Hello, Goodbye - The Umbrella Academy escrita por geewie


Capítulo 4
03. Em Outra Vida


Notas iniciais do capítulo

Dessa vez, decidi trazer um capítulo um pouco mais curtinho do que os outros pra ajudar na leitura e deixar a dinâmica dos próximos capítulos mais clara (tá vindo confusão por aí, se preparem!). Obrigada para os poucos que estão acompanhando, a presença de vocês é importante! Se está gostando, não se esqueça compartilhar com os amigos e comentar, adoraria saber o que vocês estão achando.

Mas já chega de conversa, boa leitura!



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Ele ainda tinha o mesmo cheiro, Caroline percebera.

A colônia era uma edição limitada da Dolce & Gabbana nos anos oitenta, quando se conheceram, e o aroma cítrico era tão intenso e embriagante quanto naquela época. Ela fechou os olhos e inspirou profundamente para senti-lo, esperando que o perfume familiar compensasse a estranheza causada pelo corpo magro que deslizava pelo sofá para abraçá-la. Ao menos, o terno lhe caíra bem. Bem melhor, na verdade. Como quando ainda eram jovens e não eram separados pela barriga ovalada dele, cheia de martinis e pratos de salmão.

Um beijo foi depositado na têmpora de Caroline, e ela sorriu. Já não conseguia decidir se a diferença na sensação era reconfortante ou deprimente. Antes, a presença do marido era como chuva para ela. Gotas firmes, que sabiam quando deveriam ir e vir; frutos de garoas comportadas e territoriais. Agora, ali estava, diante de um mar que tentava se encaixar no papel de tempestade. Uma bagunça charmosa, faminta e imprevisível, que a encantava mais e mais, a levando sorrateiramente para o fundo. Não era possível se afogar em garoas, ela sabia, e talvez fosse por essa razão que o cheiro da maresia lhe parecesse tão tentador. Caroline tentou se concentrar na maneira como os lábios dele pousavam em sua pele, na maneira como ele a acariciava, na maneira como...

— Sinto falta do tio Jacob.

O comentário fez os olhos dela se abrirem. Ele estava com a cabeça encostada em seu queixo, brincando com o dedo da mão que um dia carregara uma aliança. Caroline não soube o que dizer. Não estava esperando pela menção repentina ao homem, o assunto era delicado demais para ser abordado naquelas circunstâncias. Simplesmente, não era adequado. Muito menos, seguro. Ficaram em silêncio.

Dois dedos foram levados até o seu queixo, e Caroline corou quando eles a obrigaram a encará-lo nos olhos.

— Estou falando sério — Ele assegurou. — Sinto falta dele.

— Querido, você não deveria. Não depois de tudo.

Ela observou as mãos dele caírem pesadamente sobre o colo e se surpreendeu pela maneira como a ausência de seu toque lhe causara um aperto no peito. 

— Eu sei, mas a sensação... Ela tem me perseguido, entende?

Não, ela não entendia. Caroline havia se proibido de entender as coisas assim que entrara naquele quarto. Se é que o espaço poderia ser chamado assim. Era um lugarzinho de ar barato, decorado aos montes por veludo, seda sintética e uma mobília escura, que o deixava numa aparência mal definida entre o quarto de uma prostituta aposentada do Tennessee e um consultório terapêutico. Os dois descansavam no sofá de estampa de guepardo, ao lado do divã de couro e em frente ao terrário embutido na parede. Dentro dele, uma iguana dormia debaixo da luz de uma lâmpada, que tentava simular a luz solar. Para Caroline, o quarto era um universo completamente diferente do que a fachada pouco convidativa do prédio tentava convencer. Por alguma razão, as pichações de figuras obscenas, que preenchiam boa parte da vitrine, pareciam menos vulgares para ela do que as paredes vermelhas que agora a cercavam ou a escultura em formato de olho que parecia persegui-la para onde quer que ela olhasse. Também havia aquele candelabro bizarro de velas pretas, e Caroline estava evitando pensar sobre as luzes de natal pregadas como um pentagrama no teto.

Ela umedeceu os lábios e apanhou o braço esquerdo do homem.

— Sinto muito pelo terno — Caroline acariciou o tecido. — Você nunca gostava quando ficavam largos demais.

Ele riu. Outro beijo, desta vez, na bochecha.

