O Patinador Sideral escrita por Joe Graci


Capítulo 1
Além do tempo e do espaço


Notas iniciais do capítulo

Olá! Tudo começa com o caos, depois vem a ordem. Assim surge o Patinador Sideral, que poderia ser surfista ou skatista pela capa, mas achei patinador mais emblemático e diferenciado. Não me levem a mal e considerem como justificativa a licença poética.

Tempo estimado para leitura: 20 minutos.

Imagem do capítulo: https://drive.google.com/file/d/1YU6EF4_3Rt-ImxY0dP3mOzIjnbSaTBJg/view

Trilha sonora do capítulo: https://www.youtube.com/watch?v=zeoJ4SI14mY&list=PLuqZTQ_5gsppMEJWlJoH327iOkKLtcNHX&index=690&ab_channel=SpaceAmbient

Recomendo ouvir a trilha na velocidade 1.5 para acompanhar a narrativa.



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Algumas unidades de tempo atrás, numa noite terrestre arbitrária, um jovem cujo nome e características fisionômicas são pouco relevantes voltava para sua casa de certo lugar que também não faz tanta diferença. Na realidade, não era uma noite assim tão aleatoriamente banal, do ponto de vista do rapaz, é óbvio.

 Era uma noite de tempestade violenta, repleta de raios que caíam assustadoramente próximos. Como o sujeito sabia? Fora as noções sensitivas evidentes dos ruídos e da luminosidade, o jovem conhecia as leis básicas da natureza ou, pelo menos, achava que as conhecia...

Cada vez que via um clarão produzido por um relâmpago, contava os segundos até ouvir o primeiro barulho de trovão. Sabia ele que, numa noite tempestuosa como aquela, com a temperatura ambiente girando em torno dos 20°C, a velocidade do som no ar atmosférico era próxima de 343 metros por segundo. Dessa forma, cada 3 segundos contados a partir da visão do relâmpago até ouvir o trovão correspondem a aproximadamente 1 quilômetro de distância, em relação ao ponto de queda do raio.

Os mais detalhistas diriam que o tempo que a luz leva para chegar aos olhos do observador, desde o ponto de origem da descarga elétrica, também deveria ser considerado no cálculo. Entretanto, esse tempo é certamente desprezível, uma vez que a distância percorrida pela luz em um segundo é de 299.792 quilômetros, ou seja, cerca de sete voltas e meia na Terra! Em todo caso, o rapaz tinha uma noção razoavelmente precisa do risco que corria.

Mesmo assim, ele se divertia estimando sucessivamente as distâncias dos raios na tempestade. De repente, uma distância ele não pôde estimar; não teve TEMPO para tanto. Sua última visão normal do mundo conhecido fora uma forte luz, acompanhada de um som estrondoso, quase simultâneo, e de uma sensação indescritível de fuga da realidade objetiva. Tais fatos puderam ser testemunhados unicamente pelo Olho que Tudo Vê.

(***)

Depois do ocorrido, o rapaz se viu num estranho lugar. É verdade que a descrição anterior não se aplica às circunstâncias em que o outrora jovem sem nome ou localização importante se encontrara. Primeiro, não podia mais ser considerado um jovem rapaz, mas sim uma entidade que não era capaz de discernir a própria feição nem tinha consciência do seu novo plano de existência. Além disso, não seria completamente adequado falar em marcadores de tempo, como DEPOIS, ou espaço, como LUGAR, para o estado em que o então ser disforme inconsciente emergiu.

Suas percepções se alternavam entre sinestesias grotescas e pensamentos, ou o que restaram deles, distorcidos; aparentemente ainda não inventaram uma lógica humana capaz de descrever sua experiência por completo de maneira coerente.

Todavia, em meio ao caos mental, eis que o ser deslocado da normalidade começa a notar, através dos seus sentidos, misteriosa e lentamente reconstituídos, uma espécie de túnel. Mal sabia ele que a tal passagem o levaria ao primeiro indício de racionalidade, desde o princípio do enigmático processo: uma DECISÃO. A referida escolha consistia em seguir por um dos caminhos de uma bifurcação que se abrira em seu campo de percepção sensitiva.

