Recomeços escrita por Sophia Snape


Capítulo 14
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Notas iniciais do capítulo

Bom, gente, tem sido dias difíceis. Para todos nós. Parece que vivemos em um pesadelo, e todos os dias tem sido de sobrevivência. O grupo SSF e as amizades que fiz por lá continuam me ajudando, assim como ler e escrever. Essa história, então, tem sido minha salvação.
Minha mãe foi diagnosticada com COVID esta semana e desde então tem sido uma loucura. Nos breves intervalos sentei e completei este capítulo, voltando e revisando, para me distrair. Espero que ele dê a vocês o mesmo escape que foi para mim. Boa leitura ♥



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Durante o percurso até a casa do Sr. e Sra. Bernard Hermione tentou evitar o pensamento do que acontecera no corredor da pousada, mas a mera presença dele tornava isso impossível. O toque dele ainda queimava na sua pele, e tudo que ela queria era sentir esse contato novamente. Mas não poderia acontecer. Seu coração vibrava com a possibilidade de que ele pudesse se sentir da mesma maneira, mas a sua mente, sempre racional, insistia na cautela. Ele nunca havia dado nenhuma indicação de interesse, e Hermione decidiu que era melhor assim.

— Granger.

Talvez eles tivessem finalmente construindo algo mais forte, mais duradouro, como uma amizade. E ela jamais se perdoaria se estragasse isso abrindo o seu coração. Tinha sido um percurso tão difícil até ali, para esse momento onde eles podiam trocar farpas amigáveis, piadas internas e uma camaradagem fácil. Não, ela não se faria de tola no caminho.

— Granger.

O que eles tinham ainda era muito frágil, e com um toque de luva poderia facilmente desmoronar. E então, onde ela estaria? Se apenas a imagem dele saindo da sua vida a fazia estremecer, por que ela arriscaria? Os pensamentos corriam na sua mente enquanto a paisagem mudava das adoráveis casas de pedra da vila para o mar azul e cristalino ao longo da estrada.

— Granger!

Hermione acordou do seu transe, assustada. Bem ao seu lado Severo a olhou de relance, antes de se virar para o caminho a sua frente.

— Sim?

— Estou chamando o seu nome a vários minutos. Onde você foi?

Você não faz ideia. Hermione pensou. – Eu poderia te dizer, mas teria que te matar depois.

Ela falou ao invés da verdade crua, tentando deixar o ambiente menos pesado. Ela pegou a sombra de um sorriso no canto da boca dele.

— Vamos deixar assim então.

Ele finalmente falou, mas Hermione quase podia escutar um por enquanto pairando no ar entre eles.

— O que você ia dizer?

— Ia perguntar se você preferia o atalho ou o caminho mais longo. Tomei a liberdade de me decidir por você.

— Nenhuma economia de tempo seria melhor do que essa vista. – Hermione murmurou em resposta, se perdendo na paisagem que passava pela janela. Era um daqueles dias gelados de outono, mas um céu azul claro que contrastava com o azul escuro do mar. Era maravilhoso.

Severo olhou para o rosto dela admirando a vista, e precisou apertar o volante com mais força quando o pensamento do quanto ela era bonita o atingiu. Ele já tinha percebido várias vezes antes, claro, para o seu total desespero. Mas agora ela parecia tão pacífica, tão pertencente àquele lugar... Como se ela nunca devesse estar em nenhum outro que não ao lado dele, numa manhã de domingo, aproveitando o dia como se nada mais existisse além deles. – Concordo. – disse, sua voz quase vacilante. Ele não estava olhando para o mar quando concordou.

— Oh, eu adoro essa música! – a voz doce dela o trouxe de volta para a estrada vazia que ele conhecia como a palma da mão. No rádio, começava a tocar baixinho Just Like Heaven.

Severo riu, e Hermione olhou para ele com a sobrancelha arqueada.

— O que?

— Uma britânica fã de The Cure? Que clichê.

Hermione fez um som indignado. – Seria patriótico da minha parte. Mas se quer saber, senhor, eu não sou britânica.

Severo a olhou, surpreso. Isso ele não esperava.

— Não?

— Uma coisa que você não sabe? Estou chocada. – ela provocou, aproveitando o momento.

