Valsa da Esperança escrita por Liquor


Capítulo 2
Ascenção


Notas iniciais do capítulo

Valsa dos Flocos de Neve: https://www.youtube.com/watch?v=UYaIQNjAX_8



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— Yuuri? – a voz do homem ecoou pelo teatro vazio, fazendo o jovem japonês estremecer – O que faz aqui? 

Ouvir seu nome sair da boca dele sempre o fazia ter sentimentos estranhos. Eles trabalhavam juntos e muitas vezes dançaram no mesmo palco, mas ele o intimidava, admirava e o atraia, num grande bolo de sentimentos que sempre o fazia parecer que não sabia absolutamente nada de língua russa. 

Viktor era uma lenda viva quando se tratava de ballet, não importava o quanto ele evoluía na dança, o homem russo parecia estar anos à frente. Ele parecia ter nascido para isso, e era isso que mestres, público e dançarinos diziam de forma ferrenha. 

— Viktor. Oi. – a voz saiu abafada pela máscara, e ele se xingou mentalmente – E-eu não sabia que tinha alguém aqui, desculpe, eu vou embora. 

Ele continuou xingando em silêncio ao perceber que a máscara ainda o atrapalhava, e decidiu tirar ela.  Ele estava longe, então ninguém poderia se infectar. Viktor ainda o olhava de forma intensa. Ou ele olhava normal? Com aqueles olhos profundos, era difícil saber. O ar não filtrado que entrou em seu pulmão parecia tão fresco que um alívio tomou seu corpo. 

Respirar era ótimo. 

— Espere. – ele ouviu o russo chamar quando estava prestes a se virar, só então percebendo que a música tinha acabado. Nervoso com o pedido, o rosto de Yuuri se avermelhou – Por que está aqui?

A pergunta o pegou de surpresa, e ele pensou um pouco antes de responder, já que depois de tanto tempo, parecia difícil formular frases que fizessem sentido. 

— Eu queria… – suspirando frustrado, tudo que estava prestes a dizer parecia idiota. Dançar? Ver o teatro? Ensaiar? – Eu queria… – Repetindo para tentar assertividade, a frase mais uma vez morria na boca, com o rosto cada vez mais vermelho, ele considerou seriamente sair correndo. 

— Dançar? – o Russo interrompeu seus pensamentos ansiosos, e o dançarino mais jovem o olhou surpreso. – Yuuri, você veio dançar?

Seus olhos encheram de lágrimas, porque sim, ele queria. Ele queria muito dançar. Não só repetir movimentos em casa, nem dançar variações sem ninguém olhando. Ele queria dançar em um palco, mesmo que com uma única pessoa olhando, segurando a mão de algum companheiro, sincronizando movimentos, emoções e paixão com os sons de uma orquestra clássica. Ele queria contar histórias com a alma e encantar todos os tipos de público. Dançar o pacote completo, e não apenas manter a forma para um dia que parecia nunca vir. 

Reprimindo as lágrimas, ele apenas acenou, atenuando o olhar intenso do companheiro de trabalho. 

O som dos seus pés descalços tocando o chão sem cuidado ecoava alto pelo ambiente, e Viktor ia em direção a uma garrafa de água anteriormente esquecida em algum lugar do palco, sentando-se ao tomar um gole. 

— Eu nunca o vi aqui, desde o início da pandemia. – o dançarino começou a falar e Yuuri se aproximou do palco hesitante. – estive aqui durante todos os dias da pandemia, e eu nunca o vi. No início eu compreendi, era o início e a fase mais restritiva, eu mesmo passei alguns meses vindo sozinho. – continuando, ele se levantou, indo até a beirada do palco, sentando-se enquanto encarava o jovem que se aproximava – Mas quando todos se acostumaram, um a um começaram a aparecer para ensaiar, você foi o único a se resignar às aulas por vídeo. Eu sempre me perguntei o porquê disso. 

Yuuri parou a poucos metros dele, olhando-o confuso. Ele não ficou surpreso ao saber que Viktor o conhecia, afinal eles eram da mesma Companhia, mas ele ficou surpreso por saber que ele notou sua ausência. 

