Problema complicado, solução simples escrita por Bianca Lupin Black


Capítulo 16
Capítulo 16




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Julie levantou, cutucando a costela de Luke com a ponta do pé.

“Bom dia!”

“Oi, eu acabei de chegar aqui... você é Deus?”

“Não fala assim, se não eu me apaixono.”

“Essa é a minha meta.”

O zumbi Luke se arrastou até a pia. Julie pegou o celular, esquecido desde que ela pedira o Uber para o The Late Hollywood Club. Flynn deixou mensagens com um certo teor de preocupação – mais com seu estado mental do que com sua segurança física.

“Estou morrendo de fome.”

Atravessar a grama e pedras de cimento custava dez passos normais ou oito passadas em dias em que o despertador não tocara. Pela conta feita por Julie ao abrir a porta da cozinha, só conseguiram chegar lá depois de dezesseis passos de bailarina.

“I got a spark in me…”

“Hands up if you can see…”

Os estalos da cafeteira e os chiados espaçados do bacon na frigideira garantiam o fundo instrumental para a cantoria de Reggie e Ray. Julie até se perguntou se Ray vira-os entrar mesmo ou se estava apenas reagindo como de costume à manhã de domingo.

“Como foi ontem?”, Carlos perguntou assim que chegou.

“Carinha, sua irmã é uma estrela”, Luke levantou a perna para se acomodar na banqueta.

“Eu sei, cabeção”, Carlos deu um peteleco na têmpora do rapaz ao lado dele. “Onde Alex está?”

“Na casa do namo...”, Reggie congelou no espaço e no tempo graças a um olhar bem frio de Julie, “Willie. Na casa do Willie.”

“Quer que eu pergunte quem é Willie, Reginald? Eu não vou cair nessa!”

“Reginald?!”, Ray indagou a um Reggie travado como um computador antigo.

“Eu não me orgulho, ok?”

A família compartilhou um momento gostoso, nutritivo – de certa forma –, barulhento e bagunçado. Um calor irradiante nasceu no peito de Reggie.

Refeições na casa Molina começaram por necessidade de sobrevivência e se mantiveram pelo hábito. Reggie amava sua casa, mas na cozinha bem mais iluminada e cheia de vários tipos de suprimentos e plantinhas, ele encontrava um pedacinho que faltava do qual ele quase nunca lembrava.

♫♫♫

Cortinas blecaute eram um ótimo investimento e a cama de Willie era maior do que parecia. Quando acordou, Alex estava sozinho no quarto. Pelo verso da foto de um jardim, descobriu que o anfitrião estava na cozinha, cuidando do café.

A casa térrea não permitia a entrada do sol tanto quanto necessário, luzes de LED faziam o trabalho duro de mostrar o caminho.

“Eu não sei o que você costuma comer, então fiz omelete, esquentei croissants e posso preparar cereal.”

“Vou pegar uma torrada e um destes croissants, só porque estão cheirando muito bem.”

“Como quiser, baterista barista.”

Palavras saiam sem esforço. Willie não se considerava um bom ouvinte – seus professores fizeram questão de deixar bem claro em todas as reuniões de pais. Mas era impossível ignorar as imagens criadas pela voz de Alex. Com os olhos de sua mente, ele visitou bares agraciados pela música da Sunset Curve – e particularmente pela presença do baterista, na opinião de Willie.

“Nossa, Luke vai me matar se eu não der sinal de vida."

“É o seu namorado?”, as bochechas de Willie caíram ao ver a foto do contato. “Ele é bonito.”

“Não, é o meu guitarrista. E você também é. Bonito, não guitarrista”, as faces de Alex ficaram vermelhas.

“O-obrigado.”

Alex caminhou até o portão enquanto os pratos escorriam no canto da pia.

“Aproveite o show”, Willie soltou sua mão.

“Eu volto para te ver, se você quiser.”

Willie faria pipoca e tiraria cobertores fáceis de lavar do armário para que eles assistissem dois filmes bons, uma série legal e dois filmes de terror ruins, assim ele poderia afundar o rosto no braço de Alex – e fazer um comentário sobre o perfume do rapaz – quando a música de suspense chegasse ao ápice.

