Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 2
Fazia 30 graus quando a sua sombra tocou minhas mãos


Notas iniciais do capítulo

Foi muito divertido escrever esse capítulo, espero que vocês se divirtam lendo também!

Obrigada ao Higs que revisou, aos lindinhos que têm interagido comigo lá no twitter e aos comentários que vocês deixaram no último capítulo. Eu tinha me esquecido o quanto é legal se dedicar a algo que faz diferença (nem que seja pequena) no dia de alguém.

Assim que puder, vou responder todos os comentários, tá bem?

O link da playlist do capítulo tá lá no meu tt: wtfapus

Boa leitura!



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Quando se está no meio de uma grande mudança, os dois piores momentos do dia são o Antes de Dormir e o Depois de Acordar. Entre eles, é relativamente fácil se deixar levar pelas coisas como elas estão. Principalmente para alguém que, como eu, quase nunca vai contra a correnteza. 

Desde o momento em que eu soube que precisaria trocar a vida pacata em Constância, minha cidade natal, por uma nova em Alto Norte, também comecei a me perguntar porque parecia tão difícil fechar os olhos com calma antes de dormir, ou porque havia se tornado um desafio físico acordar com a mesma energia pacífica de todos os dias. 

Às noites, quando o interruptor da introspecção se ligava, minha mente dava voltas nela mesma. Eu olhava para o escuro do meu quarto e o escuro olhava de volta para mim. Eu tentava sentir o cheiro do amaciante de sempre e a textura do meu travesseiro velho, como uma daquelas crianças que não conseguem dormir sem o paninho-amigo. 

Nessas horas, todo o tipo de memória flutuava por trás das pálpebras cada vez que eu perdia para o cansaço e fechava os olhos. As doces, as amargas e, numa mistura de sonho e realidade, aquelas memórias inventadas de respostas que eu nunca dei, atitudes que eu nunca tomei, um aniversário triste, os olhos da mamãe…

Então o sono vinha e apagava tudo. Com pesadelos ou sonhos, tanto fazia: era bom se subtrair na inconsciência. Mas, então, quando o despertador tocava, a realidade vinha como uma prisão sem fuga. Sou eu e a vida.

A primeira coisa que fiz, depois de desligar o despertador, foi me perguntar onde é que eu estava. O teto era diferente, sem meus adesivos de planetas e estrelas que brilhavam no escuro. O cheiro também era diferente: lençol novo e tinta de parede.

Me senti vazio. Era como se minha antiga casa sequer existisse nessa nova realidade. Virei de lado, debaixo das cobertas, sem vontade de levantar da cama. Com a bochecha espremida contra o travesseiro e os cabelos compridos sobre os olhos, deixei a minha mente livre para a saudade tomá-la de canudinho.

Mas foi um pouco estranho. Não era como se eu sentisse falta da escola. Nem dos aniversários melancólicos em que o meu pai se lembrava da minha mãe, mas ainda assim se recusava a tocar no nome dela.

Os momentos que realmente beiravam a felicidade estavam nas férias que eu passava na casa da vovó, no interior. Ou nas cores pastel que eu espremia na tela de um novo quadro de pôr-do-sol.  Esse tipo de coisa não estava de mudança. Eu continuaria pintando novos céus. Continuaria visitando a vovó no verão de fim de ano. Mesmo que já não fosse mais apenas meu pai e eu.

Talvez, a minha única saudade estivesse mesmo na familiaridade certeira de dizer “vamos pra casa” sentindo que casa é lar. 

Minha antiga cidade, Constância, era mesmo bem parada. E eu gostava disso. Eu tinha uma padaria preferida e, quase todas às tardes, andava de bicicleta até lá para comprar pão e carolinas com recheio de doce de leite. 

Nos finais de semana, eu geralmente tirava um cochilo sob o telhadinho da casa da árvore no quintal, fugindo das saídas em grupo que o Matheus inventava. E, nos dias de semana, a escola era só mais um capítulo entre as páginas dos livros nos quais eu vivia com a cara enfiada. 

