Voe X Livre X Coração X Selvagem escrita por Afrodeus da dança


Capítulo 4
Confronto X De X Sonhos




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Arthur e Gisele levam Muriel. Eles são discípulos de Chezan, que por sua vez é discípulo de Nero. Muriel acabou marcando o nome de Chezan apenas como “Careca”, e ri ao notar isso. Ela anda em passos largos ao lado dos dois e repara o quão rígidos são os passos do tal de Arthur. Já Gisele anda de forma mais graciosa e leve. Muriel olha para si mesma em um prédio espelhado e para para analisar seu reflexo: seu cabelo trançado preso em um coque, as mãos no bolso, ombros caídos e sorriso travesso. Ela mostra a língua para si mesma e volta a andar.

Conforme eles rumam ao local que Nero e os demais estão, Muriel reflete novamente sobre as coisas que a motivam.

“Não quero nada épico demais”, ela afirma em sua mente. “Iam me impedir de voar alto demais, ia fazer peso”.

Muriel está contente com o que tem. Com o que deseja. Lutar por ter as coisas que sempre sonhou em ter, por mais básicas que sejam para os que veem de fora.

Marta está junto do senhor Nero e de Chezan, esperando Arthur e Gisele voltarem. Ela sabe que voltarão sozinhos. Muriel claramente sabe como fugir, mesmo que sempre do modo mais caótico possível. A ideia dos pregos foi tão idiota, mas pelo menos agora ela está longe e poderia seguir com sua vida de maneira mais apropriada. Talvez um dia Muriel até volte, mas Marta espera que volte com a cabeça em ordem. Lutar e treinar apenas para ter um teto, uma cama e comida? Isso é idiota, nem faz sentido. Para fazer coisas iguais aos filmes que ela via? Simplesmente infantil.

“E eu ainda preciso colocar uma bola nova na reserva já que ela fez o favor de quebrar uma janela com a bola”, Marta pensa, massageando as têmporas. “Pelo menos agora tá tudo bem.”

Ela olha para a esquina e vê Muriel dançando pela rua, saltitando, e Gisele e Arthur andando dois passos atrás dela. Gisele sorri vendo a empolgação da garota. O queixo de Marta pesa para baixo com uma força enorme, sua mente tentando entender como e por quê. Muriel olha diretamente para ela e abre um largo sorriso. Ela acena para eles e Nero ergue a mão, acenando. Muriel está em frente a uma grande casa, com dois andares.

— Olá a todos! Eu acabei me perdendo no meio daquela confusão. Vocês sabem o que foi que houve, afinal? — Muriel pergunta, colocando uma das mãos na cintura e erguendo a sobrancelha.

Chezan respira aliviado e abraça a garota, tirando-a do chão. Muriel solta barulhos de agonia, pedindo para que ele a solte, e o Hunter assim o faz de imediato, pedindo desculpas. Marta só consegue fuzilar a garota com os olhos. Não consegue conceber como teve a ousadia de ter retornado. Não consegue. Marta marcha porta adentro.

Os próximos três dias passam quase voando. Nero acabou repreendendo Muriel ao receber uma mensagem do hotel e enviou o chuveiro pelo correio. Muriel na verdade ficou feliz ao saber que o custo disso seria retirado de sua mesada, afinal isso significa que ela teria uma. Muriel ama sua nova rotina. Ela dorme, no mínimo, oito horas por dia, às vezes chegando a dez horas. Ela acorda e se alonga, usa o banheiro e então tem um café da manhã de verdade. Todos os dias ela come bastante no café da manhã, sempre rindo e comemorando.

Marta não gosta tanto disso.

— Muriel! Você comeu todo meu sucrilho de volta! — ela grita, vendo a dispensa.

Muriel, de boca cheia, e dá uma risada nervosa.

— Foi mal — ela diz de boca cheia.

