Sinais escrita por Sirena


Capítulo 37
Surpresas e Gatos


Notas iniciais do capítulo

Obrigada heywtl, fran_silva, Minnie, Joshua de Vine e Isah Doll pelos comentários ♥



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Mathias

Após três dias de suspensão, fiquei mais dois dias em casa, com medo de ir para escola. Eric veio ficar comigo, disse que não estava no clima de volta às aulas ainda.

— Faltar à primeira semana de aulas nunca matou ninguém. – ele disse, mexendo no celular, jogado na minha cama.

Revirei os olhos me sentando no chão e pegando meu celular para ver as horas. Sete da noite.

— Então... – Eric ergueu os olhos do aparelho e se sentou na beira da cama. — Eu soube que a Cássia não levou suspensão por cortar seu cabelo.

— É, Samantha me contou. – murmurei, desconfiado por ele estar puxando esse assunto do nada. — Eu não devia ter pulado nela.

— É, bater em mulheres é bem errado, mas acho que no contexto de humilhações diárias e ela cortando seu cabelo, é perdoável. Mas, enfim... É... – ele pareceu hesitar. — Quando cê vai parar de orgulho e pedir transferência?

— Não vou pedir transferência. – murmurei. — Ainda tenho oitenta por cento do desconto até o final do ano. Os materiais foram caros de comprar e...

— E você teve que comprar metade de novo porque fizeram o favor de estragarem os seus. – ele concluiu cerrando os olhos e vindo sentar ao meu lado no chão. — Qual é? Sai. O que tá te prendendo lá afinal? Até tua mãe ficou puta por te darem suspensão e não suspenderem a riquinha mimada.

Cutuquei minhas unhas, sem saber o que responder, tentando pensar numa mudança de assunto.

— Mathias, é sério. O que você quer lá? Sua mãe não acha que você devia continuar, ninguém acha. Então...

— É uma boa escola. Os professores são bons, o ensino é bom e isso é bom. Eu não vou desistir de lá, vou esfregar na cara de todo mundo quando me formar lá.

— Na cara de quem? – ele bufou. — As pessoas que te querem bem, te querem longe de lá, Mathias. Quem cê quer impressionar?

Virei à cara, refletindo sobre a pergunta um instante.

Era tão difícil ficar lá dentro, pensei. As provas eram difíceis, os trabalhos escolares eram complexos, as lições de casa tinham apenas questões de vestibular e eram bem chatas. E ainda tinha os professores e os alunos e todo mundo que agia e me olhavam e me lembrava que ali não era meu lugar...

— Mathias?

Respirei fundo, ajeitando meu cabelo. — Sabe o que meus avós fizeram quando minha mãe contou que estava grávida?

— O que?

— Jogaram ela na rua. – dei de ombros e abaixei os olhos. — E fizeram questão de falar sobre como eu seria um vagabundo igual meu pai era. Ele devia ser mesmo já que sumiu quando ela disse tá grávida. Minha mãe morou de favor na casa de uma amiga por um tempo, arranjou trabalho de diarista, mas não tinha com quem me deixar então me levava com ela. Ela tinha quinze anos, entrou em trabalho de parto enquanto largava do trabalho, trabalhou até o ultimo minuto e assim que levou alta do hospital voltou ao trabalho, mesmo com dor. Me levava com ela. Eu era bonzinho, obediente, não dava trabalho.

— Você era uma criança ansiosa que fazia tudo que mandavam porque tinha medo de se expressar, na real. Li isso num post de Facebook e achei sua cara.

— Dá no mesmo.  – dei de ombros. — Aí, eu entrei na escola, as professoras elogiavam. Cada dez era uma prova de que meus avós tavam errados... De que ela tava fazendo algo certo, sem ajuda dos pais idiotas ou de um filho da puta idiota que pegou uma menor de idade porque as mulheres da idade dele eram inteligentes demais pra serem manipuladas por ele. Eram uma prova que eu não ia acabar vagabundeando por aí igual ele fazia. Minha mãe se matou de trabalhar pra conseguir me matricular naquela escola, quando me ofereceram aquela bolsa, a gente tava devendo tantos lugares que ela tava quase pedindo dinheiro pra agiota. Eu consegui uma bolsa de estudos num colégio que nem bolsa dava... Ela foi pagando o que devia... Ela conseguiu comprar esse cantinho, não é grande, mas é dela. Eu tô numa escola boa e fiz por merecer isso... E eu vou me formar nessa escola boa e conseguir me formar numa faculdade boa e fazer todas aquelas coisas, pós, mestrado, doutorado... Arranjar um emprego legal, uma casa melhor pra ela... Vou me matar de trabalhar se precisar, mas aqueles velhos idiotas vão engolir tudo que disseram pra ela. – escondi o rosto nos joelhos quando acabei de falar, meus olhos ardendo, marejados.

