Hello, Goodbye - The Umbrella Academy escrita por geewie


Capítulo 5
04. Ding-dong


Notas iniciais do capítulo

finalmente, mais um capítulo para a degustação de vocês! peço perdão pelo atraso, mas ele valeu a pena. espero que gostem da leitura, porque eu adorei escrever esse aqui... enfim, aproveitem, compartilhem com os amigos e não esqueçam de comentar! até a próxima ❤



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O fogo ainda queimava apesar do vento frio. Algumas labaredas eram carregadas pelo ar, e Lila precisou cobrir o nariz com o braço quando a fumaça envolveu o seu rosto.   Ao perceber os olhos esquentarem, permitiu mentir para si mesma, culpando a temperatura do ambiente ao invés das próprias mágoas. Então, continuou caminhando pelos escombros, as mãos enroladas ao redor da alça da maleta com uma força que lhe enviava um sutil aviso mental do quanto estava nervosa.

Lila não conseguia reconhecer, diante do perturbador amontoado de concreto e madeira e do telhado chamuscado, o lugar no qual havia passado grande parte de sua infância. Agora, o prédio da Comissão não passava de um punhado de fragmentos irregulares debaixo de suas botas vermelhas. Era como caminhar por um pesadelo. Ou por um vago desejo de quando ainda era uma criança. Havia imaginado como seria colocar aquele lugar abaixo algumas vezes, ideias quase involuntárias, geralmente causadas pelo humor sensível – e, na maioria das vezes, sádico – da Gestora, no entanto, nunca pensou que estar diante às suas ruínas doeria tanto. 

Lila fungou. Também sentia algo desmoronando dentro de si.

— Lila?

Os olhos dela dispararam em direção ao chamado. Quando assimilou a quem pertencia, Lila sentiu uma explosão de sentimentos invadir o seu peito, mas sabia que a situação era complicada demais para que pudesse ter tempo de interpretá-los. Ela abriu a boca, articulando por uma resposta a qual ainda não havia elaborado, e Diego apertou os lábios com força. Foram então envolvidos por um silêncio tenso e gelado, tão desconfortável quanto o clima, e Lila precisou conter a vontade de comentar sobre esse detalhe.

— Como chegou até aqui? — Ele finalmente perguntou.

Estava diferente. Parecia ter crescido dois centímetros para cima e diminuído alguns para o lado. Também tinha se livrado da barba densa que carregara nos anos sessenta, mas uma nova pelugem cinza começava dar os primeiros sinais de que iria cobrir o seu queixo, lhe dando um ar levemente descuidado. E esse distanciamento, entre a atual aparência de Diego para a que tinha registrada em sua memória, fez um punhado de saliva escorregar, dolorosamente, através da garganta de Lila.

Há quanto tempo ela havia estado fora? Suas sobrancelhas se franziram, afastando as respostas propositalmente para se concentrar no Número Dois, mas elas também estavam nele. Lila já havia observado aquela expressão de perto, repleta pelo mesmo desânimo que o acompanhara por aquelas longas semanas na clínica psiquiatria quando, depois de muito lutar, a ordem de permanecer controlado feito um animal já não lhe perturbava tanto quanto antes. Os olhos de Diego estavam aborrecidos, mas inutilmente firmes na tarefa de não parecerem magoados; os dois sabiam que Lila conseguiria lê-los até mesmo se estivesse vendada. Ela aproveitou o momento para observar sua cicatriz, agora exposta pelo novo corte de cabelo que, curto e sem nenhum parâmetro de linearidade, entregava os sinais de uma rotina apressada. Lila se impediu de continuar analisando os detalhes do homem. Quanto mais se aprofundava nas diferenças e novidades, mais seu coração se contorcia, amargurado por uma distância que, sem querer, havia sido colocada entre ambos em poucas horas.

— Maleta — Lila então respondeu, gesticulando com o objeto. — Você?

— Mala — Diego apontou com o polegar por cima do ombro, um suspiro exausto escorrendo de suas narinas.

Quando a voz ranzinza do Número Cinco foi escutada, Lila engoliu uma gargalhada.