Ele bufou, dando seta para a pequena e charmosa entrada a esquerda. – Pode se divertir à vontade. Não vai me falar de onde é?

— Na verdade, não. Vou aproveitar esse momento mais um pouco.

— Eu poderia usar técnicas sonserinas para te fazer falar.

— Você pode tentar. – ele virou a cabeça bem a tempo de pegá-la piscando para ele. Foi um gesto tão adorável, e ao mesmo tempo tão terrivelmente sexy, que o único pensamento na cabeça dele antes de estacionar o carro na frente de um chateou muito charmoso foi que ele estava, de fato, em algum lugar como o paraíso.

...

A casa - se é que poderia ser chamada assim - da Sra. Valérie e do Sr. Bernard lembrava muito a desordem gostosa dos Weasley. Eram quatro filhos, muitos sobrinhos, muitos primos, muito barulho, movimento. Vida. A risada do Sr. Bernard ecoava de algum cômodo distante e reverberava até a entrada, e Hermione imediatamente relaxou por se sentir em casa. A única diferença era que, ao contrário da casa simples da família que ela também chamava de sua, a que ela estava agora era muito elegante. Não era oponente e sem emoção como costumavam ser as mansões nesse nível, mas era linda. E o fato de ter tanta alma, tanta presença e personalidade, a tornavam única.

— Uau.

Severo acompanhou o olhar dela. Apesar de já ter estado ali várias vezes, sempre tinha essa mesma sensação de prazer quando passava da porta dupla de madeira e visualizava o hall.

— É realmente um pequeno chateaux.

Hermione estava boquiaberta. Era realmente lindo. Parecia que toda a casa tinha vida, e que a qualquer momento os móveis sairiam do lugar e começariam a cantar como num conto de fadas trouxa. – Eu não esperava isso.

Severo sorriu, colocando as mãos no bolso. – Eles são muito discretos, mas a Valérie vem de uma família muita rica. Não fala muito no assunto, mas parece que deixaram para ela de herança.

— Ela não tem irmãos?

Severo deu de ombros. – Não que eu saiba. Ela não dá muita abertura para falar sobre isso, então só posso presumir que é uma parte do passado que ela não quer falar sobre.

Hermione olhou para ele, sentindo nas suas palavras que era um conceito que ele entendia bem. – Entendo.

— Hermione! Achei que não chegariam mais!

— Sra. Valérie – Hermione sorriu, cumprimentando-a – Sua casa é incrível.

— Obrigada, querida. Já deixo aqui um convite eterno: sinta-se sempre muito bem-vinda. E você está linda, chéri! Não concorda, Severo?

— Bom dia para você também, Valérie. – ele se safou de responder, provocando-a.

— Ah, não seja ciumento. Você continua sendo o meu inglês favorito. – ela piscou para a Hermione, já sabendo da sua origem francesa.

Severo bufou. – Então você já sabia?

Hermione revirou os olhos. – Não é como se fosse um grande segredo, Severo. Está no meu currículo.

Ela percebeu que ele precisou usar cada gama do seu autocontrole para não desaparatar ali mesmo a conferir, e ela não poderia deixar de se divertir por essa pequena e inocente inversão de poder.

— O almoço vai ser servido em breve, mas os vinhos já estão circulando a uma hora. Severo, depois mostre a adega para a Hermione. Nós temos uma pequena produção de vinho aqui. Começou com o Bernard, por hobbie, e se tornou uma grande parte da vida dele.

A Sra. Valérie começou a contar a história da produção local do vinho, de como o Bernard havia chegado na plantação e fermentação perfeitos, e de como havia sido divertida a escolha do nome da adega. Também contou dos vários concursos que participaram ano após ano, não necessariamente para ver o vinho ganhar, mas para poderem se divertir viajando pela Europa.

— Severo, meu amigo! – Bernard os cumprimentou com entusiasmo quando chegaram na cozinha, que parecia ser o coração da casa.

Uma ilha enorme de projetava no centro, com a filha da Sra. Valérie, Louise, sentada no canto, a filhinha no colo, e o John ao lado dela. Nos pés dele, com a cabeça apoiada nos pés, um buldogue dormia profundamente. Haviam outras pessoas da vila também, que ela reconheceu rapidamente, e todos pareciam extremamente animados.

