O Patinador Sideral escrita por Joe Graci


Capítulo 3
Rumo às origens


Notas iniciais do capítulo

Olá! O Patinador Sideral manifesta enfim algum tipo de emoção ou sentimento de culpa. Movido por essa afetação mental, ele tentará reconstruir a realidade alterada por ele. Porém, o resultado pode ser mais sombrio do que o esperado e levá-lo a um caminho que nenhum ser humano seria capaz de trilhar.

Tempo estimado para leitura: 30 minutos.

Imagem do capítulo: https://drive.google.com/file/d/1hLdIinWQgcstoCg6oJSQ9UTVb1yf3nnh/view

Trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=eE8bk8NJqbE&ab_channel=GloriaeTemplum

Recomendo ouvir a trilha na velocidade 1.25 para acompanhar a leitura.



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Bastante reflexivo sobre seus próprios atos desde o começo da expedição, especialmente em Proxima b, o Patinador Sideral vagou em torno de Proxima Centauri e suas estrelas irmãs, sem um rumo certo. Entrementes, sentira-se perdido em si mesmo, nem vislumbrara mais razão para avançar numa exploração que só culminasse em extermínio.

“Qual o sentido de prosseguir a jornada? Estaria eu condenado a ser um agente do caos no Cosmos? Seria minha sina? Existiria alguma entidade sádica o suficiente para me colocar nessa condição, apenas para se divertir com minha autodestruição?”; indagou mentalmente ao silêncio do espaço sidéreo, sem esperar qualquer resposta.

De fato, exteriormente não adveio conforto ou explicação ao confuso ser. Ele sabia, desde o princípio, que só poderia encontrar uma saída para sua encruzilhada nos próprios pensamentos, pois aparentemente nada mais seria capaz de direcioná-lo à compreensão do que transcorria em sua fatídica existência. Em contrapartida, o Olho que Tudo Vê seguia observando atentamente o fruto excrescente do livre arbítrio cósmico.

Depois de horas de lamentações e blasfêmias lançadas ao léu, enquanto dava voltas em torno do cenário sombrio que produzira no astro dantes repleto de vida, ocorreu-lhe um silogismo que ainda não ousara considerar.

“Se estou parcialmente fora do espaço-tempo e posso alterar minha forma de manifestação no espaço, é plausível que eu também consiga explorar o tempo de maneira preternatural. Na verdade, em meus contatos com gravidades diversas e viagens a altas velocidades, já identifico distorções do espaço-tempo: pode-se dizer que estou no futuro em relação a um ser terrestre comum, devido aos efeitos que decorrem da equação de conversão matéria-energia, E=mc2. No entanto, como necessito voltar ao passado para desfazer os estragos que provoquei, logo me resta uma possibilidade: mergulhar completamente nas profundezas do desconhecido mundo extradimensional, para talvez assim encontrar um atalho para o domínio do tempo.”

Impulsionado pela confiança no possível controle da quarta dimensão temporal, sustentada pela teoria da relatividade, o ser multidimensional iria desvendar um conceito teoricamente conhecido, mas ainda inexplorado por ele. Teve profundo receio do que poderia lhe acontecer, mas o conflito interno pelo que fizera era maior do que seu temor. Ao olhar para a tenebrosa aparência que Proxima b assumira, como resultado de sua ação precipitada, adentrou abruptamente as profundezas das dimensões extras, perdendo de vez o contato com o universo observável. Foi de humanoide, a monolito, a segmento, a ponto, a nada; tudo numa fração de segundo...

(***)

Na nova perspectiva, o Patinador logo notara que felizmente ainda era possível visualizar o conhecido universo tridimensional; contudo de uma maneira bastante diferenciada. À medida que ele se afastava da imagem distorcida de Proxima b, o planeta restaurava suas cores vivas de antigamente, porém as perdia de pronto quando se aproximava de novo. Além disso, o ser perdera por completo a noção de si mesmo. Demorou um pouco para entender o que se passara na última transição.

“Ao imergir de vez nas dimensões superiores, passei a ser capaz de ver o universo extrinsecamente. Dessa forma, eu só poderia realcançá-lo nas bordas do espaço-tempo...”; refletiu, de uma maneira muito enigmática, como se não fosse mais ele mesmo.    