— É claro que é você, quem mais poderia ser? — O garoto parecia decepcionado, mas não menos estressado. Havia parado ao lado do irmão e, diferente dele, não abraçara a ideia de agir como se nada tivesse acontecido desde a última vez em que ele e Lila havia se visto. — O que? Veio copiar nossos poderes de novo? Avise se for fazer isso, posso me teletransportar para dentro daquela fogueira e levar você junto comigo.

A observação fez uma sensação gelada escalar as costas de Lila, mas isso a divertiu. Ela estreitou os olhos, agarrando-se ao temperamento de Cinco para alimentar o seu.

— Tenho certeza que depois de executar os pais de uma criança, queimar uma pessoa viva não será tão difícil assim para você — Rebateu e notou quando Diego afastou sua atenção para mirá-la em qualquer outro ponto que não fosse aquele pequeno conflito.  

Um riso seco estalou nos lábios de Cinco, e Lila pensou, enquanto ele deslizava a língua pelos dentes, que o garoto estivesse se livrando do veneno de cada um deles.  

— Talvez seja uma boa hora para nos explicar o que significa isso — Ele disse, o tom ainda afiado.

A situação deixava Cinco irritado. Estava acostumado em decifrar enigmas que, para a maioria, não passavam de acontecimentos banais. Havia feito isso com o olho de Harold Jenkins e, apesar de sua descoberta ter implicado numa explosão lunar e em mais destruições do que ele havia previsto, reconhecia o excelente desempenho analítico que havia tido durante o processo. Mas agora as peças simplesmente não se encaixavam. Há tempos estava apegado à crença de que talvez pudesse achar algum sinal quando se encontrasse novamente com a Comissão. Quem sabe, um outro apocalipse a ser impedido para que as coisas, enfim, se normalizassem. Quando encontrou o prédio aos pedaços semanas atrás, no entanto, Cinco persistiu em continuar procurando por pistas. Precisavam estar em algum lugar - senão vivos, esmagados debaixo das paredes ou transitando através do tempo em busca de um novo espaço para ocuparem. Talvez depois de tanto tempo, Herbie decidira mudar de ares, partindo junto com o restante da equipe para uma nova rotina que acabasse de vez com o legado da Gestora.

Os dias continuaram a passar, e com eles, as hipóteses criadas pelo garoto pareciam cada vez mais incoerentes. Agora, Cinco lutava contra o próprio ego e esperava, amargamente, que Lila pudesse solucionar o que ele não conseguira até então. Ele cruzou os braços e deixou a atenção cair sobre a maleta que, caso seu palpite estivesse certo, era a última a existir, mas Diego o impedira antes que pudesse comentar sobre isso.

— Tá na cara que ela também não sabe o que aconteceu — O irmão falou com a atenção ainda dispersa. Quando decidiu fixá-la novamente em Lila, a pequena já o observava, e os olhos do Número Dois se estreitaram para ela. — Mas ainda assim nos encontrou.

— Eu não estou perseguindo você — Lila cortou as palavras de Diego e, enquanto a afirmação era digerida por ele, o rosto do Número Cinco se enrolava numa irritante expressão de surpresa.

Lila soltou o ar, passando a maleta para outra mão. Pretendia sim, sair a procura e Diego. Aquele era o motivo pelo qual havia deixado Roswell, afinal de contas. Mas havia carregado uma hippie de outra dimensão consigo, provavelmente, agora perdida pela cidade, e esperava que com uma ajudinha - não autorizada - da Comissão, ela poderia localizá-la primeiro. Ironicamente, seus planos haviam mudado e agora estava cara a cara com a pessoa que imaginou ser necessário matar um leão com os próprios dentes para que a olhasse nos olhos outra vez. Para o seu alívio, havia sido muito mais fácil.

 — Pensei que encontraria Herbie em... — Ela olhou em volta. Uma porta partida ao meio começava a ser consumida pelo fogo, e Lila tentou não pensar em qual sala o objeto um dia pertencera. — Algum lugar.

— Ele sumiu — Cinco se moveu calmamente.  — Todos eles. Desapareceram — Parou na pilha de entulho mais próxima e usou um dos pés para afastar os materiais amontoados numa tentativa de analisá-los melhor. Quando encontrou um livro parcialmente queimado, se abaixou para apanhá-lo, mas se frustrou assim que o folheou e suas páginas se desfizeram pelo ar como pequenos flocos de neve enegrecidos. — Como num passe de mágica.

