desenhar. Isabela e Jorge já haviam se aproximado dos brinquedos espalhados pelo sofá, enquanto minha mãe avaliava as peças de roupa e agradecia a imensa bondade da família em visitar-nos. Eu segurei o caderno em branco na mão, alisando a capa de couro preto e depois as páginas grossas. 

— Você sabe ler e escrever, rapaz? 

O senhor Nascimento não estava mais fumando.

— Sim, senhor. Mas não pratico muito. 

Ele enfiou a mão dentro do paletó e puxou dali uma caneta.

— Vou mandar alguém trazer a tinta. Não escreva qualquer coisa, escreva algo bom.

Ele me entregou a caneta, um objeto muito mais pesado do que eu imaginava.

Jorge e eu assistimos pela janela o carro da família Nascimento sumir na estrada. Eu fiquei com a caneta e o livro em branco.


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