— Eu senti falta disso. 

Caroline abriu um sorriso tímido. Tentou se manter presa ao carinho enquanto enviava um olhar para a bolsa de grife colocada em cima da mesa. Sentia as mãos do homem circulando sua cintura, o mesmo toque firme que havia a carregado até o altar. Estavam frias, a temperatura podia ser sentida mesmo com o tecido do vestido os separando. Ela sacudiu a cabeça para recobrar o raciocínio. Quando se esquivou, afastando as mãos dele gentilmente, olhos frustrados a encararam. Caroline precisava ser firme e, Cristo, como ela odiava isso. 

— Jenny e Hughie pretendem fazer faculdade. Os dois. E estamos sem recursos, querido. 

Ele franziu o rosto e recuou como se tivesse visto um inseto. 

— E quanto as nossas reservas? 

— Elas acabaram. 

— Acabaram? Como assim acabaram?

— George, já fazem dez anos! — Caroline exclamou e, percebendo a surpresa do marido diante o tom usado, levou uma mão até o rosto dele, num gesto apaziguador. — Precisamos da sua ajuda. Você sabe onde está o quadro? Por favor, me diga onde ele está, meu amor.

George a encarou por alguns segundos, e, quando assentiu, Caroline se jogou sobre ele, sufocando-o num abraço enquanto entoava uma sequência de agradecimentos. Quando o soltou, a mulher se endireitou, profundamente animada e com os olhos cheios de expectativa. George então se afastou um pouco, puxando as mangas do terno até onde elas permitiam, para alongar o pescoço, se preparando. Ele então respirou fundo, estreitou os olhos e...

— Eu esqueci — Confessou amargamente, batendo na cabeça com um gemido frustrado. Então, levantou o olhar para Caroline, choramingando — Minha memória não é mais a mesma.

As mãos da mulher envolveram o rosto de George, firmemente, e ele tentou se convencer de que o aperto ligeiro das unhas dela sob sua pele era apenas um gesto de carinho exacerbado. Afinal, faziam dez anos. Dez anos...

— Você precisa se lembrar! — A ordem foi camuflada por um sorriso sem graça. — Por favor, meu amor. Se esforce um pouco mais. Por mim. Pelas crianças. 

Crianças que estavam indo para faculdade. Crianças que não responderam ao seu bom dia naquela manhã. Crianças que não atenderam o telefone. 

George forçou um sorriso, afastando-se de Caroline. Ele se lembrava do quadro. Tinha um vago vislumbre da tela em sua memória. A peça estava em sua família por décadas e acabara causando mais mortes durante todo aquele período do que as doenças que existiam quando havia sido pintada, no século dezoito. Se o pai de George não tivesse a escondido tão bem, talvez ele tivesse uma vida normal longe daquela caça ao tesouro. Mas a escolha de uma realidade comedida se tornava algo fácil depois que se era criado em uma casa com dezesseis empregados, e, apesar de tudo, George gostaria de continuar dando isso para a esposa. Ele acariciou a mão de Caroline, pronto para entregar o que o embaraço em seu raciocínio lhe permitia se lembrar, e, quando abriu a boca, uma sílaba desafinada escapara por ela antes de se transformar em uma tosse profunda e ruidosa. 

A porta do quarto se abriu. 

— Acabou o tempo — O anúncio foi feito pela voz grave de um brutamontes tatuado, e Caroline se virou para olhá-lo num misto de espanto e indignação.

Se tratava do mesmo homem que havia lhe atendido há algumas semanas, quando decidira visitar o endereço após a sigilosa conversa que tivera com uma amiga depois da aula de yoga. Segundo a mulher, seu primo havia se curado de um tique nervoso após uma sessão com a avó para resolverem questões do passado. Caroline odiava esse tipo de coisa, mas estava desesperada. Quando desembarcou na esquina do estabelecimento – trajada dos pés à cabeça como se tivesse se esquivando de um assassino de algum filme em preto e branco -, sentiu-se um pouco mais aliviada ao se deparar com a fachada singela do que parecia ser um escritório em decadência no gueto. Mas as coisas mudaram quando encontrou uma gangue de motoqueiros dentro dele, administrando-o como uma trupe de secretárias de luvas vazadas, coletes de couro e coturnos. Surpreendente, conseguiam ser mais organizados do que muitas repartições do governo que Caroline havia visitado nos últimos anos.