Marta solta um suspiro irritado e se senta à mesa. Depois do café da manhã, Nero, Chezan e Angela ensinam ela coisas básicas, como ler e escrever. Ela tem dificuldade e geralmente tenta escapar disso para poder fazer os treinos físicos. Lógico que também tem um almoço, sempre farto, onde todos na casa se reúnem para comer.

— Muriel! Essa carne era minha! — Marta dá um soco na mesa, olhando indignada para a colega.

— Não estava no seu prato, qual é!? — Muriel resmunga, colocando o bife todo na boca por medo de perdê-lo.

Marta respira fundo.

— Esse é o meu prato, Muriel — Marta diz, reunindo toda sua paciência.

Muriel começa a cuspir a carne mastigada, e todos na mesa gritam em protesto.

Depois do almoço, mais treino e estudo, sempre diversificando e, depois dele, um lanche da tarde. Muriel e seus colegas são deixados com a noite livre até a janta, e Muriel geralmente usa esse tempo para dormir, ficar vendo o céu ou assistir televisão.

Diferente da sua televisão antiga, essa é grande, e a imagem é simplesmente melhor.

Nesta noite, apenas o Hunter Chezan está em casa; Angela e Nero saíram a trabalho. Muriel está assistindo televisão, sentada no chão e abraçada em sua surrada mochila rosa de ursinho . Gisele e dois alunos de Angela estão no sofá, logo atrás dela, assistindo junto.

No momento está passando um jornal, sendo noticiado um evento beneficente por um antigo Hunter, Midas Tira-Dentes. Um homem alto e robusto, com roupas e adereços bastante caros. O queixo de Muriel desce ao ver Nero Blanco e Angela Nery logo atrás de Midas.

— Gente! É o senhor Nero? — Muriel se vira para o sofá.

Gisele faz que sim.

— A gente veio para cá justamente para cuidar da segurança do senhor Tira-Dentes — Gisele conta, cruzando sua perna. — Pelo que sei, o senhor Nero foi colega desse Midas numa época. E o pessoal mandou a gente como guarda costas dele, já que York Shin tem tido um probleminha com… os Igualitários — ela completa a frase após uns instantes tentando se lembrar do nome

Muriel coça a parte de trás da orelha.

— Entendi, obrigada. — Muriel diz e se levanta.

Ela não gosta muito de ver jornal, acha chato, então se levanta. Ela anda pela casa e escuta barulhos vindo do quintal dos fundos e vai espiar. No caminho tem a cozinha, então ela aproveita para pegar uma maçã, sua fruta preferida. Ao espiar o quintal, que está com a porta aberta, ela vê Arthur e Marta treinando. O aluno de Chezan tem uma espada de madeira, enquanto Marta está de mãos vazias, e seus ataques consistem apenas de chutes.

Muriel observa atentamente como eles lutam, se fascinando pelos movimentos de espada de Arthur, pesados, mas bastante ágeis e calculados. Marta defende a espada com os braços e contra ataca com chutes, joelhadas e outros tipos de ataques usando as pernas.

“Agora faz sentido o porque as pernas dela são tão grossas e fortes”, Muriel pensa e dá uma mordida na maçã.

O som da mordida na maçã alerta os dois jovens lutando, que param, e seus olhares se focam em Muriel.

— Oie — ela diz de boca cheia, bastante alegre. — Querem um pouco d’água? O Mestre Careca disse que é sempre importante se hidratar durante treinos assim.

Arthur fica visivelmente ofendido.

— O nome dele é Chezan e seria bom tratá-lo com respeito! — ele adverte, em tom sério.

Muriel se vira para Arthur, rindo.

— Eu tô tratando com respeito, ué — Muriel responde, confusa, para então notar sua escolha de palavras. — Ah! Notei o que eu fiz. É, realmente. Foi mal.

Muriel ri, e Marta respira fundo.

— O que veio fazer aqui, Muriel? — Marta questiona.

Arthur vai até a cozinha pegar água. Muriel tem um bom ponto quanto a se hidratar, afinal.

