Recomeços escrita por Sophia Snape


Capítulo 6
Murmúrios


Notas iniciais do capítulo

Agradeço MUITO os comentários de vocês. Sério, fico muito feliz. Espero que gostem deste capítulo, é um ponto de virada para a história.



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Severo estava perdido no enigma que era Hermione Granger. Ele se aproximou dela na tentativa de que o vinho a fizesse falar, mas se viu preso em sua própria armadilha com uma conversa estranha e estimulante sobre literatura. Ele estava se agarrando a imagem de uma garota que decorava os textos das aulas, mas a verdade é que ela sempre fora lógica. Sua inteligência transpassava os limites da memorização. Ele esperava uma conversa morna com observações decoradas, e ganhou mais chaves de leitura e muito, muito o que pensar.

E embora Severo Snape fosse um mentiroso de primeira, ele era péssimo em mentir para si mesmo. Por mais que ele tivesse conseguido se enganar até agora, foi impossível ignorar o pequeno pulo que o seu coração dera ao vê-la rir e dançar na praia. Aqueles cachos cor de mel pareciam ainda mais deslumbrantes diante da luz morna do entardecer francês. E a medida que ela girava, o vestido revelava a pele cremosa das pernas, um brilho dourado recém adquirido do bronzeado natural do verão.

Mas foi quando ela levantou o cabelo na tentativa vã de prendê-lo, mostrando a nuca mais requintada que ele já vira, com pequenas gotas de suor deixando a pele ainda mais brilhante, que Severo sentiu a boca secar. Merda, ele praguejou, já pensando nas inúmeras implicações daquilo. Era errado. Errado e inconveniente em tantos níveis que ele jogou esses pensamentos para o fundo da sua mente. Afinal de contas, se ele havia sobrevivido como espião duplo, poderia se sobreviver a isso.

— Parece que você está olhando para um quebra-cabeças muito complicado. Ou talvez para uma boa partida de xadrez.

Era a Valérie, e Severo se amaldiçoou por ter baixado tanto a guarda a ponto de ser notado.

— O que disse? – as vezes se fazer de bobo era a melhor saída.

Ela bufou, olhando para ele como se dissesse “Homem impossível”. – Não pense que não notei vocês conversando no início da festa. E não pense também que não reparei que o seu olhar voltou para ela várias e várias vezes nas últimas quatro horas.

O corpo de Severo ficou imediatamente tenso. – Não sei o que está falando.

Valérie suspirou, sabendo que estava pisando em gelo fino mas por algum motivo não querendo que o assunto escapasse deles. – Desde que chegou aqui, parecendo perdido e desconfiado, andando como se algo ruim fosse acontecer ao virar de cada esquina, meu coração se encheu de um carinho genuíno por você. Você, claro, foi implacável no início: sempre mal-humorado, querendo manter as pessoas a distância de um braço. Com o tempo, graças a Deus, isso foi se dissolvendo em você. Acho que aos poucos você foi percebendo que a pior coisa que poderia acontecer virando a esquina é esbarrar com a Sra. Janet e ouvir horas intermináveis de fofoca.

Severo relaxou um pouco, o vislumbre de um sorriso aparecendo no canto da boca. – Isso é terrível o suficiente.

— Mas eu sempre soube – ela continuou, ficando séria novamente – que ainda não era suficiente. E acho que você sabe também. Talvez essa moça seja a sua chance de enterrar todo o sofrimento que você carrega, e sabe-se lá Deus a quanto tempo, para ser feliz.

Tentando mudar o rumo da conversa, ela finalizou. – Além disso, tirando as crianças, claro, e os filhos que fogem sempre que podem para Marselha ou Paris, vocês dois são muito provavelmente as únicas pessoas jovens dessa vila. Talvez te faça bem uma companhia estimulante ao invés de ficar se espreitando pelas sombras. – ela deu três tapinhas na mão dele esperando transmitir o abraço que ela gostaria de dar. Depois, pensando melhor, ela completou. – Você não é um espião, pelo amor de Deus.

O corpo inteiro dele paralisou com a última frase dela, seu rosto virando tão rápido que ele quase torcera o pescoço. Mas não havia nada de sugestivo no olhar dela além de preocupação genuína, e Severo se forçou a lembrar como respirar. Foi só uma escolha incomum de palavras, Severo. Respira. Ele disse a si mesmo repetidamente. E a pior parte é que ela estava certa. Claro que a Valérie não entendia como a palavra espião era muito mais que metáfora para ele, era real. E ele estava repetindo o mesmo padrão que havia usado a vida inteira.

Uma coisa era agir com a astúcia e elegância de um sonserino. Outra era caminhar nas sombras. A diferença era tênue, mas poderosa, e ele estava perigosamente caindo mais para um lado que para o outro.

— Mulher intrometida. – ele resmungou, sabendo que era porque ela estava, afinal de contas, certa.

...