— O que? — Ela olhou para o relógio prateado em seu pulso e bufou quando constatou que a uma hora e meia por qual havia pago passara por eles como míseros e inúteis minutos. — Preciso de mais tempo, ainda não consegui nada! — Então, tirou os olhos do motoqueiro para colocá-los sob o homem escondido em meio as almofadas e, longe da delicadeza que vinha mantendo nas últimas horas, agarrá-lo pelo colarinho, aproximando o rosto violentamente do dele.  — Me diga onde está o quadro! 

George balançou a cabeça e exibiu um sorriso sem graça enquanto encolhia os ombros, acanhado pelo movimento inesperado da mulher. 

— Desculpe, mas não sou eu quem faço as regras — Soluçou, uma tosse pequena acompanhando a última palavra. — O Morgan faz. 

Na porta, Morgan acenou com os dedos, e o rosto de Caroline ficou vermelho. Com raiva, ela se desvencilhou ainda mais do magricela, o empurrando com uma mão enquanto se esticava pelo sofá para apanhar o casaco e o estúpido par de Loubotins que haviam lhe garantido que ajudaria no processo. Colocou-se de pé violentamente e usou uma das plataformas de salto alto para golpear a bagunça de olhos verdes, que agarrada à uma almofada, tentava se proteger.

— Você é uma fraude! — E lá se foram mais dois golpes. Embaixo deles, uma mão foi acertada e um Isso dói! em protesto foi gritado pelo rapaz enquanto ele a sacudida no ar. 

A agressão foi interrompida para que uma nova ameaça pudesse ser feita, e Caroline assoprou a franja do rosto quando apontou o sapato para Morgan e caminhou decididamente até ele. Sua fúria, no entanto, se tornou uma piada presa no rosto do homem quando ele precisou olhar para baixo para encará-la, como um gigante de pedra recém acordado pelas perturbações de um camundongo. 

— Não pense que não farei nada sobre isso — O indicador de Caroline estava apontado para o nariz de Morgan.

— Sua família está falida e o seu marido está morto. Então, não. Você não vai fazer nada — Ele empurrou a porta com o braço, e a claridade do lado de fora cortou a meia luz do quarto com uma intensidade impiedosa. 

Por uma última vez, Caroline o condenou, encarando-o profundamente. Ela o empurrou com o ombro - como se alguma parte de seus míseros um e sessenta fosse capaz de fazer aquela montanha humana se mover - e saiu do quarto, mas não sem deixar uma trilha de insultos pelo caminho. Morgan esboçou um sorriso torto. Para uma mulher que presava tanto pelo status e comportamento, Caroline tinha um conhecimento admirável para palavras de baixo calão. Quando se transformaram em murmúrios indecifráveis por conta da distância, ele se afastou da porta com os braços cruzados.

— Conseguiu a localização do quadro?

Do sofá de veludo, um polegar foi erguido. Já estava com um cigarro pendurado no canto da boca, prestes a ser a aceso, e ele não se importou em erguer os olhos para receber as parabenizações quando um riso satisfeito atravessou pela boca do motoqueiro.

— Devo admitir, você me enganou. Até que você não é tão merdinha assim, garoto — Morgan estava sorrindo, a barba grisalha roçando o seu peito. — Bom trabalho.

 

Uma pequena chama foi gerada pelo isqueiro. O cigarro foi tragado e a nuvem de fumaça formada por ele rodeou o sofá como uma serpente. O brutamontes voltou a se mover, precisava voltar para o escritório para ter certeza de que o lugar não havia sido destruído por mais uma viúva desolada.

— Morgan?

O homem olhou para trás.

— Hum? 

— Vou querer meu pagamento em dinheiro desta vez — O rapaz levantou a cabeça preguiçosamente do encosto do sofá.

O motoqueiro esboçou outro sorriso. Estava orgulhoso demais para fazer restrições.

— Como quiser, Klaus — Ele moveu a maçaneta, e a luz clara voltou a envolvê-lo. — Estamos te esperando aqui fora.

