Valsa da Esperança escrita por Liquor


Capítulo 1
Queda




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/798222/chapter/1

O som rítmico do relógio na sala do seu pequeno apartamento em Moscou se tornava cada vez mais ensurdecedor. Nada mudava. 

O tempo passava e a pandemia de coronavírus ainda mantinha refém os espetáculos de ballet em todo mundo. 

Era 24 de dezembro de 2020, e nessa época do ano, eles já estariam apresentando nos palcos a famosa peça de natal, O Quebra Nozes, um dos maiores clássicos do ballet mundial. Yuuri dançaria alegremente em volta dos protagonistas, apreciaria as jovens bailarinas dançando a hipnotizante Valsa das Flores. Assistir esse espetáculo, mesmo que por trás das cortinas enquanto esperava sua vez de entrar no palco era como assistir a magia de natal atingir o seu pico. 

2020, o ano que manteve a dança refém. 

As aulas on-line eram torturantes, o “descanso”, enlouquecedor. Olhar suas sapatilhas de ballet lhe causava náusea. Onde estaria seu amor pela dança?

Um amor que fora cultivado por mais de 20 anos, que nem os repetitivos ensaios, os professores cruéis, as lesões e as críticas foram capazes de abalar, era agora ameaçado por algo que nem poderia ser visto a olho nu. 

Às vezes, Yuuri acreditava que esse entusiasmo tinha ido com o último suspiro das milhares de vítimas da pandemia. Nem mesmo as vacinas traziam esperança, o bailarino sentia que nem mesmo elas iam trazer a dança de volta.

Novo normal? Patético. Ele não queria nada novo, ele queria o clássico. O clássico abraço, o clássico sorriso, a clássica aglomeração no palco. 

O bailarino chegava a sonhar com o palco, um sonho frequente. 

Começava com o ato dos Flocos de Neve em que as dezenas de bailarinas ocupavam o palco, graciosas como os mágicos flocos que sempre agraciavam o hemisfério norte em dezembro. Para um amante de neve como Yuuri, aquele era uma de suas danças favoritas, independente do momento da sua vida ou do papel que ocupava no palco, se era no ensaio ou no espetáculo, ele sempre tirava um tempo para assistir essa parte em específico. Porém, esse sonho logo se tornava pesadelo, pois o branco das vestes das bailarinas apareciam em forma de máscaras cirúrgicas em seus rostos, e uma a uma, elas iam caindo no chão enquanto tossiam buscando por ar, desesperadas e aterrorizadas. 

E com a imagem assustadora interrompida por sua consciência despertando do sono, Yuuri acordava suando assustado, com lágrimas quentes e amargas escorrendo pelo seu rosto. 

Esse pesadelo o acordou de sua soneca da tarde e olhando o relógio ele via que não passava de 18h, tremendo, ele se levantava em direção a geladeira em busca de água. 

Por alguma razão, o tique-taque do relógio parecia alto demais. Alto e lento, torturante como os quase 10 meses sem pisar num palco. Com o rosto ainda molhado e o coração acelerado, ele sentou no chão da cozinha tentando a todo custo parar de escutar o relógio. 

Ao mesmo tempo que ele queria que o tempo passasse rápido, ele não queria sentir esse tempo. Ele já não aguentava mais.  

Não era como se em 10 meses ele nunca tivesse saído do apartamento dele, e para falar a verdade, ele até mesmo tinha visitado a família no Japão. Mas na ínfima esperança de a situação ser controlada, ele nunca conseguiu de fato abandonar a Rússia, lugar onde a Companhia em que dançava atuava. 

Entretanto, ninguém era de ferro. Ainda que esperançoso, ele estava exausto daquele sentimento de impotência. 

Sem os palcos, Yuuri Katsuki se sentia vazio. 

E sem O Quebra Nozes, o natal não era a mesma coisa. 

Sufocado no próprio desespero, o jovem bailarino deixou o prédio em que vivia em um impulso. Ele estava decidido, ele iria até a Companhia de dança, e visitaria o palco. Nem que fosse para dançar sozinho, ou só olhar de longe enquanto sentia falta. Ele não sabia se aquilo ia fazer com que se sentisse melhor, mas pelo bem de sua sanidade, ele precisava fazer. 

