Os Desqualificados escrita por S Q


Capítulo 12
O Crítico




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A limusine de Graziele Tesmon se encaminhava para o hotel Windsor de Brasília. Haveria um encontro entre a cantora e os representantes do Conservatório de Música, na sala de conferências do hotel, para fechar a parceria e definir detalhes de como seria a apresentação. 

 Enquanto o carro chamativo passava pelas ruas, alguns pedestres reconheceram quem estava dentro dele e começaram a gritar coisas como "Dodósinha!" "Ó lá a artista do nome feio!". Não é preciso dizer que Graziele era puro ódio naquele momento. Ela poderia ter alugado qualquer carro menos chamativo, mas não conseguia abrir mão do conforto que tinha ali aos seus pés na limo.  Assim que chegou, os seguranças do cinco estrelas orientaram para que entrasse rápido a fim de não causar confusão no hall, porém um grupo de jovens reconheceu Graziele dos memes que compartilhavam na internet. Eles começaram a correr atrás dela, obrigando os seguranças a fazer um cerco; o que não impediu que a celebridade levasse uma ovada. Ela entrou na sala de convenções totalmente mortificada. A pergunta que passava na sua cabeça era como um grupo de arruaceiros não era barrado em lugar tão de primeira classe como aquele. Arruaceiros sim, porque só um arruaceiro para andar com ovos por aí… Por causa desse ocorrido, ela entrou de cabeça baixa, sem se exibir, o que a consumia por dentro. No entanto, Jaques, que já estava na mesa de reunião, acertando os termos que os representantes do próprio conservatório precisavam assinar, a viu entrar como se fosse uma musa na passarela, mesmo naquele estado. Em um ímpeto destrambelhado de emoção, ele se ergueu e acenou:

— Olá minha deusa, já estou aqui!

O diretor do conservatório lançou apenas um olhar de escárnio para seus companheiros, debochando daquela ceninha ridícula. 

— Bem senhorita Eusfraudósia Barbosa, estávamos discutindo qual seria o momento mais apropriado para sua apresentação, e decidimos que o melhor seria que você abrisse a mostra…

Rapidamente ela corrigiu o nome com uma pigarreada "Graziele Tesmon".S

— Senhorita Eusfraudósia, aqui estamos tratando de termos legais de compromisso, então temo ter que chamá-la por Eusfraudósia mesmo, seu nome civil.

A conversa seguiu nesse tom nem um pouco amistoso, porém, no final, Graziele e os senhores ali presentes tiraram fotos, que seriam enviadas para uma revista de arte, como se estivessem tomando um alegre chá com amigos que se respeitavam. Aquilo, Jaques achou ridículo. Começou a olhar ao redor para ver se mais alguém estava enojado com a falsidade daqueles velhos quando encontrou um senhor de uns aparentes 50 anos, cabelo grisalho mas em boa forma, encostado no canto da parede, com uma cara nítida de saco cheio. Até então, nem tinha reparado na presença dele ali. Era um crítico de arte, que assistiu a reunião de longe para tomar notas e depois publicá-las em sua coluna de cultura no jornal "Correio Brasiliense".  Ele desviou o olhar do homem quando percebeu que esse começou a lhe encarar de volta, curioso. Retornando o olhar para a mesa, percebeu que já estavam acontecendo apertos de mãos formais, típicos de um final de reunião e começou a se levantar, sentido um pouquinho de alívio. O tal crítico também se retirou, feliz com o fim daquilo, mas fazendo questão de demonstrar nos seus gestos o quanto estava agradecido por poder ir embora e não precisar ficar lá assistindo mais aquela palhaçada. Saindo do hotel, o homem, que se chamava Magno, recebeu uma mensagem de um colega do jornal, perguntando como tinha sido. 

"Eu acho mais é que tinham que invadir aquela porcaria, arrebentarem tudo, dane-se! Eles não apoiam artistas talentosos, eles apoiam conscientemente figurinhas públicas burguesas, que vão dar mais dinheiro para eles; mais do que esses canalhas já têm! A arte brasileira está mesmo corrompida...". 