— E a belíssima Hermione ao lado. Um belo casal, hm?

— Bernard. – a Sra. Janet avisou, e Hermione sentiu o rosto esquentar – Não reparem, ele já está na quarta taça de vinho.

Hermione olhou para o rosto do Severo em busca de algum desconforto, mas ele apenas sorriu para o amigo. Era realmente impossível ficar bravo com o Sr. Bernard, especialmente quando ele parecia tão feliz e adorável, com um avental de flores que parecia muito apertado para a sua barriga proeminente, uma espátula na mão, e uma taça de vinho rosé na outra.

Todos riram da cena enquanto a conversa corria entre os grupos animados. Cada prato servido era uma obra de arte à parte, e o vinho partia na mesma velocidade que chegava. Vez ou outra os olhares de Hermione e Severo se cruzavam, mesmo quando estavam em lados opostos da enorme e aconchegante cozinha.

O clima de alegria caótica na casa ajudavam a Hermione a despistar as lembranças do que acontecera na pousada mais cedo, porque ela queria salvar o pensamento para mais tarde, para curti-lo na privacidade do seu quarto, onde ela poderia rolar na cama e passar a ponta dos dedos por onde ele a tocara, tentando preservar a sensação da pele dele na dela e-

— O que você acha, Hermione? – ela piscou ao ouvir a voz da Sra. Janet, que havia chegado um pouco mais tarde com a sobremesa.

Ela ergueu os olhos, percebendo que todos a olhavam em expectativa. – Sinto muito, minha mente voou por um momento.

— Estávamos falando sobre o Natal. Você vai ficar na vila ou voltará para a Inglaterra para as festas?

— Oh, ah... ainda não sei, na verdade. Estou pensando.

— Ah, você tem que ficar! – a Valérie insistiu, e todos concordaram com ela. O assunto começou a girar sobre como a vila ficava bonita enfeitada, e como os turistas amavam as decorações. Também contaram várias histórias de Natais e festas passadas, e até um episódio bastante divertido em que o Severo presenteara o Bernard com um presente no mínimo inusitado.

— A cara do Bernard! – alguém comentou, e várias risadas seguiram quando alguém resgatou a foto do momento exato em que o Bernard ganhava o que provavelmente seria o mais fofo filhote de buldogue francês do mundo.

Hermione pegou a foto, rindo da expressão de puro choque do pobre Bernard. No canto direito, quase escurecido nas sombras, o Severo observava a cena, um olhar inconfundível de malícia em seus olhos.

— Severo disse que nunca tinha visto um cachorro tão parecido com o dono. – a Valérie riu, e Hermione olhou para o bruxo do outro lado da cozinha, encostado no balcão.

Ele fez um gesto de rendição, balançando os ombros. – E era! Ainda é. Você adora esse cachorro, velho.

— A sorte dele é essa.

— Foi uma festa surpresa? – Hermione perguntou, entregando a foto para um Bernard sorridente.

— Para que uma festa seja surpresa – Severo comentou divertido, a voz arrastada pelo vinho – o aniversariante tem que deixar as pessoas fingirem que esqueceram do dia. O Bernard jamais deixaria isso acontecer.

Todos na mesa riram. – É verdade. Aquele homem é impossível. E o Severo aqui mantém o dele a sete chaves. Já tentamos de todas as maneiras descobrir, mas é impossível.

A conversa se dispersou entre os outros convidados, e a Sra. Valérie continuou o assunto com o pequeno grupo ao redor dela. – E o seu, Hermione? Quando vamos poder organizar a sua festa?

Hermione sorriu, sem graça, desejando que a pergunta não tivesse chegado até ela. – Foi em setembro.

— E você não disse nada? – todos que estavam mais próximos se viraram, chocados, e ela podia sentir o olhar de Severo queimando na direção dela.  

—  Bem, eu-

— Espera aí – a Sra. Janet interrompeu, como se tivesse tendo uma epifania – Aquele dia que você buscou dois cupcakes era o seu aniversário então?

Hermione estremeceu internamente.

— Bem, sim, mas...

— Oh, Hermione! Por que não disse nada? Teríamos adorado comemorar com você. Severo, você não sabia? – a voz da Sra. Janet foi de extremamente doce para profundamente desapontada.