A tradicional festa que marcava oficialmente o término do verão europeu caminhava para o fim quando Severo se deu conta do quão tarde estava. Ele se distraíra tentando não olhar para a Srta. Granger e se concentrar em qualquer outra coisa que só foi perceber que passava da meia noite quando viu o Bernard cochilando numa das cadeiras de plástico e o Matthew completamente desmaiado em outra.

Ao seu redor, ele viu as famílias começando a se dispersar com crianças no colo, e outros organizando a bagunça da festa. Olhando para a Valérie e para a Sra. Janet que pareciam exaustas, ele as forçou a ir embora para descansar prometendo que ficaria para terminar de limpar a praia.

— E você, Hermione, querida. Como vai embora? Meu filho vai nos deixar em casa e pegar o carro aqui amanhã, mas acho que ele pode fazer uma segunda viagem.

Hermione balançou a cabeça. – Está tudo bem, Sra. Janet, vou ajudar na limpeza também e peço uma carona para alguém. Não precisa se preocupar.

— Bem, não é como se aqui fosse um lugar perigoso mas nunca se sabe, não é? São tantos turistas, e o caminho também é longo. – ela insistiu, olhando abertamente para o Severo.

Hermione queria que o chão se abrisse para ela mergulhar.

— Claro, mas-

— Também acho que todos os carros estão cheios. – A Valérie interrompeu.

Severo se impediu de revirar de olhos, e antes que a discussão insana continuasse ele simplesmente disse.

— Eu vou deixar a Srta. Granger em casa. – e saiu, deixando as duas senhoras sorridentes e uma Hermione chocada para trás.

Os próximos trinta minutos foram de pura tensão para Hermione. Ela ainda se sentia zonza por conta do vinho, mas toda a coragem líquida estava indo embora. Nem em seus sonhos mais loucos ela conseguira se imaginar entrar em um carro onde ninguém menos que Severo Snape dirigia, e no litoral francês dentre todos os lugares. Seu coração batia rápido, suas mãos estavam suadas e ela mal conseguia respirar.

Tudo foi feito no modo automático. As garrafas de vinho foram colocadas em um grande saco preto, as comidas que sobraram foram guardadas e distribuídas entre as famílias que ficaram para ajudar, as mesas e cadeiras foram fechadas, e os carros começaram a sair um a um, até que eles foram os últimos e Hermione não tinha mais para onde fugir.

Ela sentiu a presença dele e estremeceu, fechando os braços ao redor do corpo. No momento em que ele passou por ela, fazendo um sinal para que caminhassem, Hermione imediatamente sentiu o corpo esquentar. Olhando surpresa para ele Hermione viu o rosto impassível de sempre, mas seus olhos não mentiam. Agradecendo a atenção dele por lançar um feitiço de aquecimento, ela murmurou um tímido “obrigada”.

Severo apenas deu de ombros, abrindo a porta da velha picape. – O verão mal acabou, mas o vento frio já é um indício do outono cortante que teremos pela frente.

Parte do caminho foi feito totalmente em silêncio, mas os olhos de Hermione insistiam em vagar pelas mãos dele no volante. Claro que ele era um motorista extremamente habilidoso, e ela estava quase se contorcendo de curiosidade para perguntar como, onde e quando ele aprendera a dirigir.

Ele pareceu notar, no entanto, e levantou a sobrancelha para ela. – Deixe-me adivinhar: você quer saber porque, ou como, o seu velho professor de poções está dirigindo um carro. Acertei?

Hermione corou. – Bem... não é comum, você tem que admitir.

— Sou um mestiço, Granger. Em algum momento foi inevitável.

Hermione pensou por um momento, decidindo que era melhor não forçar muito ou ele poderia escorregar para dentro de sua concha e desistir da conversa amigável que estavam tendo. – A última vez que entrei em um carro dirigido por um bruxo foi terrível. Eu juro, Ron deve ter confundido o examinador. Ele é desastroso.

Severo desviou os olhos rapidamente da estrada para olhar divertido para ela. – Pelo menos você chegou viva onde quer que tenham ido.

Hermione balançou a cabeça. – Não, eu o fiz parar no meio do caminho e aparatei o restante. Levando a chave do carro, claro.

Severo riu antes de perceber o que estava fazendo, e Hermione não escondeu o choque desta vez. A risada dele era baixa e rouca, e vinha de algum lugar muito profundo dele para escorregar por entre os lábios finos. Parecia a correnteza de um riacho no campo: leve por fora, poderosa por dentro. Desnecessário dizer que Hermione estava hipnotizada.

— Você foi sensata. – ele disse através de sua risada.

— Eu costumo ser. – Hermione cantarolou em resposta, sorrindo, enquanto recostava a cabeça no banco. Seus olhos percorriam a estrada e as árvores passando rápido, um movimento calmante para um dia cansativo. Depois, pensando melhor, ela completou baixinho. – Ou costumava.

Severo não perdeu as palavras baixas e a olhou com curiosidade. A luz do luar iluminava a pele dela, mostrando as várias sardas que pontilhavam o seu nariz como constelações numa noite de verão. Ele ponderou por vários minutos se devia falar algo ou deixar para lá, e quando finalmente havia se decidido ela havia adormecido. Bem ali, do lado dele. Essa mulher estranha e imprevisível, adorável além das medidas do aceitável, sua ex aluna, heroína de guerra, e todo o combo que gritava proibido e inatingível e errado.