 Magno de Assis, filho de uma coreógrafa com um diretor de teatro, conseguiu uma carreira respeitada no passado como ator de musicais. Porém, em torno dos 40, sua energia não era mais a mesma e ele focou em especializar a carreira, estudando academicamente a arte. Devido a já ser relativamente conhecido no meio, conseguiu se tornar um importante crítico vivo e em exercício do ofício. Quer dizer, importante ao menos para quem se importa com isso.

 Nasceu em Brasília mesmo, em 1971, tendo visto de perto a época em que a cidade se tornou quase um polo de referência do rock nacional, sendo berço de bandas como Paralamas do Sucesso, Capital Inicial e Legião Urbana. O avô dele trabalhava na UniB, local onde gostava de ir para ver os shows abarrotados de estudantes, fãs das bandas que surgiam. Era assumidamente um saudosista dos ritmos dos anos 80. Gostava de frequentar bares retrô, onde dizia que ainda era possível escutar artistas que realmente entendiam o que estavam fazendo.  E foi exatamente para um lugar assim que ele se encaminhou depois daquela reunião "deplorável" nas palavras do próprio.

Porém, chegando lá, uma cena lhe chamou a atenção: havia três jovens, aparentemente uma banda, em uma forte discussão com o gerente do estabelecimento. Por algum motivo, o administrador não queria que eles tocassem lá. Ele pediu um suco no balcão,se mantendo atento aos jovens, que derrotados, se dirigiam com seus instrumentos em direção a um Uno Mille velho. Contudo, Magno conseguiu perceber ainda, que apesar disso,  eles se abraçavam, como que dando suporte para não desistirem.

Em um ímpeto, ele correu até o grupo, antes que fossem embora. Os músicos, que eram Ana, Patrick e Ricardo, pararam ao repararem o homem correndo meio sem fôlego, na direção deles. Magno se apresentou brevemente e perguntou por que eles não se apresentariam ali. Sabia que uma banda que não conseguisse se apresentar nem em um bar temático, teria tudo para dar errado. Mas a obstinação que mantinham no olhar não era algo que se via facilmente em qualquer artista. Eles disseram que estavam tentando começar a divulgar a banda e que esses lugares não aceitavam bem gente nova no meio, sem muito "QI" (quem indique). Uma mulher de cabelos curtos e olhos cor de mel, disse ainda, com escárnio:

— Não foi a primeira e nem será a última vez que isso acontece.

Magno sabia que era verdade. Apesar da relativa abertura a gêneros alternativos que certos lugares davam, geralmente ainda era mantido um favoritismo por alguns poucos grupos.

—  É, fazem isso mesmo… Quer dizer, é complicado dar suporte para alguém fora do mainstream; é bonito, é bacana, mas não dá retorno financeiro…- nesse ponto ele começou a franzir o rosto como se a raiva o dominsasse.- E assim, descartam vários artistas bons que ficam sem oportunidade quase alguma de crescer. Transformaram a arte em um mercado da barganha! Virou de quem dá mais, estão cagando para tragetória e inspiração!

Patrick, Ana e Ricardo deram alguns passos para trás, por precaução  ao estado de fúria que o excêntrico homem se encontrava. .

— ...O próprio conservatório já não protege ninguém, eles só querem nome e dinheiro! E eu sei que essa porcaria dessa história vai continuar se repetindo até que…

Parou de falar de repente. Seus olhos se arregalaram como se estivesse recebendo uma inspiração divina. Ou um plano de sabotagem maligno.

— Vocês não tem nada a perder, não é mesmo?

Antes que os garotos da DESQ dissessem qualquer coisa, ele jogou uma chave no peito de Patrick, que estava entre Ana e Ricardo. Ele a agarrou por reflexo, quase se desequilibrando.

— Isso é a chave da porta dos fundos do Conservatório de Música de Brasília. Eu recebi para fazer a cobertura da mostra de música pop, mas fazer isso me dá ânsia de vômito. 

Então olhou sério, se aproximando dos três.

— Por favor, invadam aquele lugar. E estourem os tímpanos daqueles babacas.


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