— Eu estava indo para meu quarto e daí ouvi vocês e, tipo, quis ver — Muriel conta, jogando repetidas vezes sua maçã para cima.

— Não quer treinar com a gente? — Arthur sugere por educação, voltando para o quintal.

— Eu não saberia acompanhar vocês — Muriel confessa. — Além disso, por que você pode usar uma espadinha para lutar? — Ela aponta para a espada de madeira. — Como você conseguiu permissão?

Arthur olha para a arma em sua mão.

— Bem, eu só expliquei para ele que gostaria de treinar esgrima. Me aperfeiçoar nisso. E ele me ajudou nisso — Arthur conta.

— Eu quero usar meu martelo.

Ele escuta a declaração de Muriel e imagina que é um martelo de guerra — uma arma de verdade, e não a ferramenta que Muriel é tão familiarizada.

— Sério que você quer usar aquilo como arma de treino? — Marta pergunta, rindo.

Muriel solta uma pequena gargalhada e se vira para a colega.

— Você usa uma bola de futebol, qual é a tua!? — Muriel retruca, as sobrancelhas arqueadas.

Marta fecha a cara, emburrando-se.

— Você não tem moral pra falar de mim — Marta rocifera.

Muriel continua a rir, gargalhando cada vez mais.

— Não? Eu lutava com um martelo, a única coisa que eu tinha, e que é naturalmente capaz de machucar. — Ela faz uma pausa para rir mais. — Você usa uma bola de futebol. E tenta falar como se tivesse escolhido, sei lá, a espada presa numa pedra destinada somente ao rei.

Marta parte para cima de Muriel, pronta para chutá-la na barriga. Arthur puxa Muriel para trás e apara o pé de Marta com as mãos. Ela nota a expressão de dor que Arthur faz e recua de imediato.

— Arthur, eu não quis… Ah! Sua mão está bem?! — Marta se aproxima dele com um olhar preocupado.

Ele ergue a mão, pedindo para ela parar, ele mesmo conferindo o estado de suas mãos. Apenas ralou elas, de leve. Ele vai até a pia e começa a lavá-las, já que se machucou com um chute e não quer que a ferida fique suja. Muriel assobia e dá as costas para Marta.

— Boa noite para vocês, beijinhos — Muriel se despede, pegando um copo de leite e subindo para seu quarto.

 

No dia seguinte, durante a sessão de treino matinal de Muriel, Marta aparece para assistir. A menina não usa muito chutes, preferindo dar socos. Ela parece estar tentando emular algum tipo de arte marcial, talvez boxe. Marta imagina que foi algo que Muriel viu na televisão, em filmes, e agora está tentando imitar.

— Ei, Mestre Careca, o Arthur usa a espada, né? — Muriel indaga, saltitando para trás e desviando dos golpes do Hunter. — Eu quis dizer Mestre Chezan, perdão!

Chezan ri.

— Sim. Ele é bem hábil com ela, sabia? — Chezan aproveita essa conversa para relaxar os braços.

— Eu vi ontem! — Muriel ainda está saltitando e dando socos no ar, cheia de energia — E eu queria poder treinar usando meu martelo. Eu gosto dele.

Chezan sorri.

— Antes de poder usar uma arma, precisa ser boa o bastante sem ela — o Hunter explica.

— Então é melhor voltarmos pro treino! — Muriel avança contra ele.

— Isso! Assim que se diz! — Chezan comemora, aparando um soco.

Marta se aproxima de Nero, que também assiste o treino, e tosse, chamando sua atenção.

— Professor Nero, eu gostaria de lhe pedir algo — ela declara em tom assertivo.

Ele se vira para ela, a encarando com o mesmo sorriso calmo de sempre.

— Pode falar, senhorita Latynia. Sou todo ouvidos.

Marta respira fundo.

— Eu quero desafiar Muriel a um duelo. Um duelo pelo título de ser aprendiz do senhor — Marta fala, agora com um pouco de temor em sua voz.