Eric passou um braço em volta dos meus ombros e ficou em silêncio, esperando.

Solucei.

— Você poderia descobrir a cura do câncer que eles não mudariam de ideia, Mathias. Você sabe disso, né? Eles colocaram uma garota de quinze anos, grávida, na rua e nunca vieram atrás. Eles não tão nem aí. Não tavam na época, não tão agora e não vão tá nunca. Não pode passar sua vida tentando impressionar alguém que não se importa contigo.

— Não quero impressionar eles. – murmurei. — Quero que eles ardam no quinto dos infernos. Quero impressionar ela, mostrar que valeu... Que eu vali esse esforço todo.

— Eu tenho certeza que sua mãe sabe que você vale esse esforço. – ele sussurrou enquanto eu levantava o rosto. — Até ela quer que você mude de escola, cara! Não tem razão pra você ficar lá. A sua saúde mental vale muito mais do que isso.

Limpei o rosto, tentando afastar as lágrimas e funguei. — Mas...

— Não, sem isso. – Eric me interrompeu, parecendo irritado.  — Cara, por favor! Eu... – ele mordeu os lábios e respirou fundo antes de continuar. — A galera de lá te faz passar por um inferno e ainda falta um ano inteiro pra você acabar a escola e tudo só tá piorando... Eu gosto tanto de te ver durante as férias. Cê vira outra pessoa, fica todo alegre e sorridente e... Eu prefiro te ver assim e... Eu ainda tô tendo dificuldade pra lidar com a morte do Diego. Não quero acordar um dia e receber a noticia que meu melhor amigo se suicidou porque um bando de lixo foderam toda cabeça dele.

Fechei os olhos.

— Por favor.

— Você tinha que jogar essa carta? – resmunguei.

— Mathias, pelo amor de Deus! – Eric se levantou e começou a andar de um lado para o outro do quarto, gesticulando exageradamente. — Olha bem pra você. Você parece um defunto em período letivo, lida com uma humilhação psicológica que só piora... É totalmente razoável eu pensar isso!  E eu tenho medo! E eu não tenho problema em dizer isso! Você sabe que é importante pra porra pra mim e se algo te acontecer... Cara... Eu nem sei o que faria. Por favor, larga desse orgulho e muda de escola!

Esfreguei meus olhos e funguei de novo.

Eric estava com o rosto vermelho e ares nervosos, me olhando com olhos baixos e lábios comprimidos, como se implorasse.

Escondi o rosto de novo, pensando um longo instante em tudo que ele disse e respirei fundo, meu estômago revirando enquanto refletia.

Estava ficando pior e, mesmo que eu estivesse começando a ter coragem de retalhar... De que adiantava se o único que seria punido seria eu? Eu acabaria sendo expulso por socar o próximo que tentasse me chutar, ou por responder a próxima que tentasse me humilhar. E uma expulsão seria um golpe forte demais. Aquelas pessoas não valiam minha expulsão.

E realmente, se todas as pessoas que me amam e que eu amo queriam tanto que eu mudasse de escola... Talvez elas estivessem certas? E, se o meu maior motivo para insistir em ficar lá, era impressionar duas pessoas que eu nunca nem vi, que só sabia como eram graça a amiga da minha mãe que sempre me contou tudo que meus avós falavam, bom... Talvez eu estivesse insistindo pelos motivos errados.

Suspirei pegando meu celular. Funguei outra vez.

 [Mathias]
Mãe?
Vou pedir transferência d escola
Eric fez chantagem emocional pra me convencer

 

[Mãe]
Deus abençoe o Eric

 

Revirei os olhos colocando o celular de lado. Eric ainda me observava.

— Tá bom, você venceu! – bufei, exasperado.

— Ai, finalmente! – ele gritou praticamente pulando em cima de mim e me abraçando com força. Contive o riso enquanto retribuía o abraço. — Eu te ajudo a pedir a transferência, a gente tem que fazer isso logo antes que você mude de ideia!

— É uma boa.