Cada pequena memória era como uma bolha de sabão, flutuando antes de estourar.

Esfregando os olhos ainda cobertos de sono, sentei na borda da cama e olhei meio aturdido ao redor. Tudo era branco e novo, como papel sulfite ou uma tela sem uma ideia. Ainda assim, era o meu quarto. Com o tempo e algum trabalho, eu o daria novas cores e o faria o melhor de todos os lugares para sentir medo.

Suspirei, procurando meu celular entre as cobertas. Desbloqueei a tela e vi que o Matheus havia me enviado dois Snaps. Abri o primeiro, da noite anterior, com a legenda “boa noite luquinha” em uma foto cômica, na qual ele tinha juntado os dois pés na tentativa de formar um coração, como uma pessoa normal teria feito com as mãos. Eu até daria risada se eu não tivesse reparado que, no fundo, a TV mostrava um episódio do anime que sempre víamos juntos.

“Não acredito que tá assistindo sem mim” digitei, mas apaguei logo depois. Como cobrar um negócio desses depois de me mudar para tão longe?

O segundo Snap, de alguns minutos atrás, era um vídeo do Matheus e o que costumava ser o nosso grupo de amigos tomando café com pão de queijo na padaria em frente à escola. Era quase uma tradição fazermos isso todos os dias antes das aulas, e eu não achava que esse era um momento tão especial até vê-los ali, abraçados pela mesma rotina.

“Hoje é o primeiro dia de aula do Luca” a voz do Matheus soou enquanto ele mirava a câmera no grupinho conversando, todos os olhos se voltaram para ele. “Deem boa sorte pra ele”.

“Luca! Boa sor...”. 

Antes que eu terminasse de ouvir, bloqueei a tela e joguei o celular de volta para as cobertas. Abracei os joelhos e respirei fundo. Por muito tempo, eu havia sido passivo sobre o fato de que os meus amigos da escola eram, na verdade, só amigos do Matheus. 

No começo, tentei acreditar que era só a minha alta capacidade de me fazer de vítima.  Então, tentei fazer parte do que, de repente, Matheus queria que eu fizesse. Mas tentar me sentir parte daquela panelinha era como sair correndo atrás da lua. Aos poucos, percebi que o problema não era minha timidez exagerada. Pelo menos não só isso.

Para aquelas pessoas, me ter por perto era só uma condição chata para que eles pudessem continuar sendo amigos do Matheus. Entendi isso quando precisei passar pelo que eu chamei de A Semana Da Verdade, na sétima série. Matheus estava de molho em casa por causa de uma intoxicação alimentar graças a um espetinho de abacaxi assado do Paraíso das Águas, um parque aquático duvidoso para onde a escola tinha arrastado dois ônibus cheios de adolescentes de maiô e bermuda.

Enquanto Matheus enfrentava a grande tristeza de ficar doente no verão, eu precisei encarar algo pior na escola. Todas aquelas pessoas que se diziam meus amigos simplesmente ignoraram a minha existência. Sem Matheus, sem Luca. E eu me vi outra vez entrando em pânico por causa do sentimento de abandono. 

Sempre que esse sentimento me derrubava, o rosto acirrado e colérico do meu avô me aparecia como uma visão assombrada. Ele gostava de lembrar, desde sempre, que se eu continuasse “agindo como uma garota”, ninguém iria gostar de mim. Esse pensamento me perseguia como um fantasma. Não era como se eu acreditasse, mas, ao mesmo tempo, eu não tinha provas o suficiente para duvidar.

No fim das contas, A Semana Da Verdade me ensinou que, 1) chorar sozinho na cabine do banheiro não acontece só em filme de bullying da Sessão da Tarde e que, 2) na maioria das vezes, a indiferença pode ser tão cruel quanto o maltrato.