Assim, mediante a impossibilidade de agir concretamente sobre o curso dos eventos para salvar o pobre planeta Proxima b do seu cruel destino, o ser inconformado procurou ainda a todo custo encontrar um caminho de volta ao ponto de onde desapareceu do universo visível. Entretanto, a despeito de seus enormes esforços de observação multicêntrica, não mais encontrava saída no mundo extradimensional obscuro, que acessara com toda voracidade. Começou então a entrar em profundo desespero.

“O abantesma, biltre, cancroide, decrépito, execrável, futre, gabarola, histriônico, inexorável, jactancioso, luético, mefítico, nóxio, obnubilado, pútrido, quizilento, réprobo, soez, tresloucado, usurário, valdevino, xexelento, zombeteiro que me tornou no que sou deveria ir à merda!”; esbravejou internamente, com toda a sua fúria acumulada.

Ao perceber que de nada adiantariam seus insultos lançados no vazio do hiperespaço, o Patinador Sideral resolveu tentar colocar sua mente em ordem. Após notar que não mais precisaria alimentar-se de energia cósmica para subsistir, conseguiu esvaziar-se do ódio interior e decidiu tentar voltar ao seu antigo lar, do modo que fosse possível.

Refletindo sobre os caminhos hiperespaciais que o levariam até um reencontro da Terra, cogitou que seria viável a existência de atalhos que poderiam conduzi-lo ao planeta natal em menos que os 4 anos-luz dentro da curvatura normal do espaço-tempo. Definitivamente no hiperespaço, não precisaria preocupar-se com os teóricos buracos de minhoca, corpos de massa-energia quase infinita, nem com as teorias de eventos autoconsistentes. A solução parecia estar ao seu alcance... 

Por meio de uma técnica de projeção mental, pôde inferir a existência de uma geodésica hiperdimensional capaz de guiá-lo à Terra em menos do que corresponderia a 1 ano-luz no espaço-tempo. Além disso, tomou consciência do seu formato integral de HIPERIEDRO, uma figura geométrica da qual sua forma humanoide era apenas uma das hiperfaces; impossível de descrever completamente em termos humanos.

“Preso no hiperespaço, não consigo mais interagir com o universo observável, mas isso não me impede de conhecê-lo mais profundamente. Encurtando os caminhos limitados pela física no espaço-tempo, chegarei à Terra em menos de 1 ano, para ver seu futuro e seu passado. Graças ao acontecimento que tanto praguejei, minha forma completa, que batizo de hiperiedro, é o que me distingue. Tudo o mais que vivenciei até então são meros detalhes...”; concluiu, esboçando um certo grau de resignação. 

Durante a relativamente longa viagem de volta para o planeta Terra, o Patinador Sideral entrou num estado meditativo com ondas infradelta de baixíssima frequência. Numa linguagem humanizada, poder-se-ia afirmar que permanecera em um estado de hibernação.

(***)

Enfim, um impulso intrínseco acordou o altivo ser de seu sono viajante, quando aparecera o primeiro sinal do familiar Planeta Azul. Ali se encontrava o Patinador Sideral, diante do corpo celeste anteriormente repudiado e agora inatingível diretamente, para contemplá-lo mais uma vez, de um panorama único.

“Lar, doce lar.”; meditou, com algum tom de arrependimento.

Quando decidiu aproximar o ângulo de visão da Terra no hiperespaço, como fizera antes em Proxima b, ficou surpreso com o resultado. Afinal, tivera um vislumbre do FUTURO RECENTE do planeta Terra, poucas décadas após sua partida, segundo seus cálculos.

Numa tomada mais distante, que poderia ser estimada em aproximadamente 1.000 quilômetros, as formas geométricas denunciavam a presença de construções colossais, que deviam ter centenas de andares, algumas das quais aparentavam flutuar sobre a superfície. No entanto, esses detalhes estruturais não foram os responsáveis pelo seu maior fascínio.

Com efeito, ao se aproximar mais um bocado, nos limites do que permitia o espaço extradimensional (cerca de 100 quilômetros), percebeu assinaturas de vida não humana inteligente, sem ter contudo um detalhamento de suas características genéticas. Todavia, ficou claro para o explorador do hiperespaço que se tratava de um desenvolvimento espantoso do que se convencionou chamar de inteligência artificial.