— Nós procuramos em toda parte — Diego continuou, e Lila voltou a olhá-lo. — Nenhum cadáver, apenas escombros e esse maldito fogo que queima há semanas.

Os membros de Lila enrijeceram, e ela se perguntou, enquanto um tremor sacudia seu queixo, em que momento as palavras haviam conseguido o poder de arrepiá-la mais que o frio.

— Você disse semanas? — Lila esboçou sorriso descrente, que não teve forças para se formar, desaparecendo muito antes que ela sequer cogitasse segurá-lo. — Não podem ter se passado semanas, eu acabei de... — Sua voz falhou enquanto olhava ao redor, dividida pela curiosidade de um fogo incessável e pela impotência causado pelos dias que a maleta em sua mão havia lhe roubado.

Cinco se aproximou e, assim como Diego, estava com dificuldades para interpretar a confusão que, cada vez mais, se apossava dos olhos de Lila. As mãos do garoto de afundaram nos bolsos do paletó do uniforme.

— Lila, há quanto tempo pensa que ficou fora? — Ele perguntou, olhando-a nos olhos.

Lila piscou como se tivesse atingida pelo badalar desnorteante de um sino. As contas invadiram seu cérebro rapidamente, mas, assim como as outras, sem uma solução efetivamente satisfatória. Então, decidiu optar pela única informação concreta que tinha até então: Johnny.

— Eu preciso contar uma coisa pra vocês. — Lila disse, e Diego e Cinco se entreolharam.

[...]

Luther estava lendo. A revistinha da vez se chamava The Sparrow Kids e era protagonizada por pequenas versões dos heróis. Nela, eles precisavam viver como crianças normais durante o dia, enfrentando as injustiças e calamidades do jardim de infância, e lutar contra vilões megalomaníacos superexagerados durante a noite.  Além de aventuras mirabolantes, as edições não entregavam muito mais do que uma ou duas informações importantes sobre a equipe, e isso explicava o porquê de Luther tê-las encontrado junto com outras dezenas numa caixa de papelão esquecida no bunker subterrâneo de Reginald. O velho as estudara por um tempo, mas dissera precisar de fontes mais concretas para analisar o comportamento da equipe de John Perseus, e, apesar de serem estupidamente divertidas, elas não estavam nas páginas de quadrinhos.

Luther lambeu a ponta do indicador e mudou de página. Já estava na catorze, e o pequeno Ben agora ocupava ela inteira, os tentáculos do garoto ilustrados majestosamente pelo papel até a página quinze. O desenho fez o Número Um revisitar o passado. As revistinhas da Umbrella Academy nunca o atraíram - aquele tipo de leitura era mais o estilo de Diego -, mas a sensação protagonizá-las era indescritível, mesmo quando o destaque excessivo que davam ao seu personagem, o Space Boy, se tornava motivo de pequenas intrigas entre os irmãos. Mas Ben, surpreendentemente, não se incomodava. Pelo contrário, o Número Seis parecia satisfeito por raramente registrarem suas habilidades nas ilustrações; os tentáculos, uma editora certa vez se justificara, assustavam as crianças e isso afetava as vendas.  Agora, depois de anos e algumas viagens pelo tempo, o novo Benjamin não só estampava uma página especial, como também estava presente na maior parte delas. O Horror era uma febre.