E ainda assim ele não conseguia se livrar da sensação de que, por Merlin, parecia tão certo...

...

Severo parou o carro em frente a pousada e ficou olhando para a mulher adormecida ao lado dele. Hermione dormia profundamente, e ele teve a ligeira sensação que nem se um meteoro atingisse a terra ela acordaria. Ele abriu e bateu a porta do carro três vezes, mas ela apenas virou de lado e murmurou alguma coisa ininteligível em resposta. Severo suspirou, irritado, sem saber o que fazer.

— Srta. Granger. – ele chamou, cutucando-a de leve. – Srta. Granger – ele insistiu, mais alto.

Nada.

— Merda. – ele xingou, saindo do carro para abrir a porta do passageiro. Ele tentou novamente, inclinando o corpo para tocar o ombro direito dela enquanto a chamava pelo primeiro nome. Hermione abriu os olhos devagar, confusa.

— Feche a porta, Severo, está frio. – e voltou a dormir de novo.

Severo queria parecer chocado. Realmente queria. Mas só conseguiu rir. – Mesmo dormindo você é mandona.

Ele ponderou por um tempo sobre o que fazer, e quase resistiu ao impulso de usar magia para acordá-la ou levá-la ao quarto, mas sabia que seria muito arriscado e muito pouco atencioso. Ele a olhou por vários segundos, e como se a pele dela pudesse queimá-lo Severo tentou novamente acordá-la tocando-a com cuidado no ombro. Nada. Uma segunda vez: nada. Frustrado, ele xingou o vinho que ela bebera, depois a Valérie, depois a própria Hermione, a pobre Minerva, e então ele mesmo.

Por fim, ele a pegou no colo.

A rudeza de seus pensamentos era muito diferente da maneira como ele a carregava: suavemente e com cuidado. Ele lutou um pouco no começo para encontrar a posição certa, e quando finalmente conseguiu parecia que tudo nela fora feito para o corpo dele, e vice-versa. O rosto dela ficou perfeitamente encaixado na curvatura do pescoço, enquanto as mãos delicadas seguiam o instinto natural de abraçá-lo pela nuca. Severo usou magia sem varinha para ajeitar o vestido que havia subido alguns centímetros na perna esquerda, e caminhou silenciosamente para a pousada.

Ele agradeceu pela sorte que geralmente não possuía por todos estarem dormindo e perderem a cena dele carregando uma jovem para o quarto no colo, porque os boatos seriam terríveis e ele detestaria que a Hermione fosse alvo de fofoca. Ou ele, claro - pelo menos foi o que ele tentou se convencer, e isso vindo do homem que não poderia se importar menos com a opinião dos outros sobre si mesmo. Mas ele se agarrou firmemente a isso, porque se permitisse admitir que se preocupava com ela, seria como dar o primeiro passo para um caminho sem volta.

E cada passo sentindo a respiração suave dela na sua pele era como se o seu coração fosse sendo restaurado aos pouquinhos. Ele quase podia sentir os cacos subindo um a um, pequenos pedaços irregulares e pontiagudos, desgastados, encontrando seu caminho de volta para um peito até então vazio.

— Respira, Severo. – ele sussurrou para si mesmo, abrindo a porta do quarto indicado na chave. Suavemente, ele a colocou na cama, sob os lençóis brancos, e a ajudou a posicionar a cabeça no travesseiro. Em vão, ele resistiu ao impulso de colocar um cacho errante para trás da orelha. Seus dedos tremeram antes de tocar a mecha macia, mas foi mais forte. Ele não ousou tocar nos sapatos, no entanto. Com um toque na varinha e o par de sandálias levitou até o chão, ao lado da pequena cômoda branca, e Severo puxou a coberta para protegê-la do frio que já ameaçava irromper o ar litorâneo.

Ela murmurou alguma coisa que parecia com um agradecimento, e Severo assentiu dando alguns passos para trás a caminho da porta. Quando sua mão tocou a maçaneta, a voz suave o alcançou.

— Eu sabia que seria assim.

Ele franziu a testa, confuso, imaginando que tinha ouvido coisas. – O que disse?

— Que seria assim. – ela murmurou novamente, os olhos perdendo a batalha de se manterem abertos.

Se ele a respeitasse um pouco menos teria facilmente escorregado para dentro de sua mente sonolenta e descoberto o que ela queria dizer. Mas um lampejo de consciência o parou. Apesar de ter feito isso incontáveis vezes durante toda a sua vida, o fez porque precisava e não porque era assim. Ele fechou as mãos em punho e suspirou, resignado, caminhando novamente para a porta. Ele deu uma última olhada para a figura adormecida da bruxa que virara a sua vida de cabeça para baixo e saiu, fechando a porta atrás de si.

...


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Notas finais do capítulo

As coisas estão começando a ficar interessantes, hein?



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