“Esta definitivamente não é mais a Terra que conheci. O mundo está mudado para um ambiente habitado por seres vivos naturais e artificiais. É uma pena que, nos limites atuais, eu não seja capaz de visualizar as relações interespecíficas entre tais seres. Talvez eu até poderia fazê-lo, por meio de um novo atalho paralelo ao espaço-tempo, distorcido pela Terra, mas francamente não quero...”; pensou o ser transmutado, imaginando o que teria vivenciado se permanecesse em sua suposta vida medíocre.

A última visão que o perturbou foi a de uma enorme construção, muito maior do que todas as outras que avistara. Sua localização era no continente antártico, que não parecia nem de longe a famosa terra de gelo com a qual se acostumara. Estava mais para um grande centro, para onde convergiam diversas rotas aéreas e marítimas. 

 A Antártida, despida da maior parte de sua antes gélida cobertura, aparentava ser nada menos que o novo centro do mundo, o qual ainda apresentava outros fluxos menores entre os povos dos demais continentes. Ao observar essas rotas à distância por alguns minutos, o Patinador Sideral notara que todas seguiam basicamente os mesmos padrões, perfeitamente sincronizados, com foco nas terras antárticas. Era como se o planeta inteiro se movesse em uníssono. Era como se tivesse ocorrido a ascensão de uma verdadeira cosmocracia terrestre...

Após tal constatação, não quis saber mais do futuro e passou a se perguntar pelas possíveis causas que levaram a uma união das formas de vida na Terra. Decididamente precisaria ver quais elementos do passado foram condicionantes para esse destino aparentemente improvável. Era o que podia fazer em sua condição.

“Será que todos os seres da Terra simplesmente se uniram pacificamente? Ou houve algum tipo de revolução? Quem emergiu à frente do planeta foram os humanos ou os novos seres inteligentes?”; questionou, resoluto de sua busca pela origem do que culminou nesse futuro incógnito.

Fazendo movimentos contrários à seta do tempo, rapidamente dominados no hiperespaço, direcionou-se ao passado daquele mesmo planeta para realizar sua mais recente investigação. Assim alcançara com estranha naturalidade o controle sobre uma nova maneira de se mover naquelas dimensões inóspitas, inclusive quanto à calibragem da velocidade de avanço ou retrocesso no tempo.

Com base em sua habilidade recém-descoberta, o ser de movimentos supradimensionais passou a regredir temporalmente a uma taxa terrestre próxima de 1 ano por segundo, para ir em busca dos antecedentes que levaram a Terra àquele futuro excêntrico.  

Durante a observação atenta de sua volta no tempo, com um panorama que lhe permitia aproximação máxima de 86,6 quilômetros do nível do mar, o viajante verificou uma gradativa redução homogeneamente distribuída das áreas com construções, acompanhada de uma recomposição notória das áreas com cobertura vegetal. Ademais, ficou evidente para ele o reaparecimento de terras litorâneas encobertas pelas águas e de geleiras nos polos e picos montanhosos.

Contudo, o que mais lhe chamou a atenção foi um rearranjo dos formatos geométricos retangulares, tipicamente citadinos, reconstituindo a estrutura de megalópoles conhecidas, como Tóquio, Seul, Nova Iorque, Cidade do México, Nova Delhi, Pequim, São Paulo, Cairo, Moscou, Londres... A partir dessa visão, que lhe remetera às últimas imagens de sua memória nos últimos momentos antes de deixar a atmosfera terrestre, montou a lógica reversa da sequência mais provável dos eventos na Terra por abdução.

“Tudo indica que o planeta que abandonei passou por uma profunda transformação ao longos dos anos, sendo os locais de grande concentração humana os primeiros impactados. Aparentemente a população dessas áreas fora drasticamente reduzida por eventos trágicos, muito provavelmente naturais, não havendo sinais de efeitos extraterrenos. Quem sobreviveu à onda de desastres dispersou-se pelo planeta, disseminando uma nova onda de exploração desenfreada dos recursos naturais, o que culminou em cataclismas globais muito bem previstos pelos denominados alarmistas. Eis o resultado de toda a prepotência humana. Porém, decerto a forçada reorganização na Terra nova não foi exclusivamente feita por seres humanos, devido à reconstrução artificialmente homogênea do planeta. Em algum ponto, outros seres inteligentes emergiram, embora não tenha ficado muito claro se passaram a controlar ou colaborar com a espécie humana. Por outro lado, é factual que ocorreu uma unificação tardia no planeta, com centralização num lugar considerado neutro: a Antártida.“

O Patinador Sideral entendeu que a única explicação plausível para uma unificação (forçada ou não) dos seres na Terra seria a tentativa desesperada de conter crescentes AMEAÇAS À SOBREVIVÊNCIA do planeta. Nada como um ideal comum, mesmo que catastrófico, para justificar uma improvável reunião de forças...