Luther se mexeu na cadeira e apoiou o cotovelo na mesa para descansar o rosto na palma da mão, a xícara de chocolate quente esfriando calmamente ao lado. Se concentrou no balão de fala acima da cabeça de outro integrante do grupo - Marlí, a garota que curava ferimentos e restaurava coisas com uma maestria quase divina -, mas foi puxado novamente para longe da narrativa, distraído pelos próprios pensamentos. A casa estava silenciosa. Sabia que Alisson estava em algum lugar por ali, pois os turnos da Número Três costumavam ser menores àquela altura da semana, e Vanya havia passado pela cozinha horas mais cedo, segundo ela, à procura da irmã. Apesar das alegações tímidas da Número Sete, Luther desconfiava que as buscas dela lá embaixo não passavam de desculpas para que ela pudesse conferir se ele não havia adormecido novamente sob um pedaço de pizza ou, em um cenário mais drástico, morrido engasgado com pasta de amendoim. Quanto a Reginald e Grace, eles estavam no Hangar. Pelas poucas frases que Luther dera atenção ao longo do dia, a Sparrow Academy havia tirado um avião das mãos de terroristas, e o casal estava acompanhando o caso desde que as primeiras notícias haviam sido divulgadas. O Número Um encarou o balão no quadrinho outra vez. “É o fim da linha", Marlí alertava para um ladrão mascarado. Talvez fosse mesmo. Talvez todos estivessem no fim de alguma coisa. Luther suspirou fundo, e, no andar de cima, a campainha tocou. Ele franziu as sobrancelhas. Reginald tinha uma campainha? Desde quando? Decidiu ignorar o barulho. Voltou a olhar para a revistinha e lambeu o indicador para ir para a próxima página, mas outro Ding Dong da porta impediu o gesto. Ele segurou um palavrão nos lábios quando, ao colocar o impresso em cima da mesa e se levantar, um pouco de chocolate quente espirrou para fora da xícara. Quando alcançou o primeiro andar, o palavrão ainda estava lá.

— Sim? — Luther puxou a maçaneta quando um terceiro Ding Dong já ecoava pela casa. Pela fresta da porta aberta, procurou no ar por alguns segundos até baixar o olhar para quem o dedo insistente que o tirara de seu momento de paz pertencia.

Do lado de fora, Johnny sorriu um pouco sem graça ao ser flagrada.

— Oh, hey — Ela recuou o braço devagar.  — Eu não quero incomodar, só estou procurando por... — Então, abaixou os olhos para o papel que carregava em mãos com hesitação. Luther os seguiu. — Hm... Klaus Hargreeves?

O Número Um revirou os olhos. Olhe só para aquela calça. Era óbvio ela que estava procurando por ele.

— Isso o pertence, preciso entregar pra ele.

Se encararam. Luther analisou Johnny, mas sua desconfiança não era muito maior do que o seu desejo de voltar para aquela cozinha abafada, por isso, assentiu e, indiferente, terminou de abrir a porta.

— Acho que ele está lá em cima — Luther coçou o pescoço com desânimo, sem muita certeza. Não havia escutado nenhuma música da Cindy Lauper ser cantarolada pelas escadas e isso, mesmo depois de tantos anos, era o melhor radar para identificar a presença de Klaus. Fechou a porta e esfregou as mãos para se livrar da temperatura fria carregada pelo vento. — Eu posso ir até lá chamá-lo, mas isso pode demorar um pouco — Ele sugeriu, finalizando a frase com um suspiro cansado. No entanto, se interrompeu quando notou Johnny arregalar os olhos, encarando-o como se ele fosse o autor de um álbum de rock.

— Ai meu Deus, é você — Ela disse, extasiada, sondando o corpo de Luther, e ele encolheu os ombros numa tentativa de parecer menor.

— Desculpe, quem?

— O Space Boy! O Número Um! É você! — Johnny vibrou com um pulinho, mas se conteve quando Luther deu um passo para traz, intimidado. Então, controlou seu tom de voz e, encenando uma timidez, olhou para os próprios pés. — Costumava escutar suas histórias quando era mais nova — E, quando ergueu novamente a cabeça, um sorriso acanhado se esticava nos lábios do homem.

Luther endireitou a postura, o rosto iluminado. Sentia-se como se retornasse para a folha de uma revista em quadrinhos, as cores e balões de ações retornando para sua memória. A informação, de repente, o lembrara do papel que, apesar dos pesares, ainda ocupava. Olhou nos olhos de Johnny e a felicidade encontrada neles fez seu peito aquecer, preenchido pelo orgulho que não pensara ser capaz de sentir novamente. Estava encantado pela própria identidade, amortecido o suficiente para não dar a devida atenção para o pensamento que o alertava sobre as chances de, numa nova linha temporal na qual a Umbrella Academy nunca existira, alguém já o conhecesse. O aviso percorria o fundo de sua mente, mas Luther não conseguia fixá-lo por muito tempo. Seu lado racional, de uma hora para outra, estava escorregadio como um sabonete. Ele sorriu ainda mais. Desta vez, sem timidez.