Hermione tentou intervir. – Não tinha como ele saber. Além do mais, não gosto de muito barulho no meu aniversário.

— Claro que tinha como ele saber! Não está nos seus registros de funcionária, ou algo assim? – ela insistiu.

— Realmente, não é importante.

— Façamos assim – era o Sr. Bernard vindo ao seu resgate – quando o meu chegar, comemoremos juntos. Isso! Vai ser uma festa ainda maior!

A conversa seguiu novamente, acompanhada de música e risadas, e Hermione suspirou aliviada. Ela aproveitou a deixa para fugir um pouco para a varanda. Ela precisava colocar seus pensamentos no lugar e fugir da situação constrangedora.

Severo não era estúpido, e Hermione sabia que ele tinha percebido, com o comentário da Sra. Janet, que ela havia tentando comemorar de alguma forma com ele. Eles ainda não eram tão próximos, claro – o eufemismo do século – mas era a maneira dela de tentar acenar uma bandeira branca.

Mas naquele dia específico ele estava ainda mais distante, e ela mal tivera a chance de dar bom dia antes que ele se trancasse no escritório. Ela não o viu até que ele saiu para fechar a loja, resmungando um boa noite apressado antes de sair pela porta da frente, desaparecendo com os últimos raios de sol.  

Foi um dia difícil para ela. Sem a família, sem os amigos, sozinha num lugar desconhecido. Ela fechou os olhos tentando impedir que as lágrimas surgissem, apoiando as duas mãos na sacada enquanto inspirava o vento frio do início da tarde, uma mistura deliciosa de terra úmida, maresia e... Severo. Ela ofegou, sentindo a presença dele no ar. – Cuidado com o vinho, Granger. Isso não é um shot.

A voz grave causou arrepios na sua espinha, o sussurro tão próximo do seu ouvido que ela podia sentir o calor da rua respiração no pescoço. Mas ao contrário da última vez, Hermione apenas sorriu maliciosamente, entrando no jogo.

— Merlin, Snape! – ela ofegou falsamente, repetindo as mesmas palavras que dissera meses atrás – Você tem que se esgueirar assim? E eu sei o que estou fazendo.

Ela sorriu, e mesmo de costas para ele podia sentir que ele estava sorrindo também. – Só não espere que eu te carregue bêbada para a vila.

Hermione finalmente se virou para ele, cruzando os braços na frente do peito como se isso fosse protegê-la de parecer tão vulnerável na frente dele.

— Por que você não disse que era o seu aniversário? Acho que me lembro de ter visto um desses bolos minúsculos na mesa do laboratório.

Hermione deu de ombros. – Não faz mal, nós não éramos próximos na época.

— Eu fui horrível.

— Não, Severo, não importa. Não tinha como você saber, e mesmo se soubesse não tinha nenhuma obrigação de ficar em pé ao redor de uma vela e cantar feliz aniversário para mim.

Severo sorriu para a imagem que se formou na sua cabeça. – Eu poderia pelo menos ter sido mais cordial. Qualquer chefe teria no mínimo mandado um cartão. Dado um tapinha nas costas, talvez.

Hermione riu. – Bem, um daqueles croissants do Sr. Bernard não teria caído mal... – ela sugeriu, provocando, depois completou. – Não ligo muito para aniversários, de qualquer maneira. Não precisa ficar preocupado.

— Estou preocupado com a minha vida, Srta. Granger. Não viu como a Valérie me olhou?

Ela revirou os olhos. – Sempre um sonserino.

— É inevitável. – ele se desculpou, mas não havia o menor arrependimento em sua voz. – E acho que você gosta mais de aniversários do que deixa transparecer. Tenho certeza que você é a pessoa que organiza as festas surpresas, que compra o presente com um mês de antecedência, que anota a data até do parente distante mais chato, apenas para desejar um feliz dia. Estou certo?

— Para a sua satisfação, eu não sou a pessoa das festas surpresas. É a Gina. E eu não compro com um mês, mas com dois meses de antecedência. E, sim, eu anoto todas as datas. É um crime?

Ele riu. – Não, não é.

Hermione queria se perder naquele som. Queria fazê-lo rir várias vezes ao dia, provocá-lo, fazer parte de todos os seus sorrisos. Merlin. Ela não podia continuar assim.