Talvez um dia, os seres sobreviventes (humanos ou não) partiriam à procura de refúgio no espaço cósmico, mas pelo visto ainda demorariam a desenvolver e aprender a manipular de maneira segura a tecnologia necessária para tal, ou então, desistiriam do intento no curto prazo, ao se depararem com as diversas dificuldades práticas. Apesar desse questionamento, o ser explorador do tempo não estava interessado em descobrir para onde iria a lenta evolução terrestre. Pelo contrário, era impulsionado interiormente a ir ao encontro da origem do desejo ávido de controlar os recursos da natureza, que culminou nas inevitáveis tragédias.     

Dessa forma, o Patinador seguiu sua lenta viagem pelo tempo, com foco no passado do Planeta Azul. Identificou em seu campo visual aumentado e acelerado a destruição reversa de paisagens reconstruídas após guerras intermináveis pelo controle de terras e suas riquezas inerentes. Ademais, foi capaz de notar grandes fluxos humanos anômalos, verdadeiras diásporas, decorrentes dos mesmos conflitos. Ao longo da viagem invertida, toda a paisagem de concreto ia sendo desmontada diante dele, como se fosse um gigantesco jogo de LEGO, arquitetado por uma sede insaciável de poder. Compreendera enfim que a fonte desse desejo crescente de mais poder fora alimentada pelos seres humanos, por meio das chamadas REVOLUÇÕES INDUSTRIAIS.

“A infindável ambição humana pelo controle dos meios de produção, sem se preocupar com o potencial dos recursos disponíveis, foi o grande agente causador dos futuros desastres. Fizeram-se guerras, desmatamentos, poluições, genocídios, em nome de um ideal de produtividade crescente e ilimitada. Todavia, nada disso transcorreria se o ser humano não acreditasse com grande convicção na sua capacidade de dominar a natureza.”; refletiu, mais uma vez decidido a olhar um pouco mais para trás.

Assim, prosseguiu o caminho da exploração do tempo no causalístico passado da Terra, com a constatação das grandes conquistas das ciências pela humanidade. Da mecânica quântica, que permitiu o desenvolvimento da bomba atômica, com raízes na mecânica clássica, a qual descreveu a natureza dos mais variados movimentos. Da genética, que possibilitou o entendimento da hereditariedade, com raízes nas primeiras abordagens experimentais da estatística. Da sociologia, que foi utilizada na conquista de povos humanos inteiros por outros ditos mais poderosos, com raízes em diversas vertentes da filosofia. Todas essas e outras ideias abstratas passavam como um turbilhão pela mente do ser absorto em seus pensamentos, enquanto contemplava a transformação relativamente rápida de uma paisagem moderna, resultante da denominada REVOLUÇÃO CIENTÍFICA, em um cenário comparativamente primitivo.

“O excesso de confiança do ser humano para investir vorazmente sobre todos os recursos do planeta, inclusive outros seres da mesma espécie, veio do desenvolvimento da ciência. Todo o conhecimento acumulado nas ciências exatas, biológicas e humanas serviu, ao mesmo tempo, como instrumento de fuga da ignorância e busca desenfreada por poder. Uma verdadeira faca de dois gumes, que culminou em problemas posteriores, por ter congregado pessoas que se uniram em crenças e costumes comuns, colocados acima de tudo.”; concluiu, sentindo a necessidade de se aprofundar mais na história humana.

Partiu, pois, o Patinador Sideral, mais uma vez rumo a um passado que regredia bem mais lentamente, o que exigira dele mais atenção para perceber as nuances da história contada ao revés. Apesar disso, ele conseguiu averiguar, ao longo de 2 horas de obstinada observação, resquícios do desenvolvimento isolado das sociedades, as quais se diferenciavam pelos formatos característicos das construções, pela periodicidade dos fluxos no território, pela interação com o ambiente. Cogitou finalmente que essas peculiaridades derivavam de MANIFESTAÇÕES IDENTITÁRIAS dos povos.