“Até mais tarde, então.”

Despediram-se com beijos rápidos na bochecha. Os pés do skatista ficaram presos naquele ponto enquanto Alex subia a rua.

As camas de Reggie e Luke não tinham lençóis embolados nem corpos entre elas. Os instrumentos estavam nos lugares de costume no porão, deixados às pressas antes do jantar no The late Hollywood club. Panelas e gavetas intocadas desde a manhã de sábado.

A porta da frente dos Molina recebeu quatro murros pouco antes de Luke abrir.

“Custava me dizer que estavam aqui?”

“Você também não avisou que passaria a noite com Willie.”

“Eu fui o único que dormiu em casa ontem?”, Reggie cruzou os braços.

Se havia alguma tensão por ali, foi embora andando de patins.

“Pegaram tudo? Vamos nessa!”

No banco de trás, Julie estendeu a mão para Luke. Os olhos dele aumentavam de tamanho em viagens de carro. Ele falou sobre as canções, sobre a energia que compartilhariam com o público. Os dedos não se controlavam durante o discurso, apontando pata pessoas que ninguém podia ver ainda e acenando para elas.

Luke exalava amor à arte por todos os poros nos dias em que tocava mais nas xícaras do que na guitarra. Quando estavam prestes a se apresentar, fosse num bar, festa de escola ou vídeo, cada respiração dele poderia desenvolver uma performance à altura do Grammy. Seus pés estavam arqueados tal qual os de um bailarino de elite.

Um murmúrio baixinho ganhava o mundo. Alex batucava na perna dobrada no joelho. Reggie descia o dedo pela timeline do Twitter, balançando a cabeça no ritmo. Julie acariciava o braço de Luke, presa naquele momentum, longe do início, mas não muito perto do fim.

A porta dupla fosca com as iniciais da proprietária protegia os últimos momentos da Sunset Curve dentro do carro.

Lâmpadas fluorescentes eram empunhadas como sabres de luz a cada um metro e meio, mesas redondas cobertas de tecido marselha circundavam a pista de dança e flores adornavam vasinhos de vidro.

Rodopiando sobre o palco com seu vestido florido, Julie montou os pedestais e aqueceu a voz. As fotos espalhadas socavam o estômago de Luke sem dó. Seu olhar cruzou o caminho dela por um momento. O sorriso desferia um golpe no coração dele.

Não poderia falhar com ela, de forma alguma. Sabe-se lá o que ela teve que fazer para arranjar-lhes um cachê tão alto. Ele só precisava de um minuto ou dois para se acalmar. Largou a guitarra no suporte e correu.

Encontrou esconderijo no banheiro. Lágrimas grandes e grossas escorriam por seu rosto. Ele jamais lembraria, embora fizesse muito sentido. Como esquecera disso?

“Ei, irmão...”

Luke agarrou a camiseta de Reggie e desmoronou. Já não sabia há quanto tempo estava ali, mas seus olhos ardiam bastante.

“Cadê a Julie?”

“Lá fora. Quer que eu a chame?”

Luke negou com a cabeça, pedindo por Alex. Assim que uma camiseta rosa com a pochete pendurada foram vislumbradas, os soluços ficaram mais fortes.

“Vamos para casa.”

“Eu não vou deixá-los me impedirem de fazer o que amo”, ele levantou a cabeça e secou o rosto. “E ainda serei pago por isso.”

Passar três horas e meia tocando as músicas selecionadas por Mitch foi a parte fácil. Metade dos convidados tinha partido e a outra aguardava para dar as felicitações ao casal.

“Podia ter contado.”

“Do que está falando?”

“Eles”, Reggie apontou, “são os pais do Luke.”

“Eis a sua chance!”, Julie encarou Luke. “Fale com eles.”

“Não estou pronto.”

“Mas a sua música está.”

“Só para constar: estou bravo com você.”

“Conversem em casa, por favor”, Alex pediu. “Acho que ninguém vai brigar se você furar a fila.”

