Coletânea Optimus: Perpective escrita por Jor Trindade


Capítulo 2
I.


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem. Comentários e críticas são sempre bem-vindos!



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Os primeiros raios de sol da alvorada irrompiam através da persiana que recobria a janela em estilo georgiano, a qual permanecera aberta durante toda a sufocante madrugada de janeiro. Os pássaros sobrevoavam a cidade tranquila, entoando cânticos que anunciavam o início de um novo dia.

 

Cibele levantou-se em um rompante, o tilintar agudo do despertador reverberando pelo apartamento. A jovem mulher empertigou-se sobre a cama e lançou os braços para o alto, alongando-os. Havia tido uma péssima noite de sono. Levantou-se ao menos três vezes durante a madrugada para assaltar a geladeira. Quando ficava ansiosa da maneira como estava na noite anterior, sempre acabava descontando na comida, o que explicava as dobras de pele sob as axilas e o abdômen proeminente. Uma dor latente afligia a sua têmpora, e os olhos âmbar de Cibele pestanejavam, tentando se ajustar à luz. 

 

A jovem mulher apanhou o celular que jazia na cômoda e enviou uma mensagem de bom dia para a mãe. Havia cinco anos que morava sem a companhia de Dona Geórgia, desde que ingressara na faculdade de Letras e conquistara um emprego. Amava a mãe mais do que qualquer outra coisa no mundo e sempre fora muito apegada, mas sabia que precisava conquistar a sua independência. Além do mais, Dona Georgia morava em uma cidade do interior com pouco mais de quinze mil habitantes, o que não oferecia muitas perspectivas. De qualquer forma, elas estavam separadas por apenas alguns quilômetros, e Cibele sabia que podia correr para a casa da mãe caso estivesse em apuros. Uma dívida de mais de cinco mil era motivo suficiente para clamar por Dona Geórgia, mas Cibele estava determinada a não importunar a mãe com os seus problemas financeiros.

 

Cibele bocejou, atirou as cobertas para o lado e foi até a cozinha. Bateu os ingredientes de um suco verde que havia aprendido na internet e deixou a bebida resfriando na geladeira enquanto se banhava. Saiu do box com uma toalha envolvida em torno do corpo e revirou o guarda-roupas em busca dos trajes de academia. Arrumou o cabelo num coque bem firme e bebeu o suco que havia preparado num gole só. Apanhou o monitor cardíaco que jazia na bancada da cozinha, colocou-o no pulso e saiu rumo àquela manhã quente de janeiro, sentindo o ar abafado chicotear seu rosto. Tomou todo o cuidado, caminhando pé ante pé, quando passou em frente ao apartamento da síndica. Queria manter a discrição, uma vez que também estava devendo alguns meses do condomínio. 

 

Corredora matinal, Cibele percorria seis quilômetros ao longo do parque municipal, o que rendia três voltas em torno de todo o perímetro. Depois de quinhentos metros, ela conseguiu desenvolver boa velocidade, e as pernas longas reluziam por causa do suor. Depois de correr por mais ou menos uma hora, Cibele adentrou a padaria onde costumava tomar café todas as manhãs, a única opção disponível no bairro que oferecia refeições low carb e veganas. Escolheu a mesa de sempre, nos fundos do recinto, próxima da janela, e não demorou para que Angélica viesse atendê-la exibindo o sorriso mais amistoso do mundo. Cibele havia nutrido em segredo uma paixão platônica por Angélica durante algum tempo, mas esse fora um assunto engavetado, e agora as duas eram boas amigas. 

 

— Bom dia, Cib! — exclamou Angélica, apanhando um bloco de notas de dentro do avental customizado com a logomarca da padaria. — Vai querer o mesmo de sempre?

 

— Um sanduíche de peito de peru e aquele cafezinho no capricho, por favor — Cibele instruiu, lançando uma piscadela para a amiga.

 

— É pra já. — Angélica rabiscou qualquer coisa no bloco de notas e voltou para dentro do balcão. 

 

Enquanto aguardava o pedido, Cibele passou os olhos pelo local. Pequeno e acolhedor, o café era todo revestido por cerejeira, desde os rodapés até as vigas do teto, as quais davam suporte para os spots de luz. A decoração tinha um toque minimalista, baseada em tons de verde e preto. A mulher ficara sabendo por Angélica que todo o mobiliário fora feito com madeira de demolição, uma vez que o dono era adepto do conceito “eco-friendly”. Algumas paredes internas receberam tinta especial que permitia aos frequentadores desenharem ou escreverem com giz, portanto o recinto estava repleto de assinaturas e frases motivacionais. Um balcão de mogno acompanhava uma das parede laterais, e detrás dele o aroma de café e canela tomava conta do ar. 

 

Cibele teve os devaneios interrompidos quando Angélica postou-se diante de sua mesa com um bandeja apoiada no antebraço e depositou o sanduíche e o macchiato sobre a madeira com cautela. A mulher agradeceu com um gesto de cabeça, porém contemplou a amiga com uma expressão contrariada quando viu que ela permanecia ali, observando-a com afinco.  

 

— Eu conheço você o suficiente para saber que alguma coisa está errada — argumentou Angélica num murmúrio. — Sua testa vincada e essas olheiras fundas não me enganam.

 

A amiga puxou uma cadeira de frente para Cibele e se acomodou, ignorando os olhares acusatórios dos demais funcionários. Envolveu as mãos de Cibele entre as suas e encarou a amiga com olhos suplicantes. 

 

 — Espero que saiba que, o que quer que seja que esteja acontecendo, você pode me contar.

 

Cibele suspirou.