Muriel volta o olhar para a colega, que desvia de um soco de Chezan por muito pouco, começando a rir de quase ter sido acertada.

— Entendo. Você ainda não a aprova, então? — Nero pergunta casualmente.

— Nem um pouco.

Nero leva a mão ao queixo, pensando por alguns segundos.

— Certo, mas caso você perca, eu posso lhe dar uma punição? — o professor sugere. — Visto que está colocando algo tão drástico para Muriel.

Marta assente. Está pronta para aceitar, mas sabe que não irá conseguir prosseguir sem confrontar diretamente Muriel.

— E caso você use nen, já deixo dito que você perde na hora — Nero fala, em tom baixo, para então falar alto o suficiente para os outros ouvirem. — Certo, pausa no treino! Muriel, vá descansar e beber água!

Nero joga uma garrafa de água para a aprendiz. Marta sente certo nervosismo, sabendo que poderiam haver consequências. Nervosismo que rapidamente some. Muriel é uma novata e não tem chances contra ela.

— Muriel, venha aqui. — Nero fala, gesticulando para que ela chegasse mais perto deles. — Marta quer lhe oferecer um desafio. Basicamente uma luta, onde se você perder, perderia o posto como minha aluna.

— E se ela perder? — Muriel pergunta, com o corpo mole, balançando de um lado para o outro.

— Eu vou decidir isso, mas vou buscar dar uma punição adequada. — Nero lhe assegura.

Marta sorria, cheia de si, não muito diferente de Muriel, que também sorri empolgada.

— Mas você pode recusar essa oferta, claro — Nero pontua, fazendo Marta lhe direcionar um olhar chocado. — Afinal, é muita coisa em jogo, mas presumo que sua colega tenha bons motivos para vir com essa sugestão.

Muriel sorri, olhando para Marta e estendendo a mão.

— Eu aceito o duelo e as condições. — Ela inclina a cabeça para o lado. — Temos um trato então, Martinha?

Marta aperta a mão, sem hesitar.

— Claro.

Cada uma vai para um lado do grande quintal nos fundos da casa, com Nero e Chezan vendo as duas.

— Acha que é uma boa mesmo? — Chezan resmunga baixinho.

Nero faz que sim.

— As duas têm tido problemas desde o começo. — O tom de Nero é tão baixo quanto o que Chezan usou. — Um embate pode fazer elas se entenderem, além de provavelmente fazer elas melhorarem suas visões de mundo. Marta pode entender como é vir de um lugar como o de Muriel, enquanto Muriel pode aprender a maneirar o limite de seu “eu”. — Nero faz uma pausa, calmamente engolindo saliva. — As duas podem aprender muito com isso.

— Sim, mas, se Muriel perder, ela deixaria de ser sua aprendiz. — Chezan relembra.

Nero pisca duas vezes.

— Ah. Ah é. — Nero olha para o colega. — Tem isso.

 

Os demais membros da residência — um outro discípulo de Nero, os discípulos de Chezan e Angela e seus alunos — se empilham nas janelas e na porta para acompanhar a luta. As duas são deixadas frente a frente, se encarando. Marta, séria como sempre; Muriel sorrindo de modo leviano. Chezan está de frente para as duas, servindo como juiz.

— Tem certeza que não quer jogar futebol invés de lutar? Pra ficar mais fácil para você — Muriel provoca, com um sorriso de lado.

Marta nada diz, concentrando-se em se manter séria e com uma postura digna.

— Prontas? Já terminaram com as provocações? Então começou! — Chezan grita, se afastando.

Muriel abre seu típico largo sorriso de empolgação e tenta socar diretamente o rosto de sua adversária, colocando todo seu corpo naquele golpe. E ela acerta o nada. Muriel não vê Marta diante de si. Ela está agachada e aplica um forte chute que atinge o peito e o pescoço de Muriel, a jogando para trás, derrubando-a no chão. Ela tosse, se recuperando e tentando entender o que houve.

