Os Humanos escrita por Camélia Bardon


Capítulo 5
Tudo o que o sol toca




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Trecho do diário de bordo do gato Hércules

Página 4. Ano de convívio: dois

 

Não me entenda mal. Eu amo os humanos. Eles me dão tudo que um felino lustroso como eu precisa. Aliás... Às vezes acho que dão até demais. É que a única coisa que não me dão mais é liberdade.

Quando eu vinha visitar o humano, eu tinha certa noção de onde eu poderia ir sem ser pego, apanhar, ou ficar sem comida. O filhote de humano morava num condomínio fechado... Era certamente uma liberdade cercada. O lugar parecia uma floresta dentro de um monte de concreto. Daí eu vim para cá. Só havia me sobrado a janela para pular. E me tiraram isso, também.

Eu não reclamo de barriga cheia. Só reclamo antes de comer, para aí não parecer tanta hipocrisia. Não entendo o sentido desse ditado... Humanos são estranhos até para fazerem ditados “metafóricos”, como diz a Branca.

Enfim. Vamos para o que interessa. Aquele filhote atrevido.

Eu e Branca concordamos que ela cuidaria da educação e eu cuidaria de suas estratégias de convívio. Um felino sempre precisa saber se defender, independentemente se vai viver trancafiado num apartamento ou em perigo na rua. Então, num desses dias, chamei-o para olhar a vista da sacada que tanto já havia pulado, um dia.

Mozart era uma criaturinha elegante de se olhar: magrelo, cinza-claro e olhos esverdeados. Ele é um pouco bobo, mas até eu nessa idade gostava só de ficar brincando e não dando paz para a humaninha. Branca tem muitos problemas de disciplina com ele, mas não é a questão da maldade felina... O safado gosta mesmo de fazer perguntas que a confundem. Daí, ela não tem opção a não ser mandá-lo para mim. A pérola de hoje me deixou instigado.

— Como fazemos para andar na cidade e não ser apotrelados? — Mozart subiu na beirada com tela da sacada, quase caindo para trás de volta. — Da última vez que a humana levou a gente na loja de banho, o Dragon disse que o amigo dele tinha sido apotrelado. Mas aí ele disse que ele era “bobo e atrapalhado”, e você me chama de bobo. Onde a gente pode andar? Porque eu não quero ser bobo e morrer apotrelado. E eu nem sei o que é isso! Mas já parece horrível. Se bem que tudo que o Dragon diz parece horrível, você já viu o tamanho daquele cachorro?

Quase ri com suas observações infantis.

— Se diz “atropelado”. E você é bobo, mas de um jeito saudável — me empertiguei, meneando a cabeça para a cidade. — Vê ali? Tudo o que o sol não toca é nosso.

Mozart achegou-se ao meu lado, munido de uma curiosidade justificável.

— E aquele lugar claro e iluminado ali?

— Fica além de nossa fronteira — respondi, em tom sério. — Jamais deve ir lá. Você pode ser apotrelado lá.

— Mas um gato não pode fazer tudo que quiser?!

Tive de empregar na risada aquele tom de sabedoria que estava começando a ficar mais frequente a cada dia. Talvez a Branca esteja me influenciando também, afinal de contas.

— Ah, filhote... Há muito mais que um gato tem que fazer além da sua vontade.

— Muito mais? — dessa vez, ele de fato rolou para trás, numa cambalhota cômica. Não se abalando, Mozart ergueu-se nas quatro patas mais uma vez, determinado. — Como o quê, por exemplo?

Saltei da beirada da sacada de volta para o chão, ao seu lado. Em seguida, caminhamos de volta para o apartamento, em silêncio. Sabia que Mozart estava mordendo a língua de vontade de dizer mais alguma coisa, no entanto me orgulho em dizer que exerço certa influência no filhote – ele me respeita. Não como figura de autoridade, mas como herói inspirador.

— Muito mais — repeti, desfilando pelo chão de madeira do apartamento. — Temos de ceder a algumas das vontades dos humanos.

— Por quê?

— Porque são eles que nos sustentam, enquanto moramos aqui. Temos de demonstrar carinho, resistir à vontade de matá-los durante o sono, entender quando estão brincando conosco e quando é ameaça... E, principalmente, não jogar para fora a areia da caixa e fazer xixi pelo apartamento.

Mozart se encolheu todo, intimidado.

— O que acontece se a gente faz xixi fora da caixa...?

— A humana tira os petiscos da gente.

— Não! — o filhote miou desesperado. — Tudo bem... E vale a pena, tudo isso?

Então, eu me lembrei de todas as vezes que a humaninha brincava comigo, antes de partir. Daquela gargalhada banguela sempre que eu caía da cama.

De quando a humana chegava cansada da rua, deitava na cama depois de colocar a comida no potinho e eu ir cumprimentá-la... Ela sempre respondia baixinho “eu também te amo, bebê”. Até me deixava dormir na cama junto com ela.

De quando o humano me esperava aparecer na janela, apesar de eu estar fazendo a vigia da humana para ele. E também de como ele me aceitou sem nem questionar. Admito que o usei um pouco no começo, mas depois que a Branca me contou que ele era muito gentil e amoroso, comecei a tratar ele como um pouco além de fonte de comida.

Após meu momento reflexivo, lambi a cabeça de Mozart algumas vezes, como sinal de carinho.

— Vale a pena, sim. Você ganha muito mais depois que perde a liberdade que acha que tem.

Mozart deu-se por satisfeito com a resposta, pois logo estava saltitando pelo apartamento de novo. Enquanto isso, a humana colocava a comida da tarde. Antes de ir comer, entretanto, parei aos pés dela como quem não quer nada.

Oi, bebê! — ela abaixou para me acariciar, gesto que aprovei. — O que foi?

Aproximei minha cabeça à bochecha dela, batendo de leve. Ela não podia ter ficado mais surpresa.

Ah, eu também te amo — a frase que eu amava surgiu naturalmente. — Vai comer, vai.

Como o gato voluntariamente domesticado que era, fui.

Entretanto, como velhos hábitos nunca morrem, comi do pote da Branca.

Não aprende mesmo, não é? — o humano censurou de brincadeira, parado no batente da porta.

Eu amo mesmo os meus humanos.


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Notas finais do capítulo

Olá ♥ chegamos, enfim, ao último capítulo. Me resguardei das notas iniciais para fazer surpresa e porque não havia mais nenhuma palavra para usar xD

O que acharam desse ritual de início para o Mozart? Acham que ele vai se rebelar contra o pai e seguir carreira musical também? Aprovaram a referência? Me contem tudo!
Mais uma vez, muito obrigada por todo o carinho até aqui ♥ foi um prazer interagir com vocês de novo, espero que tenham gostado do spin-off! A gente se vê numa próxima?



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