***

 

[Mathias]
Eu
Estou
Surtando

 

Foram com essas mensagens que eu acordei o meu namorado às oito da manhã de um sábado, após ter meu pedido de transferência de escola aceito. Minha estava no trabalho e Eric já tinha voltado para casa há uns dois dias porque já “se sentia no clima de volta as aulas.”

Fiquei andando de um lado para o outro da cozinha de casa enquanto esperava Ícaro responder.

 

[Ícaro]
Bom dia vida
Por que???

 

[Mathias]
Pq eu pedi transferência de um dos melhores colégios da cidade
Pra estudar num colégio do bairro q nem é lá muito bom
E talveez eu tenha cometido um erro
E eu so começo a estudar daqui duas semanas
E eu tenho medo de ta perdendo materia
Ou de n conseguir acompanhar
Ou de tarem vendo uma materia q eu vi tipo dois anos atrás pq se for,é  prova de que eu cometi um erro muito grande
E eu to sozinho em casa
E eu n sei o que fazer
Antigamente quando eu ficava sozinho ficava vendo tutoriais de maquiagem
Mas agr eu sou praticamente um maquiador profissional pq eu já sei tudo q precisava saber
E n tem nada para eu passar o tempo
E eu acho que to tendo uma crise ansiedade pq eu n paro de suar e meu coração tá mega acelerado e aqui ta muito quente e eu n me sinto bem
Socorro

 

Ícaro demorou a responder. O que não ajudou muito meu surto. Ele também devia tá pensando que eu cometi um erro terrível. Ai, o que foi que eu fiz?

 

[Ícaro]
Mesmo se conteúdo for anos atrás, vai tudo bem
Já disse, nada impede vc de aprender sozinho
Ou com curso vestibular
Tudo bem, tudo bem
Respira devagar
N teve erro nenhum tá?
Vc fez certo
Sua saúde vale mais que diploma com nome de colégio bom
Vai tudo certo, ok?
Calminha calminha

 

[Mathias]
Eu to com tanto medo
Nem sei do que
Mas to
N sei lidar com isso
To assustado
N quero ficar sozinho

 

 [Ícaro]
Lembra eu disse sobre vc adotar bichinho?

 

[Mathias]
Lembro

 

[Ícaro]
Quer ir comigo numa ONG e adotar um?

 

Franzi os lábios, pensando.

 

[Mathias]
Quero

***

 “Oi.” – Ícaro sorriu para mim enquanto saía de casa. – “Como você tá?”

“Vamos logo.” – pedi desviando o olhar, mas ele ignorou.

Suas mãos passaram pelo meu rosto, me puxando devagar para perto enquanto se encostava no portão. Suspirei encostando minha testa na sua e apoiando minhas mãos na sua cintura enquanto ele fazia carinho no meu rosto.

Ícaro deixou beijinhos no canto dos meus lábios antes de se afastar um pouco.

“Vamos?” – perguntou, me olhando de um modo doce.

Concordei deixando-o segurar minha mão e me encostei nele enquanto andávamos. Desde que eu tinha dito preferir carinhos a conversas quando estava mal, Ícaro vinha parecendo se esforçar para focar mais nisso e deixar a conversa para depois. E eu gostava disso. Era legal que ele... Bom, não me ouvisse exatamente, mas prestasse atenção no que eu falava. Era bom.

Pegamos dois ônibus e ainda andamos uma boa parte do caminho até chegar a ONG que ele se referia. Foi um caminho silencioso, sem conversas, no máximo alguns carinhos quando ele se encostava em mim, fechando os olhos e dormindo no meu ombro. Ícaro parecia estar tão cansado...

“Desculpa ter te mandado mensagem cedo num sábado.” – falei enquanto andávamos pela rua.

Ele franziu a testa e chutou uma pedrinha no caminho fazendo careta. Mordi os lábios, ansioso por uma resposta.

“Amor?”

“Tudo bem, eu não dormi direito. Esqueci de tomar o remédio de dormir.” – ele fez careta. – “Meus pais brigaram comigo por isso. Já tava acordado quando você me mandou mensagem.”

“Ok.” – estalei a língua.

Ícaro parou de andar respirando fundo. Parei de frente para ele.

“Tô orgulhoso de você.”

“Por quê?” — uni as sobrancelhas, confuso.

“Por ter pedido pra mudar de escola. Você fez bem. Mesmo sendo um bom colégio, não significava que continuar lá era o melhor pra você. Sei que foi difícil pra você fazer isso. Fico orgulhoso que tenha se colocado em primeiro lugar e feito isso.”

Corei. – “Não sei se foi o certo.”