“Marta é rápida, ela deve ter se deixado cair assim que Chezan gritou, e daí veio aquele chute.” Muriel raciocina, se levantando e vendo Marta a encarando ainda no mesmo lugar.

Muriel suspira, a encarando de volta. Sabe que aquele chute não foi com toda a força que sua veterana possui. E, assim, ela se aproxima devagar de Marta, com a guarda alta e atenta a todo movimento que sua oponente faz. Muriel tem pouco tempo de reação, com Marta saltando para cima dela, em um chute alto, mirando na têmpora direita de Muriel.

“Ela é rápida e pode pular bem alto” Muriel pensa. “Ótimo.”

Muriel começa a sentir medo. Ela consegue colocar seu braço entre sua cabeça e o chute. O golpe a derruba no chão, mas ela rapidamente consegue girar para ajustar a postura e acertar um soco direto na barriga de Marta. Uma armadilha. Marta acerta um golpe com as mãos juntas nas costas da adversária. Muriel cai no chão, arfando por ar, com Marta a olhando de cima.

— É divertido agora, Muriel? — ela pergunta, sua voz perdendo o tom provocativo e ficando genuinamente ácida.

A resposta para a pergunta vem em formas de risadas, a garota já de pé.

— Agora começou — Muriel decreta, encarando sua colega nos olhos com um riso de deboche.

— Idiota. — Marta bufa.

Muriel parte para cima, com socos diretos rápidos. Nero observa tudo, vendo que o jogo de pernas da nova aprendiz melhorou bastante desde que começou. Só que Marta tem muito mais experiência, desviando e contornando Muriel quase que em uma dança. Movimentos sempre calculados, sem desperdícios. Ela consegue analisar de modo calmo o jeito que o braço de sua adversária se retrai e se estica, tentando socá-la. Ela acerta o pulso com um soco e avança, acertando a barriga de Muriel com uma joelhada.

Muriel recua, tossindo. Ela agora nota contra o que está lutando. As consequências pesam sobre si. Não pode perder. Não pode arriscar aquela cama que parece abraçar ela. Não pode ficar sem aquela cozinha com aquelas refeições tão gostosas. Sem aquele chuveiro quente, visto que ainda perdeu o que teve tanto trabalho de roubar daquele hotel.

Marta avança com dois socos diretos e então um chute giratório. Muriel escapa dos socos, mas o chute lhe empurra para o lado, sofrendo para manter o equilíbrio. Seu coração não consegue parar quieto, parece se debater em toda sua caixa toráxica. Ela tenta contra-atacar, mas a quantidade de golpes que consegue acertar é sempre ridícula em comparação aos que Marta consegue. Fora que os golpes dela são bem mais pesados que os de Muriel. Marta parece estar ainda em seu pico, enquanto Muriel sente que começa a ficar cansada.

Marta vê Muriel se afastando o máximo possível dela. A garota está ofegante, encurvada, e claramente seus golpes já causaram um bom dano nela. O olhar de Muriel geralmente é de deboche e desafio. Aquele olhar que tanto irrita Marta. E está feliz de ver seu olhar agora tomado pelo medo. É assim que deve ser. É uma luta pelo direito de continuar sendo treinada como e por um Hunter. Não há espaço para brincadeiras ali. Não há espaço para quem ache que um bolo no café da manhã é um motivo válido para passar por tudo isso.

— Você pode desistir, Muriel — Marta fala. — Não tem por que continuarmos.

— Do que você está falando? — Muriel fica de cócoras, tentando descansar.

— Eu não quero ficar te batendo até você notar o óbvio. Desista agora, é melhor.

— E daí ser chutada pra fora daqui? — Muriel retruca.

Marta dá os ombros. Muriel cospe no chão e se levanta, erguendo a guarda e dando três passos para frente. Marta fecha a cara, cerrando os punhos.

