Amor ao Lado escrita por Júlia Universe


Capítulo 9
Capítulo 9




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Heloísa

Aquela foi a primeira vez que Gabriel fechou sua janela antes de mim.

Sempre que conversávamos por ali, eu era a primeira a me despedir. Nunca o tinha visto fazer aquilo, ainda mais com tanta pressa e raiva. E não pensava que uma simples ação podia doer tanto como doía em mim naquele momento.

Eu tinha o machucado e essas eram as consequências — sabia que isso ia acontecer e, ainda assim, permiti que acontecesse. Tinha o perdido e não sabia mais o que podia fazer para consertar — se é que ainda era possível.

Passei o restante do dia e a manhã do seguinte tentando fingir que não me importava. Afinal, tinha sido minha escolha me afastar. Mas, de tempos em tempos, ia até a janela para ver se ele tinha aberto a dele novamente. Toda vez era a mesma coisa: eu dava de cara com o vidro e as cortinas totalmente fechados, impossibilitando qualquer espiada.

Me sentei no chão no quarto, tentando me distrair com qualquer coisa, mas os pincéis ficaram parados na minha mão e nada surgiu. Não tinha ideia de como terminar as pinturas, que eu torcia para que fossem as últimas. Devo ter ficado tempo demais ali, pois meu pai entrou, trazendo um prato com pães de queijo e um copo de coca cola.

— Você está bem, querida? —ele perguntou, enquanto eu pegava o prato de sua mão.

— Estou. —menti, colocando o pincel de lado.

Marcelo me conhecia bem demais para se enganar por aquilo, mas torcia para que ele fosse deixar essa passar. Infelizmente, ele levantou uma sobrancelha e se sentou ao meu lado. Cruzou as pernas e encarou a parede na nossa frente.

— Está ficando muito bom. Já faz algumas semanas que você não está pintando.

— Bloqueio. —dei de ombros, pegando um pão de queijo.

— Olha, Heloísa. —ele suspirou— Posso continuar fingindo que não tem nada acontecendo por horas, mas eu gostaria que você fosse sincera comigo. Quero te ajudar.

Desviei o olhar para meus pés e comecei a enrolar o cadarço do all star amarelo em meus dedos. Engoli em seco, sem saber por onde começar a me explicar. Nunca tinha contado detalhes sobre meu ex namoro para ele, nem para ninguém — nunca me senti confortável. Queria esquecer tudo que tinha acontecido, fingir que nunca tinha me apaixonado por Katarina. Mas as consequências daquele relacionamento ainda me perseguiam e, agora, começavam a atrapalhar até mesmo minhas novas amizades.

— Faz alguns meses que eu venho conversando com um garoto. —falei, sentindo as bochechas corarem, era sempre estranho falar daquilo com meu pai.

— O vizinho. Eu sei. —ele sorriu de lado, entrelaçando sua mão a minha.

— Como assim?

— Você acha que eu e seu pai somos burros? Que não vemos o tempo que você passa no seu estúdio ou não ouvimos a gritaria dos primeiro dias? —ele cutucou minhas costelas, o que me fez encolher com as cócegas— Vimos seus sorrisos bobos para o celular também.

— Não sei esconder as coisas tão bem quanto pensava, hein? —ri, antes de tomar um gole da coca cola.

— Nem um pouco. —ele riu também, passando o braço pelo meu ombro— Mas o que aconteceu? Ele fez alguma coisa? Eu fiquei bem bravo com ele hoje.

— Ele não fez nada. E você tinha razão, eu também gritei com ele na primeira vez que ele jogou bolinhas de papel na janela.

— Calma, essa é a segunda vez? —ele arregalou os olhos, rindo e eu concordei— Bem, eu não devia ter exagerado. Acho que estou com saudade de Felipe e irritado porque ele não vem nos visitar e acabei descontando nele.

— Está tudo bem. Eu estraguei tudo, de qualquer forma. Não acho que você vai precisar se preocupar com ele mais. —comentei, encarando o pão de queijo em minha mão.

— Você matou ele? —ele colocou a mão no peito, dando um efeito dramático a fala— Porque você soou como uma assassina agora.

Revirei os olhos, lhe dando um leve empurrão no ombro.

— Não. A gente só brigou. —dei de ombros— Ele admitiu que tem sentimentos por mim e eu entrei em pânico. Sumi por semanas enquanto ele me mandava presentes e fazia de tudo pra tentar falar comigo. Acho que ele finalmente desistiu.