“Os diversos grupos humanos, enquanto separados por grandes barreiras naturais, consideradas invencíveis, desenvolveram culturas muito particulares. Assim se manifestaram as mais diversas formas de autoridade, moeda, linguagem, artes e religiões. No entanto, todos esses povos tiveram em comum a necessidade de construir civilizações, que posteriormente iriam se entrecruzar e colocar em conflito suas verdades.”; raciocinou, imaginando a importância de investigar de onde viera o impulso humano de se organizar socialmente.

Com tal propósito, o ser de incansável curiosidade continuou o caminho de volta no tempo. Somente após mais um período de aproximadamente 2 horas de observação minuciosa da reconstituição dos primeiros assentamentos humanos, pôde identificar o papel fundamental da REVOLUÇÃO AGRÍCOLA na constituição de corpos sociais, que possibilitariam sustentar um novo estilo de vida.

“Percebo que a estruturação de sociedades humanas surgiu da importância de organizar tarefas em uma vida que passara a transcender as necessidades dos indivíduos. De fato, plantar e cuidar de outros animais, para garantir nova dieta e suposta qualidade de vida, era muito mais trabalhoso do que simplesmente caçar, pescar e coletar o que a natureza dava. Porém, criar e manter organizações sociais, exigiu estabelecer mecanismos complexos como liderança, normas e punições. De onde veio a aptidão para esse desenvolvimento humano conjunto?”; indagou, novamente mantendo sua tendência de movimento contra o tempo, a fim de seguir perfurando os segredos do passado.

Naquela vez, o Patinador Sideral tivera que se dedicar muito mais, em pelo menos 16 horas de análise minudente dos esporádicos movimentos na distante paisagem terrestre, para perceber marcas tipicamente humanas que não eram tão óbvias. Entendera afinal que os monumentos, as trilhas diferenciadas e, mesmo as marcas de extinção anormalmente acelerada de outras espécies vivas, somente podiam partir de seres que manifestaram uma capacidade de imaginação resultante de uma REVOLUÇÃO COGNITIVA.   

“Com efeito, consegui constatar empiricamente que os atos humanos são típicos de uma espécie claramente mais evoluída que as demais. Apesar dos hábitos animalescos, a espécie humana passou por um processo mais complexo que as outras, para que chegasse ao potencial de interferir na paisagem tão ativamente, mesmo no mundo primitivo. A grande questão é: qual o diferencial evolutivo do ser humano?”; questionou, já resoluto em investigar a origem da espécie tradicionalmente conhecida como Homo Sapiens.

O ser de ânimo implacável regride no tempo à mesma taxa conhecida de 1 ano por segundo, a fim de entrever a luta por sobrevivência entre os diferentes espécimes de hominídeos que coexistiram. Pacientemente vagando no espaço extradimensional por mais de 50 horas terrestres, pudera visualizar os fluxos migratórios e características adaptativas que favoreceram o predomínio do Homo Sapiens, em detrimento dos demais candidatos a seres humanos no vagaroso processo evolutivo biológico que resultou na ORIGEM HUMANA.

“Agora vejo que o ser primitivo que assumiu o posto de espécie dominante no planeta teve de especial algumas habilidades e uma sorte grande. Aparentemente a convivência com outros seres maiores, mais resistentes e, às vezes, até com maior volume cerebral não intimidou o domínio genético da espécie sobrevivente. Seu grande trunfo no jogo da vida estava escrito em seu código vital.”; ponderou, questionando-se como faria para perscrutar a vida no universo de um panorama que não se restringisse somente ao planeta Terra.

(***)

Para atingir tamanho objetivo de ter uma visão macro da vida no Cosmos, o Patinador logo se deu conta de que poderia viajar mais rápido nas dimensões extras. Não demorou muito a inferir que seria capaz de voltar no tempo até 1 milhão de vezes mais rápido, porém perderia precisão de observação no ambiente nessa mesma proporção. Com certa relutância, acabou renunciando a ter tanta acurácia na visualização, para que pelo menos pudesse contemplar a ORIGEM DA VIDA, mesmo com considerável distanciamento de suas minúcias.

“A vida originou-se de modos diversificados em vários pontos do Cosmos, mas existe algo em comum a todos os caminhos bem sucedidos no show da vida. Reações químicas em todos os ambientes alienígenas, assim como na Terra, formaram moléculas únicas capazes de fazer cópias de si mesmas! O mais incrível é que posso sentir os distintos materiais constitutivos dessas substâncias pululando no universo, como que querendo dizer que também provieram de uma origem comum.”; concluiu o ser, com extremo fascínio.   