Emily dispensou um casal de vizinhos com um aperto de mão e avançou até a banda. Alex e Reggie saíram no melhor estilo à francesa, levando Julie junto.

“Apesar de tudo, é reconfortante saber que os meninos ainda estão com você”, Emily disse.

Luke manteve a boca fechada. A Emily maternal, que assava brownies para Luke dividir com os amigos e o recebia com um abraço depois das excursões escolares, dormia, aquecida pela pele coberta de joias e tecidos finos.

Ele a abraçaria, mas se limitou a torcer as mãos sem parar.

“Vamos para casa, filho?”, Mitch convidou.

Uma noite não faria mal, ele pensou, seguindo os pais como o filho pré-adolescente desengonçado. Ainda bem que sua guitarra foi levada em segurança para o porão. Se não, aconteceria um déjà vu grande demais.

Requentaram a comida chinesa da véspera, um hábito comum depois de eventos importantes, mas com pouca comida.

“Como estão as coisas?”

“Excelentes. E por aqui? Já alugaram o meu quarto?”

Emily abaixou a cabeça, rindo da lembrança daquela piada recorrente, mas parou.

“Desculpe por dizer aquilo tantas vezes. Afastá-lo não era a minha intenção.”

“Garanto que a ‘brincadeira’ de me expulsar, vender minhas coisas e alugar meu quarto não teve nada a ver com a minha decisão de ir embora. Era só algo que eu precisava fazer.”

Mastigação, suspiros e resmungos esporádicos. Um típico jantar arruinado por uma notícia ruim, nota baixa ou discussão. O Luke de doze anos saberia como agir: gritar, falar palavrões, ser repreendido por usar “um linguajar tão baixo” dentro de casa e ser mandado para o quarto quando já tinha alcançado a escada.

Sozinho, ele choraria contra o travesseiro, escreveria algumas letras, mandaria mensagens para a Sunset Curve – com o nome que tivesse na época –, e se estivesse sentindo-se ousado o bastante, ligaria o amplificador no máximo para praticar. Caso não, ele abriria um caderno e rabiscaria o dever de casa.

Aos dezoito, Luke não fazia ideia do que fazer. Seu quarto de verdade não tinha uma escrivaninha e estava há uma hora e meia de distância. No porão, ele podia tocar guitarra no volume que quisesse, quando tivesse vontade.

Algo apertou a parte superior de sua mão. Mitch sorria para o filho. O filho sorriu de volta.

“Você tem planos para o Dia de Ação de Graças? A vovó vem para a cidade, convidamos a família toda para jantar.”

“Nós... não contamos para ninguém que você se mudou”, o homem acrescentou.

“Imagino que a tia Jess tenha mencionado como gostaria de me ver”, Luke cruzou os dedos abaixo do queixo. Emily assentiu.

“Se vocês já tiverem compromissos, tudo bem”, ela levantou o olhar. “Mas não vai ser a mesma coisa sem você.”

“Nós combinamos de jantar na casa da Julie.”

“Isso é o que você vai realmente fazer ou é o que quer que usemos como desculpa?”

“É o que vamos fazer de verdade. Eu mando uma foto, se for ajudar”, ele teve que morder a carne da bochecha para não responder “tanto faz”.

“Faça como quiser.”

Emily se levantou. A pia era mais interessante do que a situação. Mitch girou o pulso. Parecia um boneco quebra-nozes de cinquenta anos de idade.

“Vai dormir aqui?”

Ninguém ia perceber se ele afanasse uma muda do próprio guarda-roupas, mas a máquina de expresso ia trabalhar como nunca antes.

A garoa não o impediu de chegar na hora certa, sempre depois de Shelby e antes de Maisie, com Alex ao seu lado. Shelby era a única pessoa presente quando o sininho anunciou a entrada de Luke.

Ele puxou um pano de prato. Quando o último copo passou pela higienização recomendada pela vigilância sanitária, eles passaram para a arrumação do caixa.

“Então, Luke”, ela amarrou um pacote de moedas de dez centavos, “o que vai fazer no fim de semana?”


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