Fui covarde e nunca contei o que houve ao Matheus. Eu sempre tive medo de demonstrar qualquer tipo de sentimento mais profundo que a decepção pela morte de um personagem fictício. Como se ser eu mesmo me pusesse em exposição direta ao abandono. Matheus costumava me entender mesmo sem que eu dissesse muito (e foi por isso que ele esteve na minha vida desde sempre e muito naturalmente), mas, naquela ocasião, eu tive uma semana inteira para evitar que ele visse meu rosto triste.

Eu não queria perdê-lo e, no desespero de um garoto de 13 anos que já tinha sido abandonado pela mãe e pelos amigos, fingi que estava tudo bem quando ele apareceu na escola na semana seguinte. Todo mundo fingiu. Foi como um contrato silencioso. E, de algum modo esquisito, crescemos todos juntos. Os falsos, eu e Matheus. Eu só ficava na minha e acompanhava meu melhor amigo para onde ele quisesse que fôssemos. Era difícil dizer não para ele. Para qualquer um. E quando eu não aguentava a pressão, só me escondia. Desligava o celular, me enfiava na casa da árvore com um livro e um pacote de bolacha recheada.

Eu sabia que deixar Constância tinha me salvado de algumas coisas. Mas ainda assim é difícil quando você já está acostumado com as coisas do jeito que estão. É um salto no escuro: da mesma forma que as coisas podem melhorar, elas podem terminar de tirar a sua sanidade.

De mau humor, tirei os cabelos do rosto. Procurei um elástico na minha mesinha de cabeceira improvisada (era a caixa Coisas Pequenas) e, depois de prender aquela cabeleira, peguei uma toalha em uma das malas. Todo movimento, por menor que fosse, fazia eco no quarto vazio.

Ziguezagueei ainda grogue de sono porta afora, piscando os olhos com força para me acostumar com a claridade. A chuva de ontem parecia ter dado lugar ao sol, que entrava pelas frestas das persianas do corredor. 

Meu corpo doía como se eu tivesse corrido uma maratona. Meus braços estavam duas marias-moles por terem arrastado tantas caixas. 

Senti cheiro de café fresco vindo do andar de baixo, e isso quase me deixou de bom humor outra vez, não fosse eu ter encontrado a porta do banheiro trancada ao testar a maçaneta. Por um segundo, eu tinha me esquecido de que agora dividia a casa com duas outras pessoas além do meu pai. 

Com certeza era o Daniel ali, afinal, meu pai e Amora tinham o próprio banheiro no quarto deles. Senti minhas orelhas esquentando de vergonha por ter forçado a porta sem nem bater antes.

Eu estava prestes a sair correndo quando a porta foi aberta numa velocidade de criar vento. Cheiro de shampoo e desodorante masculino vieram para fora junto da onda de vapor de um banho recém-tomado. 

— Que foi? — Daniel estava me encarando; apertei a toalha de banho contra o peito.

Com uma das mãos, Daniel segurava a maçaneta; com a outra, a toalha de banho na cintura. O cabelo estava molhado e as gotinhas escorriam dali para o pescoço e abaixo disso eu não ousei olhar. Travei os olhos no rosto do garoto com o sentimento de que eu estava em um tipo de armadilha maligna.

— Você vai demorar muito? — perguntei, e minha voz soou muito mais baixa e travada do que eu gostaria; tentei falar mais alto: — Eu preciso tomar banho.

Minha fala saiu como se eu estivesse lendo o texto em um teleprompter. 

— Foi mal, eu ainda vou secar o cabelo.

Daniel ameaçou fechar a porta, mas eu me inclinei para frente antes disso e ele deixou o gesto pela metade.

— Não dá pra fazer isso no seu quarto? — Como soou meio grosseiro, acrescentei: — É que eu não queria me atrasar pra escola.

— Eu preciso do espelho.