Com o intuito de ir em direção à tão estudada poeira das estrelas, que carregou a matéria-prima da vida durante bilhões de anos, retrocedeu ainda mais na seta do tempo, com altíssima velocidade, para visualizar a FORMAÇÃO DOS SISTEMAS ESTELARES. Assim fez o cosmólogo prático, partindo rumo a uma visão panorâmica dos fenômenos mais imponentes da história universal, as supernovas. Profundamente maravilhado com a vista inebriante da mistura de luzes e matéria, gravitacionalmente espalhadas de maneira sublime, simplesmente exclamou:

“Da matéria das estrelas fomos feitos! O núcleo desses incríveis corpos celestes carregou consigo dos lugares mais distantes e próximos a mistura alquímica certa para dar início aos sistemas estelares, repletos de planetas e formas vivas tão diversificadas...”

O Patinador Sideral pausara um pouco suas proclamações interiores, ao se lembrar de que não pudera conhecer sua real essência, apesar de ter noção razoável sobre sua forma. Imaginou que a resposta para tal questão pudesse estar na ORIGEM DAS GALÁXIAS, uma vez que, no início de sua experiência místico-científica, escolhera o caminho que o conduzira a essas grandiosas sociedades celestiais. No entanto, após retroceder ainda mais no tempo velozmente, o que pôde ver foi a materialização da sabida interpretação física sobre as galáxias.

“Todo esse espetáculo de formas e luzes que se descompactifica diante de mim, no sentido contrário ao da lei da entropia, é fantástico! Contudo, não há qualquer informação sobre minha origem no código macroscópico do universo.”; refletiu, bastante pensativo a respeito de qual seria sua próxima tentativa de autoconhecimento.

Logo cogitou se sua condição lhe permitiria investigar os limites da Física de Altas Energias, além daquilo que a humanidade pôde teorizar. De pronto, decidiu que iria em busca de respostas na ORIGEM DAS PARTÍCULAS ELEMENTARES. Ao mover-se novamente contra o tempo, observara diante de si, com inesperada precisão, a construção concreta do modelo-padrão previsto pela física teórica.

“Essa formação de partículas, por meio da materialização de energia é incrível! Posso identificar todos os quarks, léptons e bósons preditos pelo modelo-padrão de partículas elementares sendo criados. Inclusive vejo a famigerada partícula de Deus, mas nem mesmo ela aparenta carregar informação a meu respeito.”; concluiu, com uma sensação esdrúxula de que todos esses eventos foram planejados para ele desde o início. Mas por quê?

Naquele instante, já numa visão acima de qualquer alcance humanamente imaginável, sentiu interiormente como que uma grandiosa revelação. O Patinador Sideral entendeu que a única solução possível para seu enigma existencial era o PRINCÍPIO DE TUDO, o qual tentaria atingir. Afinal só a origem de todas as coisas poderia ter a tão sonhada resposta, a tão esperada saída do espaço extradimensional e, até mesmo, a divina possibilidade de recriar o universo.

Num caminho ultra-acelerado para a singularidade do Big Bang, eis que o ser que se considerava além de todos os limites deparou-se com a imagem mais aterradora que presenciara: o Olho que Tudo Vê, um ser sem uma forma claramente perceptível, mas tão brilhante como a luz que contracenou com o plano das galáxias, no início daquela experiência de quase morte. Logo em seguida, a integridade do Patinador Sideral foi inteiramente desfeita, nada restou dele no universo.

A intervenção direta do Ser extraordinário, no princípio da história natural, ocorreu ali, naquele primeiro instante, ao impedir o Patinador Sideral de descobrir toda a VERDADE sobre a origem e o destino do Cosmos.

Ao cabo de tudo, o ser que queria absorver todo o conhecimento universal terminou onde começou: sem nome, sem tempo, sem lugar. Eventualmente, acordou como o jovem de outrora, numa espécie de cama hospitalar, como se jamais tivesse existido. 

FIM


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Notas finais do capítulo

Termina a saga do Patinador Sideral, com um final deveras enigmático. Para quem leu até aqui, deixo uma mensagem: às vezes ter um extraordinário desejo inatingível pode levar a um ordinário abismo existencial. Pense nisso (ou não).

Até mais!



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