Pode ser que tivesse a opção de voltar de onde veio, mas nem cogitou essa hipótese e se deteve apenas no que notara defronte de si. Provavelmente, sua atitude justifica-se pelo prévio costume com a dualidade das crenças, ou com a lógica binária, ou mesmo pelo deslumbramento com a experiência surreal. Quem sabe?

De fato, o conteúdo de cada abertura da bifurcação parecia-lhe inefável, por motivos distintos. A da direita era extremamente brilhante, muito mais do que a última luz que vira no mundo comum. A luminosidade era maravilhosamente intensa e, apesar disso, o ser modificado era capaz de fixar-se a ela sem sofrer efeitos de fotofobia. O que mais o perturbara, contudo, era o fato de não saber o que haveria além da luz. E, mediante a sucessão persistente de eventos incomuns, nem sabia ao certo o que imaginar...

Já a abertura da esquerda apresentou-lhe um panorama do ESPAÇO cósmico, tal qual jamais pensara ou fantasiara. Tratava-se de uma tomada distante, no nível das galáxias, as quais ele reconheceu pelos seus aspectos característicos. Podia observar formas elípticas, espirais e algumas que não conseguia identificar com total clareza; várias delas com grandes fontes de luz pulsando, outras sem luz visível no centro, e a maioria compondo grandes aglomerados.

Tudo isso o deixou extasiado, e o ser em transição, sem hesitar, direcionou sua tendência de movimento para a abertura que mais o fascinara. Ora, seu maior sonho, o que realmente tinha significado a respeito de sua vida pregressa, era o desejo de conhecimento profundo do cosmos. Aparentemente essa chance lhe fora concedida ali, sabe-se lá por quem ou por quê; não fazia diferença para ele.

(***)

Só que nem tudo, aliás, quase nada é como o previsto... Ao seguir pela abertura que escolhera, visualizou de imediato sua própria casa, com seus pertences, seu quarto e todas as coisas ordinárias de antes. Essa visão lhe soou a priori deveras frustrante.

Entretanto, algo estava bastante diferente. Sua concepção de realidade se apresentava monstruosamente alterada. De alguma forma, era capaz de enxergar o interior de locais inteiramente fechados, embora não pudesse atravessar objetos.

Ao olhar para as paredes de seu dormitório, via os demais cômodos da casa e até fora dela, ao mesmo tempo em que discernia similaridades e diferenças marcantes entre as estruturas interna e externa de todos os móveis ao seu redor. Poder-se-ia afirmar que aparentava estar sob efeito de uma droga psicodélica pesada, humanamente falando.

Apesar disso, sua presença não era notada por ninguém. Ele não podia ser visto ou tocado, esboçava uma fala e não podia ser ouvido nem por si mesmo, exceto na sua própria mente, ou o que sobrou dela.

Começara a ponderar se essa combinação de experiências anômalas teria algum propósito. Como podia ver, então a luz se propagava até ele, mas queria saber por que causa, motivo, razão ou circunstância não podia ser visto, inclusive por si mesmo e se esse fato não contrariava o princípio da reversibilidade dos raios de luz. Perguntara-se por que percebia a luz e não os sons e, ainda, por que tinha a visão além do alcance.

"Existe uma maneira inteligível de explicar todos os fenômenos que ora experimento?"; ele pensou, aturdido.

Após várias reflexões, concluiu o que considerava inatingível. O jovem fora convertido em um SER HIPERDIMENSIONAL que tangenciava o universo observável! Com efeito, apenas o fato de possuir mais de três dimensões lhe permitiria ver através de objetos opacos por todos os ângulos. A propósito, também se tornou capaz de enxergar por dentro dos seres vivos, desmistificando várias de suas noções preconcebidas sobre a anatomia comparada.

"Então quer dizer que seres humanos, cães, insetos, arbustos, cogumelos, algas não são assim tão distintos no nível celular..."; refletiu, vagamente surpreso com aquilo que observara, durante curto passeio aleatório pelo parque que se acercava do seu antigo lar.

No entanto, essas questões vastamente estudadas pela humanidade, como a estrutura dos materiais e a fisiologia dos seres vivos, não produziam nele tanto fascínio quanto os mistérios de fora da Terra.