 

— Problemas com grana — a mulher murmurou num fio de voz, como se estivesse confessando um segredo. — Basicamente, o mesmo de sempre. Estou investindo na minha pós-graduação, que, por ser semi-presencial, me rende também algum gasto com transporte no fim do mês. Não me sobra o suficiente para o aluguel, e já não consigo mais pagar as próprias contas.   

 

Angélica meneou a cabeça em concordância, compreensiva.

 

— Por que você não volta a morar com a sua mãe? — indagou a amiga, inocentemente.

 

— Não, não posso — Cibele negou com veemência. — Eu demorei muito tempo para conquistar a minha independência e para provar para o meu pai que eu era capaz. Não posso voltar pra lá.  

 

Cibele havia tido uma relação bastante conturbada com o falecido pai. Antônio era alcóolatra, e a jovem mulher sofrera constantes abusos. Nunca havia sofrido violência física de fato, mas todo o assédio psicológico com que convivera durante anos a havia desestruturado para toda uma vida. Antônio costumava menosprezá-la e fazê-la se sentir insuficiente. E, mesmo depois de o pai ter falecido vítima de um câncer no fígado, Cibele prometera a si mesma que provaria para ele - e principalmente para si mesma - que seria capaz de resolver os seus próprios problemas sem depender de mais ninguém. Odiava admitir, mas Cibele se sentia extremamente aliviada depois que Antônio viera a falecer.

 

Angélica continuava a encarando, analisando a sua expressão como um perito e compartilhando a sua dor. 

 

— Acho que eu tenho uma coisa que pode te ajudar.

 

— Sério? — Cibele inquiriu efusiva.

 

Angélica deixou a mesa em silêncio e caminhou de volta para dentro do balcão.  Não demorou para que a garota voltasse com uma bolsa em mãos. Acomodou-a sobre a mesa e revirou entre os seus pertences. Do fundo do acessório, apanhou um cartão de visitas e entregou-o para Cibele. Parecia um cartão comum, feito de papel serrilhado. Porém, a mulher teve um sobressalto quando as ilustrações do cartão passaram a se mover diante dos seus olhos, como em um GIF. A imagem revelava o perfil da cabeça de um robô antropomórfico, de onde partiam alguns eletrodos. O andróide olhava para a frente e acenava de maneira tão humanizada que fez com que Cibele sentisse um arrepio na nuca. Passado o assombro, a mulher examinou o verso do cartão, onde constava a logomarca da empresa, Optimus, em letras garrafais, seguido de um endereço de website, e nada mais. 

 

 — Eu fui a um evento geek nesse fim de semana, e havia um stand da Optimus distribuindo esses cartões — explicou Angélica, pacientemente. — Era um stand super tecnológico e inovador. Acho que você pode ter uma ideia pelo cartão, nunca vi uma coisa assim em toda a minha vida. Eles inclusive fizeram algumas apresentações no palco principal com um robô humanoide que respondia às perguntas da plateia. Eu assisti a alguns minutos do show, e era simplesmente hipnotizante.  

 

Cibele assentiu com a cabeça, porém sem compreender. Deu uma mordiscada no sanduíche antes de indagar:

 

— Ok, toda essa parafernalha de alta tecnologia é fantástica, mas como isso vai me ajudar? 

 

— Ah, sim, é nisso que eu queria chegar. Eu não sei exatamente de todos os detalhes, uma vez que não entrei no link sugerido pelo cartão. Mas, pelo que eu entendi, a Optimus está recrutando voluntários para testarem o protótipo de um novo aparelho desenvolvido pela empresa. Sei que pode soar estranho, até porque sou extremamente leiga no assunto, mas me parece que o aparelho permite fazer previsões sobre o futuro. 

 

Cibele não conseguiu conter um riso que saiu estrangulado do fundo da garganta. Cib era uma mulher de opinião forte. Ela se julgava uma pessoa visionária, mas, por outro lado, acreditava fielmente que existiam limites para a inovação, e que algumas questões jamais seriam alcançadas pela compreensão humana. Acreditava, por exemplo, que uma máquina como o DeLorean ficaria para sempre restrita aos limites da ficção. Diante disso, a explicação de Angélica lhe parecia simplesmente inconcebível. 

 

— Eu sei, eu sei, isso parece ridículo — argumentou a amiga. — Eu assumi a mesma postura incrédula quando me apresentaram o projeto. Mas, depois do que vi naquele show, aquele robô estranhamente humano, eu sou capaz de acreditar em qualquer coisa. Mas, enfim, achei que isso pudesse te interessar porque estão oferecendo uma quantia gorda em dinheiro para quem se voluntariar. Eu, inclusive, pensei a respeito, e participaria se já não estivesse atolada em trabalho.

 

Cibele contemplou o cartão em suas mãos, hesitante. Observou o andróide fitá-la diretamente nos olhos e sentiu o mesmo frio na barriga de antes. Torceu o nariz. 

 

— Angie, eu agradeço muito — Cibele disse genuinamente, oferecendo o papel de volta à amiga. — Mas não sei se é exatamente isso que eu precisava.

 

— Olha, Cib, não precisa me dar satisfações — interrompeu Angélica, recusando o cartão através de um gesto com a mão espalmada. — Só quero que fique com o cartão e pense à respeito, está bem? Agora, preciso voltar ao trabalho, senão vou acordar amanhã sem ter um emprego.

 

Obedecendo às instruções da amiga, Cibele colocou o cartão dentro do bolso do corta-vento. Certamente, pretendia jogá-lo fora assim que chegasse em casa, mas o fez mesmo assim. Com isso, Angélica deu as costas para a amiga e voltou novamente para trás do balcão.  


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