Logo que se viu novamente sozinho, um gemido de frustração foi arrancado do Número Quatro. Não queria estar sóbrio. Puta merda, o que ele não faria por uma dose. Milhares delas. Já fazia quanto tempo desde a última vez em que enchera a cara? Uma semana? Dez dias? Ele não estava contando aquela terça-feira em que ele e Cinco haviam virado algumas margueritas na hora do almoço. Se não gostava de ser chamado de criança, talvez o irmão não devesse colocar tanto açúcar em suas bebidas, para variar. Não, Klaus precisava de álcool. Bebida de verdade. Talvez uns comprimidos, se tivesse sorte de se manter longe dali por um ou dois dias.

Era em momentos como aquele que o arrependimento queimava em seu estômago, como o resto de um drink ruim em uma festa, e Klaus se deixava embebedar pela sensação de uma vergonha que, até então, parecia eterna. Ele tragou o cigarro mais uma vez e, depois que soltou a fumaça, se levantou com o impulso dolorido de pernas que estavam cansadas de carregar o próprio peso. Então, a lembrança voltou a assombrá-lo.

A multidão de fãs. O esforço que Diego fizera para impedi-lo. A maneira como despistara os seguranças.

Ben! Ben, se lembra de mim? Ei, eu estou aqui!

A facilidade como ficaram frente a frente. A indiferença nos olhos do irmão. Precisava tentar alguma coisa. Estava pouco se fodendo para aquela babaquice de nova linha do tempo. Klaus precisava...

Eu te procurei por toda parte, você precisa me ouvir. Ben?

Precisava ser visto. Não daquela forma, como Ben o analisou meticulosamente de cima abaixo, a sombra de um sorriso maldoso retorcendo em seus lábios. Céus, quando é que ele havia se tornado tão arrogante? Klaus encarou o rosto do irmão com cuidado e continuou encarando mesmo quando dois seguranças o agarraram pelos braços, erguendo-o facilmente do chão para arrastá-lo dali. Viu quando a sua situação fez um traço de incômodo repuxar as bochechas do antigo Número Seis, mas não se convenceu por ele. Aquele Ben não parecia ser o tipo de pessoa que se sentia mal pelas pessoas. Pelo menos, não pelas pessoas certas.

Eles estão cada vez mais descontrolados hoje em dia.

E as palavras do irmão fizeram o estômago de Klaus embrulhar, mais do que as substâncias tóxicas que haviam sido despejadas em seu organismo ao longo de todos aqueles anos. Com um empurrão, ele foi colocado atrás da grade de proteção novamente, e se desligou da irritação de Diego quando o Número Dois foi ampará-lo. Klaus observou Ben se recolher para dentro do carro luxuoso que havia o levado até aquele parque, na inauguração de outra escultura em sua homenagem. E, quando o automóvel partiu, ele ainda estava olhando para ela. A figura adulta do Número Seis havia sido esculpida em mármore branco, muito diferente da peça escura e fúnebre que tinham no pátio da Academia. Diante dela, para Klaus, era como olhar para os dois lados de uma mesma moeda. De um lado, um símbolo de esperança, sucesso e vida. Benjamin Perseus, a placa pregada na estrutura registrava orgulhosamente. O herói que não tivera tempo de existir na realidade em que Klaus pertencia. Do outro, um deprimente aviso. Cuidado, ela parecia dizer. Ou acabarão como ele. Ben Hargreeves, o nome pouco se destacava na placa de bronze que costumava carregá-lo. O garoto que Klaus vira morrer tentando ser um herói.

Com Diego ao seu lado, Klaus riu para a nova escultura. Um riso dolorido, trêmulo, que não conseguia esconder o que seus olhos marejados tentavam. Teria que se acostumar com a ideia. Agora, o fantasma era ele. 

Só voltara a prestar atenção no que se passava ao seu redor quando já cambaleava pelo estacionamento de uma loja de conveniência, com uma garrafa de vodka vazia na mão e uma dor de cabeça desumana, que indicava que era hora de encher o tanque novamente.

Havia despistado Diego de alguma maneira. Ou fugido. Klaus não tinha certeza, mas isso não era um problema. Nenhum dos dois estava interessado em comentar sobre as lembranças miseráveis daquele dia. Ele se lembrava, no entanto, do barulho estrondoso das motos que o impediram de adormecer na calçada, das jaquetas e coletes de couro que carregavam o título de Mães da Agonia escrito neles e, acima de tudo, do interesse genuíno que tiveram quando Klaus começou a choramingar pelo retorno do irmão morto.