— Por falar na sua amiga Weasley... – Severo começou, girando o corpo para ficar bem ao lado dela, seus ombros quase se tocando – ela esteve aqui na vila a alguns dias, certo?

Hermione suspirou. – Sim, esteve. Veio se certificar de que estava bem. Mas pode ficar tranquilo, ela e o Harry não vão contar para ninguém.

— Como ele descobriu onde eu estava? Sei que não foi a Minerva, ela respeitou meu pedido de manter segredo. E também sei que não foi você.

Hermione franziu a testa, curiosa. – Como você sabe? Logo quando cheguei essa foi a sua primeira preocupação. De que eu espalhasse para toda a Inglaterra o seu paradeiro.

— Eu realmente estava preocupado com isso, de que seria só uma questão de tempo para que a notícia de espalhasse e seria um dia de campo para toda a mídia bruxa. A vila logo estaria lotada de bruxos curiosos tentando saber mais sobre o meu passado.

— Mas e sobre o Harry?

Severo bufou. – Eu fui um espião por vários anos, Granger. Quase a vida toda. Sei quando estão procurando por mim. E o Potter é tão discreto quanto um grifinório pode ser. Foi pelo Ministério? Qual pista ele seguiu?

Hermione suspirou. – Eu realmente não sei. Você teria que perguntar a ele.

Ele a olhou longamente, como se estivesse analisando a veracidade nas suas palavras. E a verdade é que ela realmente não sabia.

— Mas posso te garantir uma coisa. – ela completou – O Harry só usou o privilégio do próprio nome duas vezes: a primeira, para saber onde você estava. A segunda, para que que ficasse assim, para que ninguém chegasse até você.

O corpo dele endureceu no mesmo segundo. – Você está dizendo que devo a Potter a minha paz?

— Não, não é isso. – ela rapidamente se corrigiu – Todos nós aqui sabemos que se você quisesse realmente ter sumido no mapa, teria feito exatamente isso e ninguém seria capaz de encontrá-lo. Não é como se você tivesse realmente feito um esforço nesse sentido.

Sua repreensão apaixonada e irritada o fez relaxar.

— É um elogio, Granger?

Ela sentiu as bochechas corarem, desviando o rosto para o chão de madeira da varanda. 

— Bem – Hermione ignorou, tentando fugir do escrutínio dele – como disse, você não precisa se preocupar. Eles não vão contar onde está. Nem eu, claro. Espero que saiba disso. – ela olhou para o rosto dele esperando transmitir o quanto estava sendo sincera. Ele pareceu entender quando sua cabeça acenou quase imperceptivelmente, e era todo o sinal de que Hermione precisava para saber que tinha a confiança dele.

Mas nada a havia preparado para a realmente ouvi-lo dizer estas palavras quando ele tocou o ombro dela, fazendo-a se virar e dizer: - Confio em você.

Hermione fora tomada por um sentimento ambíguo, felicidade e culpa duelando dentro dela quando as palavras da Gina imediatamente voltaram na sua cabeça.

Alguns segredos foram guardados por tempo suficiente.

Não o envolva mais sem antes contar a verdade.

— Eu- ela tentou dizer que ele podia confiar nela sobre isso, mas não sobre todo o resto. Que haviam mais coisas ali, coisas que ele precisava saber, que ela não estava sendo totalmente honesta, mas o medo que antes era de parecer ridícula, absurda, agora era de perdê-lo. De perder a amizade que estavam construindo.

De que ele nunca mais a perdoasse.

Antes era apenas uma omissão, algo que não afetava tanto a vida dele a ponto de ser importante saber. Agora era outra coisa.

Ao invés disso, ela simplesmente acenou, virando as costas enquanto murmurava. – Vamos entrar. Está ficando frio.

Hermione não olhou para trás quando fechou a porta de vidro atrás de si, mas poderia jurar que várias partes do seu coração haviam ficado pelo caminho enquanto ela percebia que essa outra coisa agora tinha nome: mentira.

...

O restante da tarde transcorrera deliciosamente. Aos poucos os convidados foram indo embora, e quando o céu já estava se pondo apenas o Severo e a Hermione estavam na cozinha ajudando a Valérie e o Bernard a organizar toda a bagunça da alegria caótica do almoço entre a família e amigos.