Ele pareceu hesitar antes de sorrir. – “Nunca sabemos se o que estamos fazendo é certo ou não. Isso o tempo que diz. Mas, você tomou uma decisão difícil, merece parabéns por isso. Sei que agora você tá nervoso e confuso, então... Vamos olhar os animais, você escolhe um e aí se você quiser, vamos os dois pra sua casa, ou eu vou pra minha. Você aproveitar que vai mudar de escola pra procurar um tratamento psicológico mais barato. Se quiser eu peço pro Tales indicar algum e te passo. Independente se o que você fez foi certo ou não, agora tem que aproveitar as boas possibilidades que isso te traz.”

Concordei novamente, sem saber o que dizer.

“Agora vem cá.”

Sorri indo para perto e Ícaro me prendeu num abraço forte, os braços em volta dos meus ombros, deixava beijos afetuosos no meu pescoço, suas mãos fazendo carinho nas minhas costas. Retribui o abraço escondendo o rosto em seu ombro. O abraço dele era tão bom... Respirei fundo tentando lutar contra a vontade de cair no choro, era tão confortável e seguro nos braços do Ícaro, eu poderia desabar ali naquele momento simplesmente por estar perto dele me permitir isso. Mas, eu não queria cair no choro, no meio da rua. Desmanchei o abraço, respirando fundo e segurando suas mãos entre as minhas. Ícaro beijou meus dedos sem tirar os olhos dos meus.

“Tá tudo bem.” – garantiu, sinalizando com a mão sob a minha. – “Vamos, ok?”

“Ok.”

Ele se virou e só quando tocou a campainha percebi que já tínhamos chegado na tal ONG. Peguei meu celular para olhar a hora e vi que já eram quase quatro da tarde.

O lugar era como um pequeno sítio, com área grande onde se viam alguns voluntários brincando com cachorros. A que abriu o portão para gente sorriu, guiando-nos até as salas em que ficavam os animais.

— Essa é a porta do canil, essa é o gatil, e esse aqui é o nosso berçário. Imagino que você queira dar olhar os animais filhotes, certo? – perguntou, colocando uma mecha do cabelo comprido para trás da orelha, piscando os olhos verdes. — Eu sou nova aqui, não sei muito bem Libras, preferem que eu chame um dos voluntários mais antigos? Eles entendem melhor que eu.

Traduzi a pergunta para o Ícaro porque se alguém tinha que decidir isso era ele.

Ele deu de ombros e passou a mão pelos cabelos roxos, olhando ao redor nervosamente.

“Acho que pode ser bom... Eu não conheço as políticas de adoção, a Alexia que cuidou disso. Você tem que prestar atenção no que dizem, não pode se distrair pensando em como traduzir.”

Concordei e falei para garota chamar outra pessoa, ela sorriu solicita concordando e saiu.

Infelizmente, o inferno estava claramente libertando seus demônios hoje, porque, para minha surpresa o voluntário que veio era conhecido meu. Demorei alguns instantes para reconhecê-lo. Os cabelos antes fartos, agora estavam num corte estilo militar, parecia mais pálido, olheiras escuras sob os olhos que seguiam tão azuis quanto eu lembrava e os braços... Nossa! Ele provavelmente começou a fazer academia a julgar por como os braços e o peitoral se destacavam na camisa de manga curta que usava. Sério, lindos braços. Eu realmente não queria ter admirado os braços dele, mas foi meio inevitável.

Ai, que inferno!

Alex uniu as sobrancelhas, parecendo momentaneamente confuso enquanto eu ainda gastava meu tempo xingando o mundo mentalmente.

— Ei, cara, há quanto tempo! – ele riu, piscando para mim. — Bom te ver! Tá bonito...

— Oi, Alex. – murmurei, amaldiçoando o sangue nas minhas bochechas por ter me deixado vermelho, enquanto ajeitava meu cabelo atrás da orelha. Eu definitivamente não deveria ficar vermelho quando meu ex-namorado aparece do nada e me diz que eu tô bonito. Mais ainda, não deveria ficar vermelho quando ele diz que eu tô bonito, na frente do meu atual.

Universo, você me odeia? - pensei, sentindo meu rosto quente.

“Vocês se conhecem?” – Ícaro me lançou um olhar desconfiado, antes de dirigir um sorriso para o Alex.

Por favor, não, Alexandro, pelo amor de Deus...

“Oi, Ícaro! Faz tempo que você não aparece!” – maravilha, o filho da puta sabe Libras. – “Eu conheço esse cara porque ele é meu ex-namorado.”