— Sim — Ele balançou a cabeça, quase surpreso — Sim, sou eu! — E seu coração bateu forte com a própria constatação. Estava diante de uma fã, e a sensação de ser adorado era leve e reconfortante. Ele gesticulou com a mão para o hall, sugerindo que Johnny abandonasse sua posição perto da entrada e o acompanhasse pela casa. Não gostaria que uma admiradora se sentisse desconfortável. Será que ela estava com frio? Talvez fosse apropriado oferecê-la uma xícara de chocolate quente ou, então, ligar o aquecedor. Existia um aquecedor naquela casa, não existia? Cristo, como estava gelado ali em cima. Os pés dele estavam congelando. Luther abandonou o pensamento, distanciando-se da sensação. Então, se apressou para se colocar ao lado da visitante, que com a cabeça erguida, analisava o lustre escuro suspenso no teto, silenciosa e pensativa.

Enquanto isso, o Número Um se apegava ao desejo de que o ornamento empoeirado ainda fosse capaz de causar alguma boa impressão aos convidados do que apenas servir de lar para aranhas. A claridade emitida pelas lâmpadas incandescentes do objeto, pelo menos, permanecia intensa, e Luther piscou diante dela. Da mesma forma, o pensamento ignorado em sua mente voltou a cintilar em algum ponto em sua cabeça.

— Espere um minuto — Ele atraiu a atenção de Johnny. — Como você me—

— Os cartazes, as notícias na televisão... Vocês estavam por toda parte! — A resposta empurrou o raciocínio de Luther para trás.

Johnny acompanhou os olhos do homem se afastarem, intrigados, e quando as linhas tensas na testa dele se suavizaram, ela lhe enviou um sorriso amigável. Não estava mentindo, apesar do único interesse que tivera pelo Número Um e seus irmãos ao longo dos anos estar bem longe da admiração, mas esperava que quando finalmente se encontrasse com o Space Boy para um acerto de contas, ele pudesse estar em um estado mais impressionante do que calça de moletom e pantufas de gente velha poderiam oferecer. Também esperava que a mansão dos Hargreeves estivesse em melhores condições. Agora, o espaço assustador parecia pior do que os flashbacks que, por muito tempo, a atormentaram. Johnny nunca pensou que em todo seu ambiente preto e branco, a Academia poderia se tornar ainda mais cinza.

 — Algum problema? —  Ela olhou para o rosto enevoado de Luther.

Sim, existia algum. Estava lá, Luther sabia. Apenas não conseguia identificar qual era. No fundo, algo o incomodava, quase que com a mesma sensação de quando procurava sua carteira e depois a encontrava, passivamente, no próprio bolso. Seus pensamentos estavam bagunçados, cada vez mais lentos. Era como se estivesse... fora de órbita. Outra vez. Seus olhos piscaram e, quando tentaram retornar para aquela estranha figura feminina, não a encontraram. Onde ela estava? Luther tentou se virar, mas seus movimentos também estavam dispersos, como se estivessem câmera lenta. Seu corpo retomou o seu ritmo natural com um impulso, mas seu coração acelerou quando enxergou a mulher parada em frente a porta, parada, como se ainda esperasse seus comandos de anfitrião para que pudesse entrar. O que ela estava fazendo ali?

Diante sua confusão, Johnny franziu as sobrancelhas enquanto sustentava um sorriso arteiro.

— Não vai me convidar para entrar?

Luther se sentiu envergonhado. O que ele estava fazendo debaixo daquele lustre? E por que estava tão frio? Que tipo de idiota abandonava uma fã daquela forma? Por Deus, por que estava tão frio? Olhou para o próprio braço, sentia os pelos ali se arrepiarem, o incômodo percorrendo sua pele até as pequenas pontadas nas extremidades dos dedos. Estavam roxos?

— Algum problema?  — A pergunta fora feita por alguém ao seu lado.