As vezes ele tinha a impressão que tudo que Viktor tinha em sua cabeça era dança, dança e dança. Saber que ele notou um dos vários dançarinos em sua companhia era estranhamente desconcertante. Um arrepio percorreu sua espinha enquanto olhava diretamente nos olhos do russo à sua frente. 

— Eu tinha medo… – dessa vez, a frase saiu facilmente de seus lábios, como se o nervosismo tivesse desaparecido. – De entrar aqui e nunca mais querer ir embora. De entrar e perceber que eu nunca mais ia dançar em um palco. A pandemia tirou muito de mim, e eu achei que se eu visse o local que eu tanto amava ia tirar de mim a minha sanidade que já estava por um fio. – explicou, ficando de repente muito consciente da ausência da máscara do seu rosto. E se ele estivesse infectado e prejudicasse Viktor? As milhares de histórias de atletas que sofreram sequelas após contrair o vírus rodopiavam em sua mente, e ele se afastou, colocando a mão na boca. 

— Yuuri. – percebendo seu desespero, o russo chamou seu nome de forma suave, descendo do palco e indo em direção a ele. – Está tudo bem, não precisa ter medo. Eu já fui infectado e estou com anticorpos ativos. Fiz o exame essa semana, ninguém vai se infectar aqui, nem eu e nem você. – a mão que de repente encostou em seu ombro o assustou, mas as palavras o acalentaram um pouco, e a culpa de ser capaz de prejudicar aquele que tanto admirava desvaneceu um pouco. 

A mão quente por cima da roupa de inverno o fez perceber que ele estava com muito frio mesmo estando agasalhado e inconscientemente ele pousou sua mão que estava extremamente gelada pela falta de luvas na mão em seu ombro. 

Viktor o olhou assustado e ele tirou a mão, envergonhado pelo ato impulsivo. 

— Por que sua mão está tão fria? Saiu sem luvas? – O russo perguntou, agarrando a mão envergonhado e analisando de perto, o calor de seu corpo quente pelo exercício recente deixando sua mão cada vez menos vermelha. 

— E-está tudo bem – Yuuri recolheu a mão nervoso, o coração acelerando novamente. Ele sempre soube que Viktor era uma pessoa linda, mas ver de perto era sempre um exercício de autocontrole. 

Desde que começou a trabalhar com o russo, ele precisava controlar os pensamentos intrusos da paixonite quase hormonal de tão descontrolada. O seu corpo reagia a cada movimento dele, seja nos palcos ou em conversas descontraídas nos corredores. O cabelo platinado parecia tão macio e os olhos azuis tão intensos e gentis que para o japonês era difícil não se apaixonar. E ele estando ali agora a sua frente era como se as suas fantasias mais secretas estivessem se concretizando. 

— Não está. – ele respondeu – Você precisa se aquecer. 

Largando suas mãos, ele subiu de volta ao palco e Yuuri imaginou que ele fosse buscar roupas ou algo do tipo, mas ele alcançou um controle que estava no chão do imenso palco e apertando algum botão, o som da Valsa dos Flocos de Neve voltou a tocar. 

— Venha. – Estendendo sua mão, ele anunciou o convite. – Dançar é a melhor forma de esquentar o corpo. 

Como se estivesse hipnotizado, Yuuri aceitou a mão com o coração estourando desesperado em seu peito, rapidamente se livrou do casaco pesado e dos sapatos, largando-os no início do palco. De primeira, o frio o atingiu com força total, mas conduzido pelo outro, ele tentou ser forte. 

Não negaria, estava com medo. Desde o início da pandemia que ele não dançava com outra pessoa, e a primeira que dançaria depois de tanto tempo era ninguém mais que Viktor Nikiforov, o melhor bailarino do mundo e sua paixão secreta. E talvez agora, nem mais tão secreta assim, ele imaginava que seria impossível não ver os sentimentos estampados em seu olhar. 

As primeiras notas da música já tinham começado a um tempo, soltando sua mão, Viktor deu passos que pareciam quase tímidos. Aquela música em específico era feita para ser dançada com dezenas de bailarinas no palco, que com duas pessoas incertas parecia grande demais, com muitas possibilidades, o que fazia até mesmo o melhor bailarino do mundo dançar de forma hesitante, apesar de toda a experiência. 