— Que seja então. — Ela bufa.

Muriel corre na direção de Marta e salta, com um soco se encaminhando ao rosto da garota loira. Marta se limita a ajeitar sua postura e tentar chutá-la nas costelas. Hora de colocar força nos golpes de verdade. Muriel, defendendo o chute por pouco, começa a rir, seus olhos se abrindo e seus movimentos acelerando.

— Ah, você quer baderna, né? — Muriel resmunga.

Marta franze as sobrancelhas, confusa.

”Do que ela está falando agora?”

— Você quer cortar minha onda, é? — Muriel continua a resmungar, enquanto desvia de um soco.

Marta tenta chutá-la, e Muriel apenas se abaixa, dando uma rasteira na perna de apoio, derrubando-a.

— Você quer cortar minha onda, Marta?! — Muriel exclama.

Marta olha para Nero, em busca de respostas.

“Eu bati com força demais?” Ela se pergunta.

Muriel se alonga e sorri.

— Bem, então vamos para a lambada, Marta! — Ela avança, rindo.

Marta, já de pé, olha com repulsa para a colega, se preparando para derrubá-la. Se lembra de como foi difícil para ela ser aceita como pupila de Nero. Passou semanas pedindo, fazendo propostas formais, indo até a casa dele e explicando sua situação, demonstrando sua determinação de mil modos. Precisou provar que merecia ser treinada por ele e que sua causa era digna do tempo e do esforço do tão famoso Hunter Nero Blanco. Marta é da mesma cidade dele, e, por lá, ele é reconhecido como uma figura famosa em quesito de sucesso, honra e competência. Marta tem um sonho, um sonho válido. Um sonho que precisa de uma licença Hunter para ser realizado.

E Marta queria ser treinada por ele, pois sabia que não podia perder tempo se esforçando com coisas bobas. Sendo treinada por qualquer um. Repetir três vezes o Exame Hunter. Não tem esse luxo. E o motivo disso e de toda sua obstinação é o fato de ela ter vindo de uma família muito consagrada no mundo esportivo como um todo. Eles, logicamente, são bastante ricos. A família de sua mãe tem diversos negócios dentro desse mundo, desde grifes de roupa até linhas de suplementos energéticos. Já a família de seu pai é mais focada no lado puramente esportivo. Ganhar medalhas. Vencer. Quebrar recordes. E Marta cresceu sendo treinada para isso, para seguir esse caminho. Seus pais diziam que ela nasceu para ganhar medalhas em esportes como tênis, corrida e ginástica artística.

E, no começo, era bom. Ela realmente apreciava essas modalidades. Não via problema em se dedicar a elas. Mesmo com todo o treino pesado e a rotina rigorosa. Marta não se importava. Até o dia que descobriu o que era futebol. Teve a chance de jogar algumas partidas em sua escola, e notou o quão aquele jogo é divertido. Se apaixonou pelo esporte. A emoção que sentiu foi tão forte que decidiu no mesmo dia que seria aquele o esporte ao qual dedicaria sua carreira. Ainda gostava dos três de antes, lógico, mas futebol era diferente. Era sua escolha. Foi algo que ela escolheu porque ela achou divertido. Porque se sentiu bem.

Sua decisão e vontade não foram bem recebidos em casa, infelizmente. Sua mãe simplesmente era contra, sem ir muito a fundo. Dizia que aquilo não era um esporte digno e que não traria retorno. Seu pai foi mais a fundo, defendendo a beleza e a graça do que eles vinham fazendo a jovem Latynia treinar tanto.

“Seus motivos não são válidos o bastante”, seu pai falou. “Suas razões são pura tolice.”

E, no decorrer de três meses, eles discutiram sem parar, sem um resultado positivo para Marta além de ser negada mais e mais vezes. E isso começou a deixá-la irritada. A primeira decisão concreta que fez em sua vida e é assim que lhe tratam? Marta, durante um almoço, bateu na mesa, tomada por indignação.