Então, houve a primeira demonstração de suas habilidades. O primeiro acordo entre eles. A primeira sessão. Duas semanas depois, Klaus já tinha um lugar para ir quando a mansão de Reginald o lembrava de como dividir o teto com outras seis pessoas e uma mulher robô se equilibrava numa linha tênue entre o reconforto e a tortura. Também era para onde ia para se esquecer de Ben. Ao receber a visita de outros espíritos e - o que ainda passava por um processo de ajustes – incorporá-los, Klaus conseguia se afastar da ausência do único fantasma que não se importara de ser assombrado ao longo de sua vida. O pagamento pelo serviço também compensava e a possibilidade de escolha em recebê-lo em dólares ou em comprimidos tornava tudo mais interessante. A obrigatoriedade de não os consumir entre seus compromissos, não. No começo, a condição estabelecida pelos motoqueiros lhe parecera estúpida, mas com o tempo, Klaus precisou adotá-la para que conseguisse expulsar idiotas como George de seu – nem tão - precioso corpo quando bem entendesse. Depois de quase dois meses, no entanto, a ideia estava começando a se tornar tão idiota quanto antes, em partes, por permitir que ele permanecesse sóbrio nas cada vez mais frequentes reuniões do Número Cinco sobre o seu inexistente progresso em encontrar uma maneira de ter suas antigas vidas de volta. 

Nos primeiros dias, a dinâmica estabelecida pelos irmãos parecia dar certo. Diego havia se juntado a Cinco em sua missão, e Vanya dividia-se para ajudar os irmãos quando não fazia companhia para Allison, que assim como Klaus, estava tendo problemas para lidar com a nova realidade em que eram obrigados a viver. De vez em quando, os dois acompanhavam Luther até o Hangar 18 – nome que Reginald revelara pertencer ao subsolo, depois de esclarecer, outra vez, que “não era usado para espionagem de forma alguma”. Lá, dispunham horas e mais horas estudando sobre a Sparrow Academy e os extraordinários feitos de John Perseus, e, apesar de nunca perguntarem, sabiam que Klaus só estava lá apenas porque ele queria assistir televisão.

Ele também assistiu as esperanças dos irmãos acabarem. Sem uma solução, foram obrigados a se encaixar em vidas nas quais não pertenciam, e Klaus não ficou surpreso quando Allison conseguiu um emprego num abrigo voluntário no centro da cidade. Ou quando Luther se convenceu de que Ben era um líder melhor do que ele jamais fora e começara a abrir a boca apenas se isso significasse enchê-la com asinhas de frango. E se os seus cálculos estivessem certos, ele sabia que aquele seria um dos dias em que o Número Um compraria uma porção delas.

Klaus prendeu o cigarro entre os lábios e usou o corpo para empurrar a porta enquanto levava as mãos até a gravata, para afrouxá-la. George podia ser uma pobre alma assassinada pelo tio e explorada pela esposa, mas suas roupas tinham sido a melhor leva que Klaus experimentara até então. Estavam um pouco desajustadas, e o tecido levemente amarrotado o deixava com uma aparência não muito distante de um professor alcoólatra, mas conseguiam ser mais confortáveis do que o vestido que usara na última semana – e que ainda fazia com que pequenos flocos de purpurina pudessem ser encontrados espalhados por seu cabelo. Klaus não gostava da aparência dele, no entanto. Gostava da maneira como estava mais curto, próximo às orelhas, mas a sensação de ter os fios cobertos pelo gel pegajoso, que roubara furtivamente do Número Cinco, o irritava. Klaus tentou bagunçá-los para se livrar do produto, e, do outro lado, a luz hospitalar que o recepcionara não foi nada gentil com os seus olhos. Ele tentou bloqueá-la com a palma da mão. Estava longe do álcool, mas a ressaca parecia nunca ter o abandonado. Arrastou-se pela recepção e ignorou quando os clientes acomodados por ela passaram a cochichar pelas suas costas.

— É melhor apagar essa coisa se não quiser levar outro esporro do Morgan — Julian, o mais velho entre os motoqueiros, disse quando Klaus se debruçou sobre o balcão. Era também o menor deles e, se a experiência do Número Quatro não falhasse com ele, o que estava mais perto da morte.