Os saltos e giros que começaram tímidos ganharam vigor, e Yuuri tentou acompanhar o mesmo sem atrapalhar, às vezes tentando lembrar e imitar a coreografia original, e outras apenas saltando e dando piruetas a esmo. 

Aos poucos, o corpo gelado começou a pegar fogo como se estivesse prestes a entrar em combustão. Os passos ficaram mais ousados conforme a evolução da música e ele sentiu a liberdade de dançar mais perto do outro enquanto a música ia atingindo seu clímax.

Quase como um flerte sem palavras, o sorriso Viktor brotou em seu rosto suado, e ele se aproximou, segurando a cintura do dançarino japonês, que pego de surpresa, soltou um gemido quando foi levado ao alto como se fosse a protagonista daquela peça. Viktor o levantou com uma facilidade assustadora, girando e girando, enquanto os olhos de Yuuri olhavam o teto cheio de luzes do palco. 

De volta ao chão, ele olhou o outro bailarino levemente atordoado, enquanto um sorriso bobo nascia em seu rosto. 

Era aquilo. Era aquilo que ele sentia falta. A animação que pressionava seu coração enquanto dançava, o contato próximo com outro dançarino. A arritmia causada pelo amor que ele sentia pela dança. 

Se sentindo cada vez mais corajoso, ele juntou suas mãos com as do russo e as guiou para sua cintura, de frente um para o outro, entendendo o recado, o russo o levantou novamente enquanto giravam sem realmente se importar com nenhum ritmo mais. 

Eles rodaram e rodaram, com risos como os de crianças ecoando pelo teatro vazio, até ficarem tontos e Viktor perder a firmeza nos movimentos, acompanhando o fim da música diminuindo cada vez mais enquanto pousava o outro com delicadeza no chão.

Ainda abraçados, quando a música finalmente cessou, tudo que Yuuri conseguia escutar além do próprio coração que batia como um tambor descontrolado era a respiração ofegante e quente do outro, que tinha os olhos azuis fechados. 

— Realmente… – Yuuri começou, com a voz levemente trêmula pelo esforço repentino. – Dançar esquenta bastante. 

Os olhos do homem à sua frente abriram-se de repente, e sua visão foi tomada por aquele azul límpido que o encantava desde seus primeiros dias na Companhia. Ainda ofegante e sem dizer absolutamente nada, ele apenas se aproximou mais, tornando a distância mínima entre os rostos nula ao beijar os lábios do jovem dançarino. 

Yuuri estava surpreso e até mesmo chocado, mas não descontente. Ao contrário dos passos iniciais daquela dança em dupla improvisada, aquele beijo não continha nenhuma hesitação, e a mão em sua cintura trouxe ele mais para perto, como se fosse que se fundissem em uma única pessoa. 

Era engraçado como até aquele momento, o japonês não tinha de fato percebido o quanto sentiu falta de tanta coisa. De pessoas, da dança. De Viktor. 

Como ele poderia ter pensado que poderia viver sem dançar? Por que deixou a esperança ir embora? A magia do natal que ele tanto tentava ignorar, e a Valsa dos Flocos de Neve que sempre o animaram nunca deixaram de existir, mesmo em meio a pandemia, e como todas as outras vezes que esteve em apuros na sua vida, foi o ballet que o salvou. 

Talvez e apenas talvez, o doce sabor daquele beijo tivesse tido uma grande influência naquela retomada da esperança, mas aquilo ele deixaria para analisar depois. 

Agora ele só queria ficar naquele abraço terno que parecia eterno. E segurar aquelas mais que o guiariam para o futuro, mesmo que ele fosse impossível de garantir. 

O futuro em que ele ainda amava o ballet. Um futuro em que ele estaria novamente e de forma completa ao lado de Viktor em um palco.

Um mundo sem coronavírus nem o tal do novo normal. 

Não seria tão fácil, nem rápido. Mas seria

E por agora, junto ao doce beijo de Viktor, era o suficiente. 


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