O jovem levantou-se do chão gélido e tentou se arrumar o mais rápido possível, saindo com poucos pertences do pequeno apartamento em que vivia, pedindo um Uber enquanto esperava o elevador. Xingou baixinho em japonês quando percebeu que esqueceu as luvas em casa, mas já não tinha mais tempo para voltar. 

Entrou no elevador e deixou o mesmo minutos depois, seguindo em direção a saída do prédio, onde o carro com o motorista levemente desanimado o esperava. 

O tempo de viagem não foi muito longo, já que a Companhia não era muito longe de onde morava. Fazia muito tempo que não entrava ali, na última vez ele nem ao menos precisava usar máscara. Ele possuía acesso ao lugar, mas uma série de medos o impedia de ir até lá. 

Medo de perceber que não queria mais dançar. 

Medo de contrair o vírus e isso afetar a sua capacidade de dançar. 

Medo de nunca mais conseguir sair de lá de tanta saudade. 

Aqueles sentimentos guardados ao longo de um ano difícil iam ser finalmente ser postos à prova, ao sair do automóvel ele primeiro sentiu o impacto do vento invernal no seu rosto e em suas mãos e tremendo ele olhou a construção que já se misturava lentamente ao cenário noturno da cidade russa, adornado pela palidez da neve acumulada em algumas partes. 

Um arrepio desceu pela sua espinha, e ele não sabia dizer se era de frio ou apenas um reflexo do reencontro com o local que foi seu abrigo pessoal por tantas horas do seus dias a pouco mais de um ano. 

Cautelosamente, ele entrou pelas portas com a permissão de um segurança, e sentiu a diferença gritante de temperatura ao entrar no ambiente aquecido.

O coração estava acelerado, como a primeira vez que visitara o lugar, quando ainda era um estudante. A sensação de descobrimento era semelhante, mas isso entristecia Yuuri. 

Fazia tanto tempo que não entrava ali, que mal lembrava como se movimentar dentro do lugar que tanto amava. 

Poucas pessoas estavam ali, a maioria eram funcionários da segurança e alguns poucos colegas que ele conseguia reconhecer nas salas de ensaio individuais, que dançavam concentrados enquanto fingiam que o mundo não estava à beira do colapso. 

E na verdade, ele sentia um pouco de inveja. Ele poderia ter feito isso também, ele deveria. O estúdio improvisado em seu apartamento não era equipado da melhor forma, mas ele insistiu em dançar apenas ali. Junto a sua webcam enquanto tentava desesperadamente não fingir que a conexão caira para fugir da aula. 

Como parecia que ele nunca mais ia dançar, muitas vezes ele não conseguia ver sentido em continuar ali. Por isso, ver a determinação de seus colegas era, de certa forma, reconfortante. Ele sabia que não era o único sofrendo, mas ver aquilo com seus próprios olhos depois de tanto tempo era certamente reconfortante. Com um cumprimento silencioso e invisível, ele seguiu em direção ao local que tanto queria ver. 

O teatro onde performou diversas peças, em diversos papéis. O lugar onde viveu diversas realidades e contou muitas histórias com a ponta de seus pés. O corredor tinha um ar muito solitário sem as pessoas no saguão. Sem ninguém, ele parecia até estar com as luzes apagadas. 

Focado nas grandes portas que davam acesso à plateia, ele se viu muito surpreso ao perceber o tímido som que vinha de lá. 

E não era qualquer som, era música

Mesmo se estivesse em coma, ele conseguiria reconhecer as músicas de O Quebra Nozes e em específico, a música do ato dos Flocos de Neve. Apertando o passo, ele abriu com violência a enorme porta do teatro e a música preencheu seu corpo como se emanasse de seu próprio corpo.  

Com a plateia vazia, o lugar era extremamente assustador. Mas no palco, onde ele meio que esperou ver diversas bailarinas com esvoaçantes vestidos brancos, ele via somente uma pessoa dançando, com roupas simples e descalço. 

Os passos quase pareciam perdidos, como se seguissem um ritmo incerto, ainda que fosse possível ver a destreza de um profissional nos saltos e piruetas. Os cabelos platinados estavam molhados de suor e era nítido que ele estava ali a tempo demais. 

Quando a porta bateu com um estrondo atrás de si, ele se assustou e se virou rapidamente para a fonte do barulho, os olhos de um azul límpido olhando-o com surpresa e confusão. 

E ali estava ele, o bailarino principal da companhia e ídolo mundial de ballet. 

Viktor Nikiforov. 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Valsa da Esperança" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.