Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 36
Como é?




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    Milena tinha ela mesma escrito a música para aquela ocasião. Amava as letras de Marizete, mas era um momento único demais para que cantasse palavras que não eram suas. Decidiu arriscar com o que entendia de composição. Afinal, era a hora de se apresentar cara a cara com o público. A canção foi exatamente sobre isso.
      Então, ao entrar no palco, se juntar aos colegas de banda, olhar a plateia nos olhos e assumir seu lugar de vocalista com um som original, seu sentimento foi tão forte que era quase impossível olhar para a performance e não se arrepiar. Em sua cabeça se passava uma batalha entre sua autoconfiança e seu trauma de palco causado na infância por Graziele. Após o que pareceu, por anos, batalha perdida, naquele momento a confiança finalmente começava a vencer, como uma fênix.
    O público conseguia sentir a emoção que transparecia em cada nota do refrão que ela repetia. Isso só aumentou a felicidade de alguns fãs, que já estavam surtando, de forma positiva, com o simples fato de estarem vendo a Ghost pessoal e finalmente. Contudo, de qualquer maneira, só os íntimos e mais detalhistas reconheciam, de fato, a dona da voz da Desq. O cabelo continuava preso sobre o boné, e a maquiagem era tão forte que disfarçava suas feições naturais. Era o marketing perfeito: dar a cara a tapa, sem desfazer o mistério.
    Seu Xisto estava adorando a performance, principalmente o engajamento do público. Seus olhos brilhavam pensando em todas aquelas pessoas permanecendo ali e consumindo os salgados da lanchonete. Quem não gostava tanto eram os demais funcionários: mais trabalho para eles, além da hora extra. Porém, entre eles, o caixa resmungão (que se chamava, Raimundo, inclusive) reconheceu Milena, e em meio à surpresa, se dividiu entre invejá-la e comemorar pela garota. Mas com certeza, os mais encantados ali eram o baterista e o guitarrista da banda. Os dois olhavam apaixonados para Milena; Patrick um pouco mais acanhado e com medo de errar as notas do baixo; Ricardo, direta e fixamente. Ana se sentiria bem chateada por isso, se não estivesse ela mesma, no fundo, feliz pela prima. Para alguém que acompanhou de perto os desafios na carreira musical da outra, não havia homem nenhum que lhe faria sentir raiva de sua parente naquele momento. Por isso,   ela dedilhou sua guitarra com seu melhor empenho e nenhum ressentimento, para repetir o refrão. Singelamente, começou a lhe acompanhar no backvocal (cantarolando ao fundo), sorrindo de leve:

Ter tudo que um dia eu sonhei
  Não parece tão ruim
Ter tudo que um dia eu sonhei
Não podia ser sempre assim?
Porém tive sorte, pra chegar até aqui
Não dá pra voltar, faz parte de mim