“Eu vou ser jogadora de futebol! É um esporte igualmente digno e igualmente possível de ganharmos renome e respeito! Ninguém, e eu repito, ninguém nessa família está nessa modalidade. E já tivemos tantos e tantos Latynia corredores, tantos ginastas e tantos tenistas”, Marta exclamou, embargada pela raiva acumulada.

Seu pai a ameaçou, ordenando que se sentasse. Sua mãe ergueu a mãe e sugeriu algo melhor, com um sorriso soberbo. Marta poderia se tornar uma jogadora de futebol, mas com uma condição: deveria se tornar uma Hunter. Ser um Hunter é difícil, afinal. Logo ou ela desistiria de tanto tentar, retornaria para casa e se conformaria à vida que seus pais amorosamente escolheram para ela, ou retornaria para casa como uma Hunter, e aí poderia ser o que quisesse, “até uma lutadora de sumo”. Assim, teriam um Hunter na família, podendo se gabar disso.

No mesmo dia, Marta saiu de casa em busca de um professor. Foi atrás de alguns Hunters, que não a aceitaram. E então teve a ideia de ir atrás de Nero, o Pacificador. Ele poderia ajudá-la em sua missão. Uma missão em busca do direito de ser dona de seus atos e poder dizer o que é melhor para ela. Ser Hunter para Marta é isso: assim como não é algo que se conquista com um esforço casual, também não é algo que se conquista por um motivo casual. Isso vale para os vários que todo ano tentam obter a licença e fracassam. Apenas pessoas como ela conseguiriam. Com objetivos como o dela. Sonhos, ideais e metas de verdade e com a  determinação que nasce disso tudo.

E Marta só está onde está, só está sendo capaz de chegar tão longe, porque tem tudo isso consigo. Ela não treina, luta e passa tudo o que passa por motivos triviais. Tem muito em jogo, e ela sabe reconhecer isso. E é isso que a irrita tanto em Muriel. Elas são opostos. Um oposto que Marta não quer, não pretende aceitar. Além disso, os modos — ou a falta deles — de Muriel não ajuda nem um pouco a fazê-la mais tolerável.

— Você só pode estar me zoando — Marta fala, observando Muriel se erguer mais uma vez.

Muriel tem um pouco de sangue saindo de sua testa por ter recebido um chute com tudo no rosto. Em troco de ter levado esse golpe, ela conseguiu dar um cruzado em sua adversária, que não esboça o mesmo nível de desgaste que ela. Marta volta a refletir sobre o quanto não entende até agora a decisão de seu mestre, o quanto não vê o tal potencial que ele viu nela. Se, por um lado, Marta tem sonhos grandes e sublimes, por outro, tudo que a garota à sua frente tem são desejos simplistas sustentados por uma teimosia infantil.

“Como eu poderia perder para alguém como ela?” É tudo que Marta consegue pensar, em total descaso.

Marta dá um risinho, e Muriel, que está respirando de forma pesada, ri também.

— Qual a graça? — ela pergunta, risonha. — Se for uma piada boa a ponto de fazer você rir, eu adoraria saber.

Marta suspira, passando a mão pelo cabelo, tirando alguns fios no rosto.

— É que você é teimosa, Muriel. Isso, ao mesmo tempo que é adorável, é irritante. Pelo que você está lutando tanto, Muriel? Pelo que você quer tanto ser uma Hunter? — ela indaga. — Seus motivos não são válidos. Suas razões são pura tolice. Vá viver uma vida comum. Coloque os pés no chão e encare as coisas.

Muriel se sente tonta, tudo parece girar.

“‘Motivos não são válidos’. Os meus motivos… Ela acha eles bobos demais para isso” Muriel reflete, erguendo o olhar para o céu. “Ela deve estar nessa por algo sério de verdade. Me pergunto o que é.”