Antes de mirar para os céus e além, começou a perscrutar mentalmente a natureza de seu novo ser.  

Como não era sensorialmente detectável pelos demais seres, ele decerto se manifestava de modo distinto de tudo no mundo natural, revelando-se com menos do que duas dimensões. Logo, o ser supostamente etéreo, na verdade, ou aparecia como um ponto adimensional, ou como um segmento de curva unidimensional, sem largura.

A situação do ser com percepção extrassensorial era mutatis mutandis análoga à de uma esfera que apenas tangencia um hipotético universo plano. A entidade esférica enxergaria através das paredes desse universo planificado, mas não poderia ser identificada pelos seus possíveis habitantes, dado que se manifestaria a eles como um simples ponto sem dimensão. Por causa disso, nenhum ser conhecido seria capaz de interagir com ele pelos sentidos. A exceção era decerto o Olho que Tudo Vê.

Andou pensando melhor na sua impossibilidade de atravessar objetos e deduziu que ainda devia sofrer os efeitos das interações eletromagnéticas, as quais são produzidas pelas partículas carregadas dos átomos. Estava definitivamente sujeito a leis físicas, de um modo bem peculiar, é claro.

A gravidade, por exemplo, atuava nele de determinada maneira atípica; afinal sentia seu próprio peso, porém não caía de lugar algum. Qualquer que fosse a forma como se exteriorizava, a qual desconhecia por não ver ou tocar a si mesmo, estava claro para ele que suas restrições de movimento em altura praticamente deixaram de existir. Em outras palavras, ele podia até certo ponto ver o mundo da perspectiva que quisesse, movendo-se verticalmente para cima ou para baixo.

Ademais, a incapacidade de captar sons lhe fizera conjecturar que sua nova estrutura corpórea estaria quase totalmente inserida num ambiente imaterial, ou senão, envolta por um tipo estranho de matéria invisível e incógnita que não permitia a propagação das ondas sonoras. Quanto a essa parte, tinha ele grande incerteza, em virtude de não possuir sensações físicas provenientes de fora do universo visível.

(***)

Depois de toda essa divagação a respeito da sua nova condição, o antes jovem com uma vida banal finalmente começou a se perguntar sobre o que faria a partir de então... Uma resposta não lhe ocorreu de imediato... Não obstante, após uma longa jornada mental pelos seus devaneios, ele raciocinou do seguinte modo:

"Na minha condição atual, nada posso ser além de um observador. Não tenho meios de interagir com outros seres, não posso vivenciar experiências em conjunto, nem comunicar descobertas. Desse jeito, nada parece ter sentido. Por outro lado, se eu conseguir alterar minha forma de manifestação, segundo a minha vontade, e tiver plena consciência dela, terei a possibilidade de executar feitos extraordinários."

Naquele momento, enquanto meditava, verificou que estava viajando a grande velocidade, quiçá uns 432 quilômetros por hora. Deduziu esse valor ao sentir-se em movimento na paisagem, aproximadamente quatro vezes mais rápido em relação a um carro que avistara ao longe numa autoestrada.

A noção que o ente recém transformado possuía do veículo era bastante acurada, pois conseguia visualizá-lo simultaneamente em todas as direções. Distinguia rodas, volante, capô, chassi, motor, bateria, motorista esquálido e embriagado, carteira vencida no bolso da camisa, tudo igualmente detalhado.  

Com isso ficou confiante ao determinar sua velocidade, no todo e por partes, com alta precisão. Diante disso, começou a imaginar se estaria livre das limitações impostas pelo princípio da incerteza.

Todavia, o mais incrível nessa pequena viagem é que ele não sentia os efeitos inerciais da variação de velocidade, mesmo ao parar bruscamente. A referida condição fez com que lhe ocorresse um insight.          

"As dimensões superiores em que estou imerso me permitem, através de uma enorme disponibilidade de energia, atingir velocidades assombrosas; talvez sem sofrer deformações significativas. O limite para mim é apenas a velocidade da luz, o qual eu não poderia ultrapassar, pois ainda tenho massa em determinado sentido não muito bem compreendido. De qualquer maneira, se eu tentar me deslocar a velocidades muito elevadas, acima de 10% da velocidade da luz, é possível que eu sofra deformações permanentes e irreversíveis. O que quer que isso implique para minha presente condição, não seria agradável tentar descobrir na prática..."