 Lá estava ela novamente, parada junto a ele, também olhando para o braço parcialmente levantado como se nunca tivesse abandonado aquela posição. O que ele estava fazendo?

 — Quer que eu chame alguém?

— Desculpe, eu estou me sentindo... — Luther obrigou os lábios se fecharem, pois não conseguia encontrar uma definição.

Sentia-se embriagado. E leve. Outra vez. Leve demais. Os pensamentos ainda se emaranhavam em sua mente, um novelo de lã repleto de palavras as quais ele não conseguia encontrar a ponta. Fechou os olhos e apertou um deles com o polegar, buscando manter a calma.  Quando os abriu, a observou, dessa vez, com um pouco de medo.

Havia encontrado uma palavra. Era perigo.

 — Vou encontrar Klaus para você. Espere aqui, está bem? — E se virou, prendendo a respiração enquanto se concentrava em seus passos até o primeiro degrau.

Quando finalmente o alcançou, precisou soltar o ar para girar o corpo e apoiar as costas no corrimão enquanto bloqueava o golpe que, por pouco, não o atingira na cabeça. A barra de metal estava gelada, e o desconforto causado por ela podia ser sentido mesmo sob o tecido do agasalho, espalhando-se junto com a dor provocada pelo objeto em seu braço. E era através do espaço criado por ele que Luther encarava sua oponente. Desde quando ela estava armada? Melhor: Como ele não notou que ela estava?

Do outro lado da arma, Johnny o encarava com fervor, os olhos brilhando, a boca úmida, e, apesar da rápida reação de Luther, ainda estava focada em machucá-lo, pressionando o objeto contra o corpo do homem com violência. Sentia as mãos doerem por conta da ação, a pele se tornando sensível sob a pressão colocada no metal. Tentou colocar mais força. Luther grunhiu e, com um súbito impulso, conseguiu empurrá-la para trás.

— O que você quer? — Ele esbravejou, afagando o braço ferido enquanto a pergunta ecoava pelo hall num completo tom de fúria.

O rosto de Johnny latejava. O movimento de Luther havia lhe acertado no nariz, e a dor ativada pelo golpe fez com que seu sistema nervoso a lembrasse da delicada situação que o impacto contra a cabeça de Lila havia causado horas mais cedo. Ela empurrou o grito de dor garganta à dentro. O cheiro do próprio sangue, em contrapartida, a fez apertar a barra de metal com uma intensidade grande o suficiente para fazer suas mãos doerem. Os Hargreeves já haviam roubado coisas demais dela. Então, partiu para cima de Luther outra vez.

Com um movimento rápido, o Número Um se esquivou do golpe, que brutalmente atingira um dos vasos ao lado da escada. A nuvem de poeira erguida pelo ornamento estilhaçado fez os olhos de Johnny se irritarem, e Luther aproveitou sua distração para tentar desarmá-la. Puxou o bastão para si, cambaleando para trás, e o desequilíbrio repentino o preocupou. Não podia estar tão enferrujado. Fazia algumas boas semanas desde seu último combate corpo à corpo, mas havia estado longe de conflitos por longos intervalos diversas vezes e, mesmo assim, se saíra bem. A situação era diferente daquela vez. Não só se sentia mal preparado, como também extremamente cansado.  Agora, além de leves, suas pernas também estavam geladas, e junto com a sensação, sua respiração também congelava. Ainda assim, teve condições para sacudir a barra de metal quando a garota novamente o tomou como alvo e não a acertou por pouco.