— Vocês quebraram o joelho de um cara aqui esses dias e mesmo assim querem implicar com um cigarrinho? — Klaus arrancou o cigarro da boca e se esticou numa ameaça de apagá-lo no cacto decorativo de Julian. Quando foi xingado pelo velho, que envolvia o pequeno cacto com as mãos numa tentativa de protegê-lo, deixou uma gargalhada escapar. Sim, os Mães da Agonia quebravam ossos, mas também cuidavam de suculentas e fiscalizavam o uso de nicotina de seus integrantes.

— Se quiser fumar essa merda, fume lá fora — Julian estava irritado. Seu sotaque texano deslizou pelas palavras, e ele voltou a dar atenção para o cheque que estava preenchendo antes que pudesse ver Klaus franzindo o nariz, contrariado.

A fumaça foi aspirada outra vez, e Klaus fez questão de assoprá-la propositalmente pelo caminho quando se afastou do recepcionista. Os pedidos do velho para que o Número Quatro fosse carregado direto para o inferno foram abafados pelo barulho de um quarteirão inquieto que, à beira do anoitecer, começava a despertar em meio a chegada de prostitutas e dos primeiros desentendimentos entre moradores de rua. Uma ambulância gritou pela rua, e o seu uivo descontrolado se juntou à trilha sonora desafinada, que fazia viciados se encolherem, desorientados por ela.

Encurralado em frente à vitrine, Morgan estava igualmente perdido.

E, enquanto o enchia de perguntas, Johnny também.

— Está escrito no panfleto de vocês: encontramos qualquer um — Ela apontava decididamente para o panfleto, o indicador passeando pelo slogan em negrito. — Qualquer um! Como pode dizer que não conseguem fazer nada a respeito? Aqui diz que vocês são especialistas nisso — Seus olhos correram para as letras menores abaixo do desenho em preto e branco de duas mãos abertas. Johnny virou o papel para Morgan, o aproximando de seu rosto rechonchudo para ajudá-lo a enxergar melhor.

Ele empurrou o papel e lançou um olhar constrangido por cima do ombro de Johnny, em direção ao grupo de motoqueiros que, no outro lado da rua, disfarçavam suas risadas maldosas com goles de cerveja e análises superficiais às suas motocicletas. Johnny estava longe de ser uma mulher pequena, mas mesmo estando alguns centímetros abaixo do nariz de Morgan, a ideia de ser visto sendo coagido por ela era o suficiente para fazer com que suas orelhas esquentassem debaixo da bandana preta.

— Já falei, dona — Ele cruzou os braços. — Só trabalhamos com gente. Se quer achar o seu gato, vai ter que procurar o controle de animais.

— Ele não é meu gato — Johnny corrigiu, juntando as sobrancelhas de modo afetado, certa de que se aquele desgraçado de quatro patas estivesse por perto, ele estaria tão insultado quanto ela. — Ei, espera! — Morgan se movimentou, e Johnny tentou desajeitadamente imitá-lo. — Você não me passou o endereço.

O homem bufou.

— Que merda, procure na internet! Ou precisa de ajuda com isso também?

Os pés de Johnny pararam. Morgan a encarou, desconfiado pela maneira como seu rosto esvaziou, confuso e distante, como se tivesse acabado de ouvir um problema matemático. Irritado, ele a enxotou outra vez, e seus passos rápidos não deram outra escolha a ela senão abrir caminho. Pela vitrine pichada, Johnny olhou para um ponto não muito bem definido, seu cérebro seguindo as palavras deixadas pelo homem como migalhas de pão espalhadas rumo ao passado, para as memórias anteriores à sua vida em Roswell.

E Johnny já as odiava. Havia aprendido a chamar sua prisão de lar por um motivo.   Gostava da segurança que seu ninho previsível oferecia, da maneira como suas terças moldavam-se às suas vontades e de como vivê-las a preparavam para o próximo – mesmo - dia. Ali, por outro lado, Johnny mal sabia em que lado da calçada precisava andar para não ser arrastada por pedestres mal humorados. Também não entendia de onde haviam saído tantas televisões ou quando haviam se tornado tão coloridas, mas sentia uma vontade cada vez mais frequente de vomitar nas próprias roupas toda vez que passava por uma delas na rua.