É oficial, eu vou gastar meu réu primário agora.

Ícaro inclinou a cabeça, abrindo um sorriso amarelo, os olhos indo de mim para o Alex com uma calmaria que eu sabia reconhecer como falsa.

“Entendi.”

— A Lorena disse que vocês vieram ver os animais. – Alex declarou passando para um tom mais profissional, fazendo os sinais com certa desenvoltura, como se fosse natural falar em português e em Libras ao mesmo tempo, como se fosse à coisa mais fácil do mundo. Senti certa inveja, admito, apesar de já estar conseguindo fazer isso, eu ainda tinha certa dificuldade às vezes. — Filhotes, gatos, cachorros? Alguma preferência? Ou quer dar uma olhada geral?

— Hã... Gatos tá bom, acho, não sei se prefiro adultos ou filhotes, então... É...

— Indeciso? Beleza! Vamos dar uma olhada no gatil então. – ele deu risada. Do meu lado Ícaro cruzou os braços e revirou os olhos. — Tudo bem, Ícaro?

“Tudo sim. A...” – ele fez um sinal que eu não reconheci. – “Ainda tá aqui?”

“Tá sim.”

Ícaro abriu um sorriso e se virou para mim. – “Você vai adorar conhecer ela, amor. É uma gata linda.”

— Amor? – Alex arqueou a sobrancelha. — Ah, caralho... Desculpa.

— De boa. – murmurei, forçando um sorriso.

— Desculpa, mesmo. – ele começou a fazer sinais enquanto falava. — Eu não raciocinei que vocês estavam juntos. Sei lá, eu não vi aliança e eu também não sabia que o Ícaro... Enfim, desculpa.

“Só vamos ver os animais logo, ok?” – Ícaro bufou, revirando os olhos outra vez.

— É, tá... Vamos. – Alex abriu um sorriso nervoso enquanto abria a porta do gatil.

Ícaro puxou minha mão e entrelaçou os dedos nos meus. Tive a impressão que ele tinha a intenção de deixar as coisas bem claras com isso.

No gatil, tinham gatos de todos os tamanhos, pequenos, grandes, magros e gordos, peludos e com pelos curtos. Alguns brincavam, outros dormiam sobre as mais diversas superfícies, uns estavam simplesmente parados e outros comiam ou se lambiam.

— A gente tem regras bem claras para adoção de felinos. – Alex começou cruzando os braços. — Os adotantes só podem levá-los para casa após seguir certas instruções de segurança. Todos são pegos da rua. São vacinados e castrados antes da doação.  Obviamente, você precisa ter potes de ração, água e caixa de areia para os animais, isso é o básico, mas, também precisa ter todas as janelas teladas para que o gato não tenha como fugir, e tem de ser fixas, nada de telas móveis. Elas têm que ser específicas para gatos, o que significa que a trama tem de ser de cinco centímetros. Também é preciso assinar um termo de responsabilidade. Mantemos contato com os adotantes pelo menos pela primeira semana para acompanhar a adaptação do animal. Como você mora em uma casa, precisa que os muros sejam altos. Também analisamos o tempo que o animal ficará sozinho durante o dia, se há a presença de outros animais na casa, crianças, etc. Cada gatinho tem um temperamento diferente, então tentamos adaptar as necessidades do dono a do animal. Além disso, obviamente você tem que ter renda suficiente para manter o bichinho.

— Você não é só voluntário aqui, né? – adivinhei arqueando a sobrancelha.

— A ONG é da minha madrinha. –deu de ombros. — Eu trabalho aqui tem uns meses, comecei um pouco antes de voltar com o tratamento.

— Você voltou? – franzi a testa, surpreso e sorri. — Isso é bom.

— Aham, já tô indetectável de novo. No começo eu ficava só com os filhotes porque tinha menos chance de eles me arranharem e eu acabar pingando sangue em alguma coisa.

— As chances de infecção por contato de sangue são bem baixas. – murmurei.

— É, mas eu prefiro não arriscar. – Alex deu de ombros outra vez. — Quando fiquei indetectável comecei a ajudar nas outras alas também. Têm dias que dou banho nos animais, dias que ajudo com resgate, dias que fico brincando com os cães e dias que fico aqui com os gatos, também ajudo a instruir os voluntários novos, faço levantamento do que precisa ser comprado, enfim... Um pouco de tudo. Depois da escola eu venho direto pra cá e fico até de noite. Nos fins de semana passo o dia inteiro aqui.