Ainda absorto na vicissitude de seus pensamentos, concluiu enfim:

"A única maneira de contornar os efeitos inerciais e relativísticos seria poder me manifestar no universo observável como um ponto! Claro, levando em conta que fora desse universo não há deformações sensíveis a mim e que um ponto é amorfo, eu seria capaz de chegar à velocidade de qualquer partícula elementar com massa própria sem me distorcer. Assim, eu atingiria em tese qualquer região do universo material, desde que ele não acabe antes de eu ir até lá e assumindo ainda que meu estado atual seja permanente."      

A despeito de seu raciocínio elaborado, a verdade é que o ser não detinha o controle sobre sua forma ultra dimensional; isso estava muito distante do desejado. No entanto, o mais estranho é que ele nem pensava em encontrar meios que lhe permitissem voltar à aparência de antigamente, para tentar reviver a velha realidade trivial.

 Aquele passado não o satisfazia, nunca o satisfez. Então, diante dessas considerações, ele partiu em direção ao exterior da atmosfera terrestre sem temor. Afinal, percebera já fazia um tempo que não precisava mais do oxigênio para respirar. Talvez a respiração nem fosse mais um processo necessário à sua natureza renovada. Definitivamente, o ser de origem terrestre e destino incerto se desapegou por completo do planeta Terra e decidiu seguir uma jornada solitária rumo ao desconhecido.

(***)

Logo que saiu da atmosfera, notou que a mudança de forma passou a ser factível. Essa nova possibilidade surgiu para ele como uma intuição que, no seu subconsciente, inclinava-o a fazer um movimento específico em um grau de liberdade extradimensional. Algo similar ao fato de uma esfera que toca um plano poder adentrar nele, deixando de formar um ponto para produzir um círculo.

Finalmente tomara consciência de seu aspecto inicial no universo observável: até aquele instante ele aparecia como um segmento de reta. E para sua alegria, doravante sabia como se mover no espaço multidimensional, com o intuito de passar a se manifestar como um ponto e viajar próximo à velocidade da luz, sem sofrer deformações.

"Por que raios só agora descobri um meio de mudar de forma, e não quando ainda estava na Terra? Além disso, por que consigo me converter em ponto, mas não em um ser bidimensional ou tridimensional? Será que aprenderei essas habilidades em outras situações?"; uma série de questionamentos teimavam em incomodá-lo.

O pior de tudo é que lhe sobreviera um receio terrível de fazer um movimento errado no espaço multidimensional e ficar perdido no meio do NADA para SEMPRE. De certo modo, o agora ponto no universo observável poderia, com um único movimento em falso, deixar de ter contato com o mundo palpável e jamais retornar a encontrá-lo. Essa ideia o deixava profundamente atordoado.

Por outro lado, o enorme anseio de compreender o universo e igualmente a si mesmo impulsionava-o a correr o risco.

"Se eu for capaz de deter autocontrole total sobre a habilidade de mudança de forma, posso enfim conhecer meu novo eu, ao menos até o nível de percepção visual, ou até mesmo descobrir novos mecanismos de cognição. Porventura eu alcance a proeza máxima de assumir o aspecto desejado e finalmente ser quem eu sempre quis: O PATINADOR SIDERAL."; vislumbrou ele, decidido.

Mesmo diante desses excêntricos acontecimentos, o Olho que Tudo Vê continuava a exercer sua função de observar. A entidade sobrenatural mantinha uma política de não intervenção no curso dos fatos cósmicos, a fim de evitar a alteração artificial nas relações de causalidade universalmente estabelecidas.


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Notas finais do capítulo

Para quem não reparou, o Patinador Sideral estava na imagem inicial do capítulo, assumindo suas formas primárias descritas no texto.

Em algum ponto no espaço-tempo, quando sobrevier o raio da inspiração, continuarei a estória para lhes contar a respeito das surpreendentes descobertas do Patinador Sideral. Até mais!



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