Não devia ter se separado de Lila, Johnny sabia. Havia escutado a morena chamando o seu nome, alarmada, quando tomou a decisão de seguir o gato e saiu correndo pela estação de Metrô que a maleta havia os enviado. Deixada para trás, Lila tentava lembrar Johnny, a plenos pulmões, sobre seu estado de desorientação e como isso poderia colocá-la em perigo. Mas estar em um lugar diferente - numa época e dimensão diferentes – não a assustava tanto quanto o pensamento de nunca mais ver o animal. Johnny continuou correndo, esbarrou em pessoas que, apesar de bem vestidas, andavam furiosamente pelas ruas, como se estivessem prontos para socar o rosto de alguém, e foi muito bem orientada por um sem-teto, que em troca de suas meias, a levara até o panfleto daqueles que poderiam ajudá-la na busca pelo mascote. Quando finalmente os encontrou, o sol já havia perdido sua força e o vento arranhava o rosto de Johnny com menos delicadeza do que antes.

Ela se afastou da vitrine, se perguntando por Lila. Sem sinal dela ou do gato, Johnny começava a se preocupar com a possibilidade de ficar sozinha, outra vez, em um lugar no qual não pertencia. Se sentou no banco do ponto de ônibus e observou a rua. O cheiro dela não era muito diferente do que rodeava os trailers de onde vivia; o cítrico e incomparável cheiro de urina e bebida barata. Johnny fechou os olhos e cruzou os braços, esfregando-os com as mãos. Sempre interpretara Roswell como seu inferno particular, um limbo no qual era condenada ao calor dos desertos e aos demônios disfarçados de caipiras, mas estava enganada. O purgatório era frio e tinha cara de cidade grande.

— Ele tá morto? — A pergunta assustou Johnny. Ela ergueu os olhos para encontrar a quem pertencia e, então, crispou os lábios. A cidade era diferente, mas os esquisitos, não.

— O que?

— O gato — Ele respondeu enquanto ocupava o outro lugar do banco, e Johnny piscou quando a névoa de tabaco começou a envolvê-la.

Ela prendeu um sorriso com os dentes, lembrando do animal com carinho. Então, negou com a cabeça.

— Quem dera. Ele é teimoso demais pra isso.

Um ruído desapontado foi assoprado do seu lado.

— Então não há nada que eu possa fazer — Ele apoiou o braço direito no apoio do banco e focou na ponta do cigarro, o indicador batendo levemente na ponta para se livrar das cinzas.

Johnny virou a cabeça para encará-lo e se deparou com uma figura desanimada, quase sonolenta, que saboreava a pequena haste de papel enquanto sacudia um dos pés, suas pernas cruzadas confortavelmente em compensação à postura desajeitado. No primeiro instante, a declaração do homem a deixara intrigada. Não parecia estar em condições de ajudar alguém, muito menos, negar-se a isso. Ele também olhou para ela, fungando para o papel que descansava em seu colo. Johnny enrugou a testa e, quando se deu conta, já estava com os olhos arregalados.

— Está brincando? Você é o Séance? — Ela desamassou o papel rapidamente, procurando pelo desenho parcialmente desbotado no fim da folha. Não estava impecável, mas Johnny reconhecia o esforço da tentativa.

— Eu odeio essa merda — Klaus murmurou para si mesmo. Se arrependia do dia em que o convenceram a adotar um outro nome para os negócios. Havia virado doses significativas de tequila e aceitado o sinônimo menos humilhante para gostoso que fala com os mortos que a internet o sugerira. Ao menos, se Ben estivesse por perto para impedi-lo...

— Eu posso pagar — Johnny o arrancou de suas aflições. Suas mãos vasculhavam o colete, pronta para transformar um botão em uma pepita de ouro. — Bastante — Ela estendeu a mão.

Klaus olhou para o objeto, linhas cruzando a pele de sua testa, mas sua curiosidade era pouco convincente, e Johnny voltou a guardá-lo, um tanto quanto surpresa, quando viu um sorriso maldoso surgir no rosto do rapaz para completar seu desinteresse. Estava começando a acreditar que seus truques fossem mais convincentes no Novo México e isso a preocupava. Tentou não se concentrar no pensamento, os desviando para a maneira como o cigarro era tragado mais uma vez por ele e, depois de ter sua fumaça exalada, fora apagado na superfície de concreto do banco. Um ônibus se aproximou.