Meu pai ficou um tempo em silêncio, pensativo. Tomei um longo gole de coca cola, incapaz de encará-lo. Não queria ver pena ou reprovação em seu olhar. Algo dentro de mim já gritava em minha mente como eu estava sendo burra de ignorar um garoto que além de bonito, tinha um coração incrível. Mas, em algum momento, ele ia perceber que eu não sou tão maravilhosa quanto ele pensa e se cansar de mim — e meu coração ficaria machucado novamente. A quantos corações partidos uma pessoa pode sobreviver?

— E você gosta dele?

— E-Eu... Eu não sei.

— O que te deixa em dúvida? —ele me abraçou e começou a mexer em meus cabelos.

— Eu não quero gostar dele. Somos amigos e apenas isso.

— Mas você não controla essas coisas, querida. —sua voz era calma e carinhosa, o que me fazia derreter por dentro— Do que você tem tanto medo?

A pergunta foi suficiente para fazer as lágrimas brotarem em meus olhos. Tentei contê-las, mas foi inevitável. Meu pai me abraçou mais forte e eu mergulhei o rosto em seu peito, afundando em seus braços.

— Está tudo bem, pode chorar. Faz bem pra alma.

Ele beijou o topo da minha cabeça e esperou até eu me acalmar. Quando consegui falar novamente, me afastei, voltando a posição inicial e secando as lágrimas que ainda caíam.

— Eu tenho medo de acontecer de novo o que aconteceu com a Katarina. —falei, com a voz trêmula— Relacionamentos, principalmente amorosos, sempre foram algo complicado pra mim. Acreditar que alguém pode gostar de mim, de verdade, ainda é muito difícil.

— Helô, você é maravilhosa. Tem um coração enorme, é bonita e digna de todo o amor do mundo.

— Katarina foi a primeira que eu realmente me abri, que eu me permiti acreditar que me amava. —apertei sua mão com força— Ela me fez acreditar que era minha culpa que as coisas estavam dando errado. Que eu não era boa o suficiente. Eu lutava tanto para ser... Eu a amava e não queria que ela fosse embora, então fazia tudo, abria mão de mim mesma por ela.

— Eu odeio essa garota.

— Eu também. —funguei— Outras pessoas deram em cima de mim, amigas tentaram me avisar o que estava acontecendo. Eu estava tão alheia a tudo que acontecia... Ninguém tinha me tratado tão bem quanto ela me tratou no começo, mas depois ela se mostrou pior do que qualquer outro.

Eu parei, as palavras morrendo na minha garganta. As memórias vinham como cenas de filme em minha mente; a primeira vez que a vi, em uma festa. Quando ela me mandou uma mensagem e fez meu coração quase parar. Nosso primeiro encontro, nosso primeiro beijo... Mas, em algum momento, tudo começou a dar errado. Hoje, me pergunto se tinha sinais desde o primeiro dia, mas ainda é difícil identificar tudo.

Marcelo respeitou meu silêncio, acariciando meus cabelos com carinho. Podia ver em seus olhos a tristeza e um pouco de culpa, talvez por não ter percebido antes. Mas não queria que ele se sentisse assim, porque eu nunca teria lhe dado ouvidos antes. Era algo que apenas eu tinha que reconhecer e lutar contra. Infelizmente, demorei demais.

— Gabriel é incrível. Gentil, engraçado, fofo... —balancei a cabeça— Mas e se não passar de uma outra ilusão? E se ele descobrir que sou tão bagunçada por dentro e desistir? Cresci com as pessoas dizendo que meu cabelo era ruim, que meu corpo era feio, que eu seria uma fracassada, em todos os sentidos da minha vida. E eu sei que não é verdade, mas tem dias que é muito difícil ignorar aquela voz que sussurra; e se eles estiverem certos?

— Você tem que lutar contra ela, Heloísa. Eu sinto muito pelas coisas que você teve ouvir na escola e na internet, eu sei como dói. Sou um homem negro retinto e panssexual, já lidei com muita merda parecida. Quis fazer de tudo para tornar a sua vida mais fácil, porque sabia que você enfrentaria vários preconceitos também. —ele apertou minha mão, firme— Mas tudo isso que você passou não te torna mais feia, mais descartável ou menos válida. Só prova o quanto você é forte.

A essa altura do campeonato, não havia nada que pudesse conter as lágrimas, que escorriam pelas minhas bochechas e encharcaram sua camisa. Queria dizer que não teria aguentado se não fosse pela minha família, mas não conseguia encontrar forças para interrompê-lo.