E agora, no carro, com o Severo ao lado dela, tudo que Hermione queria era prolongar o tempo, não ter que subir as escadas e se afastar dele. Rápido demais eles chegaram na pousada e Hermione teve que se despedir.

— Você está com aquele olhar. – Hermione comentou depois de soltar o cinto e colocar a mão na maçanete.

— Olhar? – ele fingiu que não sabia o que ela estava dizendo.

Hermione balançou a cabeça, virando o corpo no banco do carro para olhar para ele. – Você vai na Botica agora, não vai?

— E por que eu faria uma coisa dessas, Granger? – ele disse, fingindo descrença.

Ela deu de ombros, entrando no jogo. – Não sei, talvez para olhar alguns documentos?

— Bem, agora que você diz talvez seja necessário adiantar alguns papeis. Ou...

— Sim? – ela fez o possível para esconder o sorriso e parecer séria.

— Você poderia me tirar deste tormento e dizer.

Ela poderia, mas onde estaria a graça nisso. – Ou, eu poderia te fazer esperar até amanhã. Você não pensou que eu perderia a chance de provocá-lo, certo?

Sua voz está cheia de diversão. - Sabe, Granger, isso é muito sonserino de você.

Ela finalmente riu, jogando a cabeça para trás num gesto muito pouco feminino que absolutamente encantou o Severo. – Você é a segunda pessoa que me diz isso em menos de um mês. Talvez seja a convivência.

— Ou talvez o Chapéu Seletor tenha errado.

Os olhos de Hermione brilham com a possibilidade, e ela estava curiosa para perguntar se alguma vez ele realmente errou. Ela imediatamente se conteve, no entanto, tendo aprendido da maneira mais difícil que nem sempre sua curiosidade é bem vida e que na maioria das vezes é necessário contê-la para não importunar as outras pessoas. Especialmente ele.

— Você pode perguntar o que quer que a sua mente curiosa esteja pensando, Granger. Não me importo.

Hermione ofegou, assustada. – Merlin, eu sou tão transparente?

Severo não pode deixar de sentir uma pontada esquisita no coração com isso. A pergunta dela parecia tão inocente, sua expressão tão envergonhada. Hermione Granger era uma mistura enlouquecedora de força e vulnerabilidade, e Severo não queria nada mais que confortá-la naquele momento, dizer que ela poderia perguntar o que quisesse a cada maldito segundo se ela sentisse a necessidade.

— As vezes. Em alguns momentos consigo ler o seu rosto como um livro aberto, quase como se os seus pensamentos estivesses sendo projetados para fora. Em outros, no entanto...

Ele podia ver que por trás daqueles olhos castanhos haviam coisas não ditas, sofrimentos do que ela provavelmente passara na Guerra quanto nos anos que se seguiram. Severo queria insistir, queria perguntar, mas ele só poderia esperar que com o tempo ela confiasse nele o suficiente para desabafar.

— E para responder a sua pergunta não formulada: não existe nenhum registro de que o Chapéu Seletor tenha errado, embora ele faça uma classificação apenas superficial das nossas características. Somos humanos, Granger, complexos demais para sermos enquadrados. Embora...

— Embora?

— Você é a única pessoa que conheço que poderia tranquilamente estar nas quatro casas de Hogwarts. Coragem, inteligência, astúcia e o meu favorito: lealdade.

Hermione estava chocada. - Snape, quanto de vinho você bebeu?

Severo riu. – Apenas uma taça. Do contrário, não poderia te trazer em segurança para casa. E Merlin sabe o que eu ouviria do Bernard e da Valérie se deixasse alguma coisa acontecer com você.

Ela o olhou com carinho. – Eles adoram você. A Valérie só fala em você quando estamos sozinhas. Não precisa ficar com ciúme.

Ele bufou, prestes a responder quando ela o interrompeu suavemente. – E eu nunca imaginei que você teria qualquer coisa a ver com a Lufa-lufa.

— Eu nunca disse na do tipo. Mas é claro que apesar de todas as outras descrições – ele tomou o cuidado de não dizer qualidades— a grifinória em você certamente ganha.

— E o que exatamente há de tão grifinório em mim para isso?