— Me procure de novo caso ele seja atropelado ou engolido por alguma coisa — Klaus disse para Johnny enquanto se levantava. O veículo parou e abriu a porta. Antes de entrar, Klaus olhou por cima do ombro. — E, quando ele parar de respirar, daí sim podemos fazer negócio.  

Os olhos de Johnny o acompanharam enquanto ele cumprimentava o motorista e, com a gentileza de um trabalhador frustrado pela própria profissão, era enxotado para os fundos.

Quando Klaus se espremeu ao lado de um pequeno homem de traços árabes e uma senhora surpreendentemente alta para sua idade, ele acenou com a mão esquerda, uma tatuagem de Adeus se despedindo. Frustrada, Johnny amassou o panfleto enquanto assistia o ônibus partir. Também reprimiu um grito de raiva. Se aquele gato infeliz não tivesse tentado bancar o engraçadinho, eles estariam bem agora. Na verdade, na dolorosa recuperação pós-autodestruição dimensional, mas, ainda assim, numa situação muito mais favorável do que a que estavam agora. Ela juntou as pernas para se aquecer, o corpo se curvando ligeiramente em direção aos joelhos. Estava começando a tremer quando um motoqueiro emergiu escritório à fora, berrando para o trajeto do ônibus, com um cheque nas mãos.

— Hargreeves, você esqueceu seu pagamento! — O velho gritou como pudesse ser escutado, sacudindo o papel pelo ar. — Imbecil de merda! Hargreeves!

Johnny endireitou-se imediatamente. Seus olhos brilharam, como labaredas de uma fogueira, quando absorveu o sobrenome. Sentiu o corpo queimar, e tal sensação lhe era reconfortante, pois tornava aquele inferno um pouco mais parecido com o dela. Johnny se levantou para se aproximar do velho, que levara um pequeno susto quando notou a mulher atrás de suas costas.

— Qual o problema, cara? — Ela perguntou, esperando que o leve sorriso em seu rosto fosse, no mínimo, amigável. Estava preparada para outra abordagem caso o homem recuasse, mas, quando ele grunhiu, zangado pela sua própria frustação, Johnny quase vibrou de felicidade. Era do tipo tagarela. Johnny adorava os tagarelas.

— Me amolaram a tarde inteira por conta daquele bastardo. Morgan vai dizer que ando com a cabeça nas nuvens, mas é Klaus quem vive com a cabeça nas ervas.

Então aquele era Klaus. Klaus Hargreeves. Johnny se lembrava vagamente dele. Ou do que sua mente projetara com as informações coletadas durante as visitas desagradáveis de seus antigos parceiros nos testes de Reginald. Para ela, a Umbrella Academy não passava de um borrão oscilante em sua mente. Estava lá, Johnny sabia. Poderia apontar alguns detalhes se quisesse, detalhes não muito firmes de um garoto enviado à lua e do outro que desaparecera. Um deles tinha se ferido, não tinha? Não sabia ao certo, mas se lembrava da maneira como a notícia chegara a 1968, anunciada com fervor para ela, atrás de um sorriso assustadoramente alegre. O que agora fazia sentido, contudo, era que finalmente entendia a quem o título de "inquieto e excêntrico garoto que fala com o outro lado" pertencia. 

— Posso entregar a ele, se quiser — Johnny sugeriu, simpática.

O velho, por outro lado, hesitou. A olhou de cima abaixo, a desconfiança fazendo o bigode grisalho se mover enquanto enrugava o nariz. 

— Aqui — Ela voltou a apanhar o botão. — É a chave do meu carro. Ele está parado ali na outra rua. Se eu não cumprir minha palavra, pode ficar com ele. — Então, estendeu a mão, torcendo para que, dessa vez, aquilo funcionasse. 

Quando os olhos do homem brilharam, encantados pela figura de cavalo que acompanhava o objeto, Johnny sequer se preocupou em pedir pelo papel. O cheque fora basicamente jogado contra si mesma. Mortificado, o homem voltou para o escritório, e Johnny aproveitou o momento para analisar o endereço do remetente.

Estava na hora da Umbrella Academy receber uma visitinha. 


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Notas finais do capítulo

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