— Você é uma heroína, Helô. Uma mulher maravilhosa e capaz de dar a volta por cima. Eu aprendi, com o tempo, que sempre terá alguém para nos dizer que não somos capazes, que não somos bons o suficiente. Mas que também sempre existem pessoas que nos mostram o contrário. Se eu tivesse acreditado nas coisas que meu primeiro namorado me disse, eu nunca teria conhecido seu pai. —ele sorriu, enxugando minhas bochechas com o polegar— Nós viemos ao mundo sozinhos e precisamos ser a nossa melhor companhia, acima de tudo. Temos que nos colocar pra cima, acreditar em nós mesmos, por mais que seja difícil. E, quando tudo parecer impossível, lembrar que existe alguém ao nosso lado, nos dando todo apoio que precisamos para sobreviver.

Concordei com a cabeça, encolhida em seu abraço. Me sentia como uma criança de 6 anos, quando cheguei chorando da escolinha porque tinham zombado do meu cabelo trançado. Gritei aos quatro cantos que queria raspar a cabeça e usar uma peruca loira, que era o cabelo mais lindo de todos. Lembro que meus pais me abraçaram enquanto eu chorava e berrava. Marcelo me mostrou fotos dele pequeno e da minha tia; os cabelos deles eram iguais aos meus. E suas palavras, tão gentis e amorosas quanto naquele momento, me acalmaram e me fizeram amar cada fio meu.

— Não coloque em Gabriel uma culpa que ele não merece. Dê a ele uma chance de mostrar a você que ele vale a pena. O mundo não é feito só de ódio, querida. Katarina errou e, um dia, vai pagar caro por isso. Tudo que fazemos volta para nós, de formas diversas, mas volta. —ele beijou o topo da minha cabeça novamente— Gabriel vai errar também, porque ele é humano, assim como você. Mas acredito, fielmente, que nada é por acaso. E é impossível não reparar como ele está te fazendo bem. As vezes ele caiu de paraquedas na sua vida porque você precisava conhecê-lo.

Ou caiu de avião. — pensei, observando o aviãozinho guardado em uma caixa, não muito longe de mim. De alguma forma, aquele primeiro pedaço de papel tinha sobrevivido a chuva e ainda estava guardado, me lembrando de quando um maluco o jogou em mim com um desenho tosco, mas engraçado.

— Eu te amo, filha. —completou, com os olhos marejados— E tenho muito orgulho da mulher que você está se tornando. Então, por favor, não deixe suas inseguranças te frearem de viver. O amor é assustador, mas também pode ser maravilhoso. E você merece todas as coisas boas que o mundo tem para oferecer, cada uma delas.

— Eu também te amo. —falei, ainda sem conseguir parar de chorar— Obrigada por tudo. Eu não seria nada sem você, meu pai ou Felipe.

Me joguei nos braços dele, passando os meus por seu pescoço e mergulhando meu rosto ali. Ele fez o mesmo, envolvendo minha cintura. O apertei com toda a força que tinha, tentando transmitir o amor que sentia em meu peito. — parecia impossível colocar em palavras, nenhuma delas era suficiente para descrever a intensidade daquele sentimento.

Quando parei de chorar, Marcelo bagunçou meus cabelos e me disse para terminar de comer e depois ir até seu quarto para vermos um filme. O restante do dia se passou assim; comigo encolhida junto de meu pai — e depois meu outro pai se juntou á nós — e maratonamos todos os filmes da Marvel e alguns da Disney. A Princesa e o Sapo sempre me fazia me sentir melhor não importavam as circunstâncias. 

(...)

Ao me deitar para dormir, encarei o teto, relembrando a conversa com meu pai. Suas palavras ainda rodeavam meus pensamentos. Eu sabia que ele tinha razão. Pensei em Gabriel, me perguntando como ele estava, como tinha sido seu dia e no que ele estava pensando — se é que ainda estava acordado.

Peguei meu celular e abri a conversa com o garoto, vendo as últimas mensagens dele, que eu havia ignorado. Cheguei a digitar algumas vezes uma resposta, mas nada parecia certo. Ele ainda devia estar irritado — eu também estaria, se fosse ele. Sabia muito bem que conversas como aquela exigiam que as duas pessoas envolvidas estivessem bem e, naquele instante, acho que nenhum de nós estava.

Suspirei, deixando o aparelho na cômoda e virando na cama para o outro lado, com o coração apertado. Queria afastar a saudade intensa e estranha que sentia e ir dormir, mas não conseguia. Eu ainda estava com medo, mas começava a me perguntar se isso não era algo natural. E Marcelo estava certo, Gabriel não tinha culpa nenhuma pelo que Katarina tinha feito ou pelo que outros garotos haviam dito.

Precisava fazer algo logo ou qualquer chance dele me perdoar estariam perdidas.


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