Johnny era boa em se esquivar. Não havia recebido um treinamento adequado - Reginald, ela se lembrava, havia passado mais tempo a punindo por sua falta de disciplina do que efetivamente a ensinando a desenvolver uma. Era atrapalhada demais nas atividades individuais e pouco focada em desafios em equipe. Artes marciais, autodefesa, análise de inimigos... tudo exigia uma concentração a qual Johnny sabia que jamais seria capaz de ter. Mas isso não a tornava uma oponente mais fácil. Quando se não sabe como dar um bom gancho de direita e se está cercado por outras crianças mortíferas, logo é obrigado a escolher outras técnicas de defesa. Johnny tinha três. A primeira era se firmar na sensação estranha e inquieta no fundo de sua mente. A segunda, se aproveitar de qualquer coisa capaz de cortar um membro ou que pudesse ser arremessada a bons metros de distância. E, por último, a terceira: fugir. E para alguém que não era boa em quase nada, Johnny conseguia ser excepcionalmente fantástica nas três. Ela encolheu o abdômen quando um segundo golpe foi deferido por Luther, e ele não mediu esforços para tentar acertá-la uma terceira, quarta, quinta vez. Na sexta, Johnny se abaixou, deslizando pelo piso, e aproveitou a repentina mudança de altura para dar uma rasteira que, com a facilidade de um sopro perante um castelo de cartas, derrubou Luther. O som causado pela queda do Spaceboy fez alguém chamar por ele no andar de cima. Estavam se aproximando, e isso fez Johnny sorrir.

Já Luther desejou gritar. No chão, o Número Um tentava se orientar. Não tinha certeza se havia batido com a cabeça, mas ainda assim sentia seus pensamentos rodarem como um peão desnorteado. A sensação o afastava do instinto de alertar Alisson sobre a intrusa que o atacara. Já não conseguia falar. Ou se mover. Estava fora de órbita. Seu nome foi novamente chamado - gritado - no andar de cima e seus dentes rangeram. De onde estava, o lustre de Reginald parecia maior, mas Johnny pareceu ainda mais quando se colocou em seu campo de visão, analisando-o, ali, estirado e indefeso, como um animal recém-caçado. Ela havia recuperado o bastão de metal. Por favor, por favor não me mate. Luther fechou os olhos. Por favor. E quando abriu, estava na frente de dia antiga base espacial, na Lua e – o que talvez fosse mais desesperador - sem capacete.

Foi então que Luther começou a sufocar.

Do ponto de vista de Allison, o estado do Número Um era degradante. Avistou o corpo imobilizado de Luther ainda no topo da escada, e o tom azulado de sua pele a envolveu numa onda de adrenalina que só permitiu que ela percebesse que havia descido os degraus quando já estava debruçada sobre o homem. Os olhos dele estavam virados, completamente distantes, mas agitados, como se estivesse acordado – só não ali. Alisson chamou por ele outra vez, o rosto frio abrigado entre suas mãos quentes, mas os grunhidos indecifráveis vomitados por Luther apenas a frustraram.

Em meio ao momento de desolação, Alisson viu as botas. Dois pés parados e tão irritantemente pacíficos quanto a mulher que os carregavam e assistia a cena.

A Número Três não esperou. No segundo seguinte, o bastão de Johnny foi colocado novamente em movimento para revidar os golpes de sua oponente. Em um momento de sorte, um chute dado por Johnny enviou as costas de Alisson contra uma das colunas - e sua arma, rapidamente, para o pescoço da mulher.

Furiosa, a Número Três se debateu e então...

— Eu ouvi um rumor...

Johnny a empurrou para fora da coluna, e, assim que se viu longe do aperto, Alisson levou as mãos até a garganta, aspirando o ar para recuperar o fôlego. O momento de desvantagem deu o tempo necessário para que Johnny recorresse aos degraus, subindo-os rapidamente para alcançar o andar de cima. Alisson cogitou segui-la, mas parou assim que um gemido doloroso a alcançou.

No chão, o corpo do Número Um ainda tremia em seu hipotérmico estado de transe, e isso fez Alisson arder. Ela se preparou para gritar suas palavras mágicas - suas mágicas e mortais palavras, que canalizariam o seu desejo de assistir aquela mulher engasgando até a morte com a própria língua -, mas quando abriu a boca, encontrou algo muito diferente do que havia mentalizado: seus rumores haviam se transformado em abelhas.

 A primeira atravessou sua boca e saiu voando pelo ar, e a sensação causada pelo percurso do inseto deixou um rastro de enjoo para trás. Quando outras duas saíram, Alisson foi engolida pelo medo. Tentou pedir socorro, mas novos animais escaparam. Logo se viu cercada por um enxame inteiro. Johnny se virou para observar Alisson enquanto corria pela escada. A Número Três estava desesperada, lutando contra uma ameaça imaginária e, assim como Luther, recitando palavras desconexas. Os dois pareciam ter enlouquecido e isso era bom, pois a insanidade de qualquer membro da Umbrella Academy alimentava a vitória de Johnny. Quando alcançou o segundo andar, ela se lembrou de olhar pra frente quando esbarrou em outra pessoa.