— Agora, por exemplo, sobre onde nasceu. Você mudou de assunto como uma verdadeira grifinória.

— Era pra ser um elogio?

— Peço perdão, esqueci de acrescentar o grosseiramente. – ele colocou as mãos no peito numa demonstração fingida de arrependimento – Você mudou de assunto grosseiramente, como uma verdadeira grifinória.

— Homem impossível. – ela riu de leve, finalmente percebendo que não havia mais como adiar o inevitável ao se preparar para sair.

Ela estava prestes a desejar boa noite quando a mão dele tocou a sua, impedindo-a de abrir a porta do carro. O corpo todo dele estava totalmente inclinado sobre o dela, seus rostos quase se tocando.

— Já que você não vai me dizer, pelo menos seja cordial o suficiente para ir até lá comigo.

Hermione o olhou em choque, seu coração batendo forte no peito enquanto ela lutava para parecer minimamente coerente. – Você não pode estar falando sério. Snape, são sete horas da noite. De um domingo. Não pode esperar até amanhã?

Um sorriso tremulou no canto da boca dele antes do carro arrancar novamente, deixando a charmosa pousada para trás. – Não, não pode.

...

A botica estava estranhamente silenciosa sem o barulho dos caldeirões borbulhando, ou do Severo picando ingredientes, e até dela mesma arranhando pergaminho atrás de pergaminho com anotações rápidas e decididas de contratos, números e relatórios.

Severo a conduziu na escuridão da loja, sua mão espalmada respeitosamente no centro das costas, e o toque é tão reconfortante que Hermione podia sentir o seu calor mesmo através do material das roupas que estava usando.

Lummus. – ela o escuta murmurar enquanto se movimenta ao redor da loja, a caminho do interruptor, e Hermione espera encostada no balcão enquanto ele desaparece nos fundos.

Ela sorriu lembrando que eles estão ali porque ele mal pode conter a sua curiosidade por uma coisa que não tem a menor importância. É evidente que ele vivera praticamente toda a vida sabendo de todos os detalhes possíveis, do contrário, a guerra poderia ter acabado de maneiras diferentes. E em nenhuma dessas maneiras Hermione conseguia visualizar um mundo onde ela ou qualquer nascido trouxa pudesse existir.

Hermione tivera pesadelos recorrentes nesse sentido ao longo dos anos. Sonhava que a Guerra acabava e o Voldemort vencia, deixando todo o mundo bruxo na escuridão, na distopia de uma vida governada por um louco incompetente deixando milhares de vidas a mercê da sua sede vazia por poder. Ela sempre acordava em pânico, com uma sensação fria de medo descendo pela nuca, o coração acelerado e a boca seca. Era horrível. Demorou anos e incontáveis poções de sono sem sonhos para que ela conseguisse ter noites mais saudáveis.

Seus pensamentos sombrios foram interrompidos, no entanto, quando ela levantou os olhos e franziu a testa para o homem em pé a sua frente segurando um papel na mão esquerda, tentando discernir qual documento ele balançava com tanta empolgação. – Meu currículo?

— Você é francesa. – ele a ignorou, constatando o óbvio.

— Bem, sim. – ela tentou esconder um sorriso, divertida pelo quão empolgado ele parecia por mais que tentasse esconder.

— Francesa!

Hermione não aguentou e riu abertamente. – Por que isso é tão importante?

— Fiquei imaginando várias possibilidades e você é daqui, deste país.

— A França pode ser o seu lar, monsieur, mas é onde eu nasci.

— E em Paris, de todos os lugares.

Ela empinou o nariz, orgulhosa. – Como Simone de Beauvoir. Menos a parte de vir de uma família clássica parisiense, claro.

— E sem um relacionamento aberto com um filósofo existencialista, presumo.

Hermione deu de ombros, sorrindo com malícia. – Ainda não, mas quem sabe?

Ele bufou, e Hermione poderia jurar que havia um claro descontentamento no gesto desta vez.

...

O frio da brisa marítima os atingiu quanto os seus pés tocaram a areia úmida da praia, e Severo foi surpreendido pelo próprio gesto quando tirou o tecido pesado para colocar nas costas dela, demorando-se mais do que o necessário para se certificar de que não cairia dos ombros estreitos.