— Legal.

— É.

Ícaro beliscou minha mão com a unha, o olhei assustado, tentando disfarçar que tinha doído. Ele não se importou com minha expressão, me puxando pelo gatil. Olhei sobre o ombro, Alex ficou na porta do gatil, sentou-se no chão e começou a brincar com um dos gatos que chegou perto dele.

Ele parecia tão relaxado... Quando nos conhecemos, ele tinha acabado de descobrir ter HIV, estava na mais completa negação, na época, os pais não sabiam da sexualidade dele e ele também escondeu os remédios e exames. Lembro de mais de uma vez ele de repente ter caído no choro por não aguentar manter tudo isso em segredo. Agora ele parecia mais pálido claro, mas também parecia mais mentalmente estável, como se estivesse conseguindo aceitar tudo com mais facilidade... Dei um sorriso. Isso era muito bom.

Ícaro me beliscou de novo, me lançando um olhar irritado.

“A gente veio aqui para adotar um gato, não para você ficar olhando pro seu ex.” – ele revirou os olhos e fechou a cara enquanto falava.

“Eu não tinha como saber que ele trabalhava aqui.” – evidenciei, assustado.

“Verdade. Eu também não sabia que ele era seu ex. Mas, você também não tinha que ficar olhando pra ele agora, não é? Ou ficar conversando só em português, sem traduzirem nada, ignorando completamente a presença do seu namorado, né?”

Percebi que Ícaro estava tentando fazer os sinais discretamente, provavelmente por receio de que o Alex visse e entendesse o que ele estava falando. Respirei fundo.

Ícaro ciumento era sinceramente uma novidade.

“Desculpa. Ele só tava me falando as exigências de adoção e contou sobre como começou a trabalhar aqui, nada de mais.”

“Você ficou todo vermelho quando ele apareceu. E começou a mexer no cabelo.” — cerrou os olhos e fez uma imitação pouco convincente de como eu teria ficado. – “E ficou olhando pra ele como se eu nem estivesse, só faltou babar.”

Ele cruzou os braços, fazendo bico e revirou os olhos outra vez.

Suspirei olhando em volta, incerto quanto ao que fazer. Vi que apesar de estar brincando com um dos gatos, Alex dirigia um olhar ou outro na nossa direção.

Puxei o rosto do Ícaro, o beijando com um pouco mais de força e um pouco menos de delicadeza do que normalmente beijaria em um lugar mais público. Ele descruzou os braços, puxando meu cabelo e mordendo meus lábios com certa força durante o beijo, quase como se retribuísse com raiva. Meu coração acelerou enquanto retribuía, era bom de um jeito estranho e excitante demais.

Me afastei devagar, deixando alguns selinhos em seus lábios e olhando-o da forma mais manhosa que consegui.

“Desculpa. Sei que não devia te deixar de lado, só fiquei surpreso e acabei ficando perdido.”

Ícaro desviou o olhar um instante e esfregou os olhos.

“A gente fala disso depois. Viemos ver um gato pra você adotar.”

“Ok.”

Os gatos eram fofos, mas a maioria não parecia estar nem aí para mim. Brinquei com alguns filhotes por um tempinho, mas, por mais lindos e fofos que fossem, não me deu aquele negócio de “preciso levar você pra casa de qualquer jeito” só um simples “ah, que lindo, eu gostaria de levar pra casa.” Não forte suficiente, entende?.

“Tem essa aqui.” – Ícaro apontou para uma caixa de transporte aberta no fundo do gatil. – “Ela não gosta de sair.”

Fui para perto dele e sentei em frente à caixa.

Uma gata quase adulta piscou para mim de dentro dela, era gordinha, com pelos longos brancos com manchas pretas e olhos de um azul-claro, ela tinha apenas uma orelha.

“Nome dela é C-A-C-A-U.” – Ícaro soletrou. – “Sinal esse...” – o sinal era grande, pensei.

“Ela é linda.” – sorri antes de começar a mexer os dedos tentando chamá-la para fora da caixa.

Cacau se espreguiçou se levantando e saindo dali de dentro, mas não veio para perto de mim, ao invés disso, se esfregou no joelho do Ícaro, miando como se ele fosse um amigo que ela não via há muito tempo.

“Oi.” – ele sorriu para ela esticando a mão em seguida para lhe fazer carinho, mas a gatinha se afastou cheirando de forma curiosa e então se afastou dele, miando. – “Acho que é por causa da Baunilha. Cacau é ciumenta.” – ele explicou fazendo careta.