O pequeno corpo de Vanya foi empurrado para trás e, entre um breve segundo de confusão, Johnny escutou um pedido de desculpas escapar da Número Sete antes de ser arremessada escada abaixo por uma força invisível. Com um baque, quadros atingiram o chão no mesmo instante em que Johnny também se estatelou sob o piso, e Vanya tratou de segui-los antes que a invasora se recuperasse. No entanto, ao se deparar com Alisson, completamente amedrontada, sacudindo o corpo compulsivamente para se livrar de um incômodo que – aparentemente – não existia, Vanya foi envolvida por uma onda de preocupação que apenas se intensificou quando seus olhos pousaram em um Luther imóvel no chão. Ficou paralisada, diante os pés do irmão, enquanto os seus se recusavam a se movimentar.

Quando notou, se curvou para baixo, as mãos alternando puxões firmes ao redor das panturrilhas para se livrar do estranho magnetismo colocado abaixo de seus sapatos. Ao virar para trás, já era tarde demais. A adrenalina queimava as veias de Johnny, deixando um rastro vermelho e quente num dos lados de seu pescoço. As mãos dela já estavam erguidas, e Vanya se perguntara como não notou que aquela mulher havia se colocado em pé ao seu lado. A Número Sete fechou os olhos quando o bastão a atingiu, e esperou, enquanto sua consciência se dissipava, que a voz de Klaus não fosse parte daquele delírio.

No meio da escada, o Número Quatro recuou um degrau quando o corpo da irmã se estatelou ao lado de Luther. Então, sorriu amarelo ao perceber que sua presença já havia sido capturada pelos olhos da garota que, mais cedo, havia criado uma confusão em seu questionável ambiente de trabalho.  

— Suponho que você não tenha encontrado o seu gato — Ele disse, olhando para os corpos dos irmãos e, engolindo seco, para ela.

Johnny balançou a cabeça negativamente, os olhos se apertando levemente diante a suposição enquanto boca sua boca se fechava numa linha que, em outra situação e diâmetro, talvez pudesse ser considerada um sorriso. Klaus, porém, não demorou para lê-lo. Era a mesma expressão que vira algumas vezes no rosto do Número Cinco e vagamente nos dos traficantes os quais um dia devera dinheiro. Um aviso amigável de que teria as tripas arrancadas caso não saísse correndo. E foi isso que ele fez.

E Johnny o seguiu.

Depois disso, alguns acontecimentos acabariam se misturando entre os efeitos das drogas sintéticas que consumia e a ressaca moral gerada por suas sessões espirituais, e Klaus não lembraria se havia realmente rolado pelo carpete do andar de cima atracado à intrusa que nocauteara seus irmãos ou se havia sido arrastado por ele, como uma vítima em um filme de terror, quando ela o capturara tentando escapar. Também não saberia afirmar se quando estava esticado no chão conseguira se desviar de todos os golpes deferidos por ela com aquela estúpida barra de metal. No entanto, nem mesmo a droga mais vagabunda daquela cidade seria capaz de apagar as cenas que se seguiram de sua memória – eram inusitada demais para ser apagada. Num instante, aquela jovem tentava açoitá-lo, no outro, os movimentos dela haviam diminuído, seguidos por uma careta de dor, até que cessaram completamente, levando-a inconsciente para o chão ao lado de Klaus. Atrás dela, Reginald segurava um vaso parcialmente destruído enquanto Grace, ao lado do velho, lhe dava cobertura com outro objeto de decoração em mãos. O Número Quatro respirou fundo e sentiu a própria respiração se afogar entre o alívio e a surpresa. Ele olhou para os cacos de cerâmica que se espalhavam pelo cabelo da intrusa e para o filete de sangue escorria pela testa dela, e, enquanto começava a se preocupar com a possibilidade de Reginald tê-la matado, uma pergunta martelava sua consciência.

Quem era o filho da puta que havia deixado ela entrar ali?


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Notas finais do capítulo

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