— Obrigada. – ela murmurou, o som doce da sua voz quase se perdendo no barulho das pequenas ondas quebrando na areia.

Severo não saberia exatamente o que aconteceu, ou como foram parar ali, mas estava claro, apesar do não-dito, que ambos estavam relutantes em encerrar o dia. Parecia que havia algo no ar, segurando-os, impedindo-os de seguir separados, embora fosse arriscado demais fazer qualquer movimento ou dizer em voz alta.

Ele não sabia, não entendia, exatamente o que estava acontecendo, e isso o deixava completamente louco. Severo estava acostumado a saber exatamente o que ele faria no minuto seguinte, e por mais que a sua estada na França nos últimos anos o tivesse deixado mais relaxado, menos preocupado com o futuro, ele ainda não gostava de saber que estava pisando no escuro.

E aquele território, para ele, apesar de colorido e satisfatório, ainda era completamente novo.

— Nasci na França. Em Paris, para ser exata, como você viu. – Hermione começou, e Severo a agradeceu mentalmente por isso, por distraí-lo de pensamentos perigosos que estavam ficando cada vez mais fixos na sua cabeça – Minha mãe era apaixonada pela cidade.

— Ela sempre foi muito apaixonada por tudo, na verdade. Conheceu meu pai enquanto ele fazia um curso de verão em Sorbonne. Ela o enfeitiçou, ele dizia. – Hermione sorriu com carinho – Ele era todo certinho, introspectivo, e ela era totalmente espontânea. Viveram um verão de muito amor e depois se separaram.

— O que aconteceu?

— Se reencontraram alguns anos depois, e se casaram. Em menos de um mês. Eu vim em seguida. Desde então passamos vários verões na França. Às vezes, andar por aqui, por essas ruas de pedra, ouvindo as pessoas conversarem, é como voltar para casa.

— Vocês ainda não se falam? – Severo perguntou, sabendo que estava entrando num assunto delicado.

— Como você sabe que não nos falamos? – ela parou, olhando para ele com desconfiança.

Severo retornou o seu olhar, depois indicou o caminho para que continuassem caminhando.

— Seu olhar ficou distante quando falou deles, uma saudade triste que não existiria se estivessem conversando normalmente.

— Hm. A coisa de ser fácil de ler, etc. – ela respondeu a contragosto.

— Você chegou a conversar com eles? – Severo perguntou, ignorando sua resposta mal-humorada. Não passou despercebido por ele que a pergunta a deixou desconfortável.

— Sim, claro. – ela respondeu na defensiva.

— E? – ele insistiu, ciente de que estava pisando em gelo fino.

— E o que? Eles ficaram decepcionados comigo, Snape. As pessoas não gostam de saber que tiveram suas memórias apagadas pela própria filha.

— Talvez se eles realmente entendessem, Hermione, poderia ser diferente. Conte a eles. Tudo. Não esconda nada. Diga as partes mais difíceis, o que poderia ter acontecido a eles se você não tivesse tomado essa decisão. Que eles seriam mortos e da maneira mais cruel possível. Que eles sofreriam e-

— Não diga mais nada, por favor. – ela falou, um som alto e estrangulado de puro desespero. Ela teve que se conter para não tampar os ouvidos como uma criança.

Severo parou e a segurou suavemente pelos braços, se arrependendo de ter tocado no assunto de uma maneira tão pouco cuidadosa. – Hermione.

Ela ofegou, desviando o rosto para não deixar transparecer os olhos cheios de lágrimas. – Eu sinto muito.

— Não – ele colocou as mãos em cada lado do rosto dela e enxugou as lágrimas com os polegares – eu é que peço desculpas. Não deveria ter tocado no assunto assim.

— Você está certo, eu deveria falar com eles. Mas só de pensar nessa conversa meu estômago vira do avesso.

— Faça no seu tempo. – ele a olhou profundamente, a luz das estrelas refletidas no seu olhos negros – Mas se puder, faça. Não há nada pior que situações mal resolvidas.

Ele segurou as mãos dela nas dele, reparando vagamente como eram pequenas. Depois, segurando com mais força, completou. – Por experiência própria.

...


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Notas finais do capítulo

Existem algumas coisinhas aqui para se prestar atenção. Just saying...

Comentários continuam sendo bem-vindos.



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