“Não é a única ciumenta aqui.” – observei e ele fez um gesto de descaso com a mão.

Cacau sentou na minha frente, me olhando com seriedade. Ela era muito bonita e andava de um jeito estranho, com a cabeça um pouco inclinada como se um lado pesasse mais do que o outro. Provavelmente pesava, pensei.

“Oi.” – cumprimentei-a e ela piscou os olhos devagar, antes de abaixar a cabeça lentamente, sem tirar os olhos de mim, como se pedindo carinho.

Dei um meio sorriso esticando a mão. Deixei que ela me cheirasse primeiro, seu focinho fez cócegas no meu dedo um instante, antes que ela abaixasse mais a cabeça. Sorri começando a fazer cafuné em sua cabeça.

Cacau parecia meio desconfiada e manteve os olhos abertos, mas logo começou a ronronar então acho que gostou de receber carinho. Ela chegou mais perto, se encostando no meu joelho. Instantes depois, colocou as patinhas dianteiras sobre a minha perna ainda ronronando e miou irritada quando parei de fazer carinho.

Sorri puxando-a para o meu colo. Ícaro arregalou os olhos do meu lado e levantou as mãos como se fosse falar algo, mas desistiu quando Cacau se ajeitou, encostando a cabeça na minha barriga e ronronando de forma manhosa enquanto eu voltava a lhe fazer carinho.

Olhando para ela, eu tinha a estranha certeza de que não conseguiria ir embora sem saber que poderia levá-la comigo.

***

A papelada era realmente longa, li tudo duas vezes e mandei mensagem para minha mãe confirmando se tudo bem eu assinar. Felizmente ela deixou.

Infelizmente, eu só poderia levar Cacau para casa depois de minha casa estar toda adaptada, explicaram que enviariam alguém para confirmar estar tudo nos conformes antes de me deixarem buscá-la. Negócio ali era realmente sério.

Ícaro cruzou os braços enquanto saíamos da ONG, num sinal de que não queria conversar, parecia pensativo.

Eu acho que devia ficar preocupado com isso, mas só conseguia pensar em tudo que queria comprar para Cacau. Aqueles bebedouros que imitavam água corrente, um arranhador, uma varinha, várias bolinhas, uma caminha bem bonita, uma coleira azul que ia combinar com os olhos dela, um ratinho de brinquedo...

Fiz uma lista enorme na minha cabeça enquanto caminhávamos até o ponto de ônibus e esperávamos. Imaginei Cacau dormindo comigo e como seria legal chegar da escola e ter alguém com quem passar o tempo. Apesar do que a ONG disse sobre entregarem ela vacinada, decidi que a levaria no veterinário assim que a pegasse para fazer um checape.

O ônibus estava praticamente vazio, então Ícaro e eu sentamos lado a lado. Belisquei sua mão, me obrigando a afastar a Cacau dos meus pensamentos.

Ele me olhou com uma expressão de cansaço no rosto.

“Tudo bem?” – perguntei hesitante e ele apenas assentiu sem dizer nada, já desviando o olhar, belisquei sua mão outra vez. – “Desculpa.”

Ícaro balançou a cabeça, dando um sorrisinho como se eu tivesse acabado de dizer algo engraçado.

“Pelo quê?”

Hesitei, escolhendo bem minhas palavras um instante.—"Não quis te deixar com ciúmes, desculpa. Eu fiquei sem jeito quando o A-L-E-X apareceu e não devia ficar encarando. Também não devia parar de traduzir as coisas, especialmente porque a garota chamou ele justamente pra traduzir tudo pra você. Não devia ficar constrangido assim e nem te deixar de lado por causa de um ex. Desculpa."

Ele cerrou os lábios e encolheu os ombros balançando os pés. Olhou em volta um instante antes de respirar fundo. Acho que o bom de poucas pessoas saberem Libras, é que dava para ter essas conversas num ônibus sem ficar constrangido ou receoso que alguém estivesse prestando atenção.

"Um instante. Ok?"

"Ok." - forcei um sorriso e encostei a cabeça no banco, esperando.

Às vezes, ele só precisava de uns momentos. É difícil conversar de cabeça quente, é complicado resolver as coisas quando suas emoções ainda estão intensas demais para pensar direito. Então, às vezes, dávamos esses instantes para respirar fundo e organizar os pensamentos antes de começar o assunto sério, porque, às vezes, mais do que conversar, só precisávamos sentir o que estávamos sentindo um pouco.