    Assim que as últimas notas se encerraram,  o público foi ao delírio, gritando pela Ghost, batendo palmas, assobiando, pulando, alguns até jogando bandeiras no palco, onde estavam escritas coisas como “NÓS AMAMOS A DESQ”, “ORGULHO DISQUETE” e “MELHOR FÃ-CLUBE DA MELHOR BANDA” e uma chuva de confetes estourou de surpresa sobre suas cabeças. Seu Xisto havia pedido para soltar, como agradecimento pela apresentação. Dividiria os lucros com eles no final do show, com um pouco de dor, sim, mas também sem ressentimentos...
      Milena travou por alguns segundos, vendo os fãs tão felizes por sua apresentação. Ela lembrou de já ter ouvido falar que traumas são memórias fixas de eventos ruins que ficam como cicatrizes na nossa memória. Concordava completamente com aquilo até aquele dia.             Certamente a dor que sentiu quando teve sua apresentação no colégio arruinada não iria sumir de sua memória, mas a enxurrada de sentimentos bons que vieram ao subir no palco com a sua banda lhe marcaria muito mais dali por diante.
     Colocando as mãos no rosto, sem acreditar de tanta felicidade que sentia, agradeceu rapidamente e saiu correndo de volta para trás do palco. Muitos pensaram que ela estava mantendo-se fiel ao conceito de ser uma cantora fantasma, mas na verdade, era simplesmente a timidez de Milena. Se por um lado, ela deu um passo enorme naquele dia, por outro, algumas coisas simplesmente não mudam.
     Ana e Ricardo, apesar do clima terrível entre eles, não puderam deixar de dar um sorriso respeitoso um para o outro. Os dois tinham lutado muito na área da música para viverem um momento como aquele. Ainda que a estrela da noite não fosse nenhum dos dois. Para quem realmente sente e se inspira, a arte não é sobre simplesmente se mostrar. É sobre compartilhar ideias, sentimentos, algo que vai muito além da mera fama pessoal. Ver seu trabalho em si sendo reconhecido é o melhor mérito que um artista pode querer. Por isso tantos músicos abdicam de uma posição de atenção, para dar espaço a um cantor; não que vocalistas não sejam artistas só por aparecer, isso pode acontecer, mas não é o essencial.   — Quem faz arte só pela fama, não faz desse jeito… — dizia Magno ao seu companheiro, em casa, enquanto assistia ao show pela internet, orgulhoso. Zulu passou uma mão carinhosamente pela nuca de Magno, e disse, sorrindo para ele:
      — Você é um visionário. Não faço a menor ideia de como viu tanto talento em um grupo de jovens tão despreparados, mas conseguiu fazer brilhar uma das bandas mais incríveis que eu já vi. — Falava orgulhoso pelo namorado.
     — Eles não eram despreparados. Só não tinham chance de mostrar isso ao mundo. — O crítico de arte respondeu, simplesmente, olhando para frente.
     —Certo, mas… Por que eles? Quer dizer, o Brasil não é exatamente um país onde poucos músicos talentosos não conseguem fama. Muito pelo contrário, tá sobrando gente com talento e sem oportunidade.
Magno se virou de lado, e olhou mais sério para Zulu.
      — Então eu, como profissional da arte, deveria fazer o que? Não ajudar absolutamente ninguém porque outros vão ficar de fora?! Então fica todo mundo mal? A Desq foi a banda que estava no lugar certo, na hora certa, e eu realmente precisava mandar qualquer gente verdadeiramente talentosa pra salvar o conservatório. Eis a prova.
Zulu concordou com a cabeça, mas depois de um tempo falou de novo.
    — Mas e o pessoal do conservatório? Ficaram chateados contigo?
O grisalho riu:
     — Acabei salvando a festa deles, e você ainda acha que tinham que se sentir ofendidos?
Zulu também riu, e beijou Magno sem falar mais nada.
     Enquanto isso, nos bastidores do palco, Marizete aguardava empolgada a saída da banda. O primeiro a passar por ela voltando foi Patrick, com um ar de cansado, porém muito feliz.
   — Meu príncipe Patrick! —  Falou ela docemente, dando-lhe um beijo na bochecha. Ele sorriu sem graça, mesmo achando o ato bem fofo, no fundo.
     —  Tá procurando pela Milena? — Ele perguntou logo, de uma maneira carinhosa. Achava bonitinha a amizade das duas.
     — Não, não, eu gosto de você também! Eu vi a Milena agora há pouco, inclusive, ela passou correndo por mim. Ela estava muito bem na apresentação, mas percebi que ficou estranha comigo quando percebeu que a Graziele é minha filha.
      — COMO É QUE É?

Alguns dias depois
       — Eu quero, eu posso, eu consigo! Eu quero, eu posso, eu consigo! Eu…
      — Não acredito nisso!
Jaques estava se olhando no espelho em um banheiro público repetindo o mantra, quando Zulu entrou.
    — Eu marco uma gravação com uma equipe inteira de dançarinos para a sua música e você vai ficar trancado no banheiro?
     — Ahn, eu estava tentando pegar alguma inspiração…
      — Hmm… Tá, né? Agora vamos. Está na hora de gravar seu clipe novo!
Jaques se olhou inseguro no espelho uma última vez. Quando Zulu esteve em sua casa, ele veio lhe trazer a proposta de um contrato com uma gravadora conhecida. Na verdade, o namorado de Magno queria fazer como seu amor e lhe surpreender lançando outro artista bom. Com a diferença que ele estava apostando em algo seguro, que já fazia um grande sucesso na internet. A questão na cabeça de Jaques, é que após tanto tempo sendo desvalorizado e colocado de lado, ele temia que desse tudo errado de novo. Não queria se apegar a ideia de que daria certo e se frustrar, por isso uma síndrome do impostor lhe dominava antes da gravação. Enquanto caminhavam pelo corredor, ansioso, ele acabou falando:
      — Eu… tenho medo de que dê tudo errado.
      — Quanta positividade…. — comentou Zulu
     — É serio. Você tem certeza de que eu sou sua melhor escolha?
Zulu segurou em seu ombro e disse:
     — Sinceramente eu não sei. Mas confio em você.
Jaques quase tremeu ao receber a onda de sinceridade, mas em seguida se recompôs. Era melhor assim. Seu medo era exatamente ser iludido, então estranhamente aquilo acabou lhe acalmando. Poderia dar tudo errado. Não era muito diferente do resto da sua vida. Então o que tinha a perder?


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