Ela não consegue adivinhar pelo que Marta luta. Só consegue sentir que deve ser algo importante e sério o bastante para ela agir sempre assim, mesmo sendo tão jovem. Mas Muriel não pode deixar seus sonhos e vontades serem descartados por outros. Ela não pode. Ela fez um acordo naquele lanchonete e Muriel Andrade quer ir naquele show de música. Muriel respira fundo e tira o colar para fora de sua camisa e dá um beijinho nele.

— Você e com certeza tantos outros desprezamolham de cima para as coisas que eu quero. Sabe por que é bobo, Marta? Porque você já tem tudo isso. Você nunca não teve isso. — Muriel engole a saliva. — Vingança, proteger a família, salvar a donzela no castelo, seja lá o que for de épico e grande que você defende e luta para conquistar. É tudo algo da hora, mas se você tem sonhos tão grandes assim, eu só posso invejar você.

Muriel ri e mostra a língua para Marta, se espreguiçando.

— Essa lutinha boba que você tanto quer é pra decidir quem tem o melhor sonho. E, se eu ganhar, significa que seu sonho é menos importante do que poder comer seu cereal de propósito!

Marta olha confusa para ela.

— É, eu sabia! Eu só achei gostoso e não consegui parar! — Muriel ri, começando a saltitar, com os braços moles.

Marta, com raiva, parte para cima da colega, que ainda está saltitando no mesmo lugar, com a guarda totalmente baixa.

Chezan está olhando de vidrado, pasmo e totalmente imerso na luta, tal qual boa parte dos espectadores, incluindo alguns vizinhos espiando pela cerca. O único que mantém uma expressão tranquila e um sorriso simpático é Nero. Um sorriso de satisfação.

Marta para a menos de um metro de Muriel e, quando tenta acertar ela com um chute, recebe um soco no rosto, que a faz ir para trás. Muriel havia rapidamente desviado, pisando firme dois passos para o lado e colocado todo o peso de seu corpo naquele soco, chegando a girar o torso.

Muriel volta a saltitar e Marta precisa se lembrar que não pode usar o nen. Marta corre e salta em zigue zague, tentando confundir a adversária. Desfere um soco quando está no flanco direito e mais um quando salta para o lado esquerdo. Muriel apenas salta para trás, rindo, com os olhos bem abertos e as sobrancelhas arqueadas. Marta range os dentes e pula, em uma voadora. Muriel abre um sorriso ainda mais largo, indo um pouco para o lado e levando a mão para trás do corpo. Marta nota seu erro. Foi impulsiva. Subestimou sua oponente. Uma oponente que luta para defender as mais básicas das coisas. Comida. Um bom sono. Um bom banho.

“Como fui tola e cabeça dura”, Marta pensa. “Não sou tão diferente dos meus pais, no fim”.

O punho de Muriel se choca contra o tornozelo da outra garota e ambas caem no chão, Marta com mais impacto e Muriel por puro cansaço. Todos assistindo se mantém  quietos. Chezan abre a boca para dizer algo, mas Nero ergue a mão, pedindo silêncio. Marta consegue se levantar, dolorida e mancando. Está melhor que Muriel, que caiu de cara no chão. Ela vai até a garota caída e a vira para cima. Ela está acordada. Muriel só estava com preguiça de se virar de volta, os braços exaustos.

O lábio inferior de Marta Latynia treme.

— Tudo isso vale a pena por uma caixa de sucrilhos? — Marta pergunta, com a voz embargada de choro.

Muriel faz que sim com a cabeça, devagar, e Marta ri, lágrimas escapando de seu rosto.


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Notas finais do capítulo

Primeiramente: Desculpem pelo atraso. Demorei para corrigir esse capítulo.

Segundamente: Eu deveria ter colocado isso ANTES mas todo capítulo é revisado pela mais que incrível Mackernasey. Ela escreve e entende de gramática ABSURDAMENTE BEM. Mais que recomendo lerem o que ela faz.

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