Acho que isso funcionava bem com o Ícaro. Ele lidava com seus sentimentos de forma intensa e impulsiva demais. Um instante para respirar ajudava-o a não ser tão impulsivo.

"Eu não quis parecer ciumento." - falou por fim. - "Você ficou mexendo no cabelo todo constrangido igual fica quando eu falo alguma coisa pra te provocar. E eu não sei o que vocês falaram, entende? Isso junta tudo e eu só...” – ele abriu e fechou as mãos, franzindo o queixo numa expressão irritada.

"Desculpa. Eu só fiquei surpreso. Não esperava ver ele de novo."

Ícaro me olhou de canto antes de dar um sorrisinho.

"Ele é bonito."

"Você é bem mais." - pisquei.

Ele fez um beicinho de deboche antes de ficar sério novamente.

“Eu não gosto de parecer ciumento. Desculpa se exagerei. Tipo... É normal achar outras pessoas bonitas e ficar olhando, eu não ligo. O problema é que era alguém que você namorou e que era alguém que devia traduzir o que tava sendo dito, mas não traduziu. E você também não se importou com isso. E você ficou encarando e eu só... Desculpa. Não quero exagerar.” – balançou a cabeça escondendo o rosto no meu ombro em seguida.

Apertei seu joelho e o senti suspirar se afastando.

“Não tem que me pedir desculpas. Não acho que você exagerou ou fez algo errado.” - e também, sejamos sinceros, considerando como Ícaro normalmente reagia aos seus momentos de nervoso no passado, ele reagiu de forma muito positiva e controlada dessa vez.

Ícaro mordeu a bochecha.

“Fiz sim.” – ele abaixou o rosto um instante antes de continuar. – “Eu... Você não estava muito bem hoje, eu não devia agir desse jeito quando você tá num dia ruim e precisa de carinho. Desculpa. O Tales fica dizendo que eu tenho que prestar mais atenção no que tô sentindo e no por que, aí eu presto e acabo... Não sei. É mais difícil guardar as coisas e controlar as prioridades quando eu tenho que prestar atenção no que tô sentindo. Desculpa.”

“Você não tem que me pedir desculpas por isso. Não tem que esconder o que tá sentindo, Ícaro.” - suspirei.

“Se você não tá bem, e eu tô...”

“E de repente você também não se sente tão bem, você pode demonstrar.” – interrompi. – “A gente dá um jeito de equilibrar e ajudar um ao outro ao mesmo tempo. Eu te apoio e você me apoia e nós daremos um jeito. Se eu faço algo que te incomoda, você pode me falar, sabe disso. De verdade, você não me deve desculpas.”

Ícaro deu um sorrisinho e deitou o rosto no meu ombro, parecendo um pouco mais relaxado. Suspirei, aliviado por isso. A última coisa que queria hoje era meu namorado chateado. Ainda assim, sabia que ele ainda estava chateado e continuaria por mais um tempo, mas também sabia que isso não significava que tinha algo errado. Como eu disse, às vezes, mesmo depois de já estar tudo bem, a gente só precisa sentir o que está sentindo. Resolver as coisas não necessariamente faz os sentimentos sumirem sempre, dependendo do sentimento, então... Sabia que ele ia precisar de um tempo para lidar com suas emoções. Era o que intensidade e ansiedade causavam nele acho...

Eu realmente, pensei, repassando o dia inteiro na mente, realmente precisava de terapia. Foi estranho admitir isso mesmo que só mentalmente, mas acho que depois de finalmente pedir transferência do colégio, isso não devia me surpreender. Depois que você dá um passo, os próximos são um pouco mais fáceis.

Franzi os lábios lembrando algo que Alex tinha dito hoje. Belisquei a perna do Ícaro atraindo sua atenção de novo.

“Porque a gente não usa aliança mesmo?”

“Você quer usar aliança agora?” – ele arqueou a sobrancelha.

“Não sei. Nunca pensei nisso.”

“Se você quiser usar aliança, a gente compra. Mas, eu, por mim, só uso quando formos casar.”

Meu Deus!

“Vou me lembrar disso.”

“Mas, eu escolho a aliança. Você parece que iria escolher alguma com pedra enorme e super grossa e eu gosto de coisas mais finas.”

“Ok.” – dei risada. – “Então eu faço o pedido e você escolhe o anel?”

“Isso.”

“Tá bom.”

Será que essa conversa contava como um pedido? Quase ri desse pensamento.


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