— Mas... — E então ele bateu a porta na minha cara. Acho que Daniel não era uma pessoa matinal. 

Escorreguei as costas pela parede ao lado da porta do banheiro, sentando-me no chão de madeira, e cobri a cabeça com a toalha, como se me protegesse em um casulo. Minhas bochechas estavam quentes, as mãos suando. Eu me odiava com todas as forças por ter esse tipo de reação.

Era um garoto. Eu não podia. Não dava.

— Por que tá no chão, filho? — Meu coração parou. A voz do meu pai me assustou exatamente como se ele tivesse me flagrado fazendo algo muito errado. Calma, Luca, ele não lê pensamentos. — E essa toalha na cabeça? Tá tudo bem?

Apenas levantei o braço e fiz sinal de beleza com a mão direita. Mas aí eu pensei melhor e: quem eu estava tentando enganar? Virei o polegar para baixo, fazendo sinal de beleza ao contrário.

— O que aconteceu?

Respirei fundo e tirei a toalha da cabeça. Meu pai estava com os cabelos loiros úmidos e com a roupa social do trabalho. Parecia radiante. 

— Eu tô atrasado pra tomar banho, mas o Daniel tá... — Antes que eu terminasse de falar, Daniel ligou o secador de cabelo dentro do banheiro.

Olhei para o meu pai como quem diria “tá vendo só?”. Ele apertou os lábios, pensando em algo para me dizer.

— Não tem um banheiro pra cada, mas pelo menos nós temos uma piscina.

Meu pai tinha essa mania de justificar uma situação com um fato aleatório. Como se o lado bom de X estivesse na existência de Y. E, para quase todas as questões, essa era a sua fórmula preferida. 

— Não dá pra tomar banho na piscina, pai.

— Mas dá pra tomar café comigo. — Ele se aproximou e estendeu o braço para me ajudar a levantar. Aceitei sua mão, assim como a gentileza dos seus olhos de chocolate.

Eu e meu pai éramos uma dupla imbatível quando se tratava de evitar conversas sentimentais, então desenvolvemos naturalmente um tipo de comunicação por expressão facial. Quando nossos olhos se encontravam, era muito difícil esconder qualquer que fosse a ervilha debaixo do meu colchão.

Já estávamos na cozinha quando, depois de colocar duas fatias de pão na torradeira, meu pai me lançou um daqueles combos: olhar questionador + sobrancelha em pé + os cantos da boca curvados para baixo = desembucha. 

Suspirei enquanto enchia minha xícara de café com leite. Tomei um gole antes de começar a falar.

— O Matheus me mandou um Snap dele com o resto do pessoal — contei, levando um breve susto com as torradas pulando da máquina. — Me senti meio excluído.

Não é como se meu pai não soubesse sobre A Semana Da Verdade. Não tem como esconder a cara de choro quando você chora por sete dias seguidos. Mas, ao mesmo tempo, eu sempre fui o mestre em amenizar ao máximo todos os problemas que, de alguma forma, estavam ligados ao meu desempenho escolar. 

Para o meu pai, a escola era uma prévia do restante da vida. Ele me cobrava boas notas e alguma prova de que eu tinha interações sociais saudáveis. Por isso, quando eu tinha qualquer complicação que tivesse a ver com amigos, professores ou matérias difíceis, ele só ficava sabendo se descobrisse sozinho. E até isso acontecer, eu já sabia mais ou menos como lidar com a situação.

— O Matheus não deve ter mandado o Snap com essa intenção.

Passei um bocado de manteiga na torrada quentinha e ela derreteu com um brilho bonito e gorduroso. Abocanhei. O gosto de torrada e café era, finalmente, o alívio familiar do qual eu precisava naquela manhã caótica.

— Eu sei que não. — Dei de ombros enquanto mastigava devagar. 

— Esse ano você faz 16 e vai poder dirigir com a licença provisória. — Havia algum tipo de piedade nos olhos do meu pai. — Eu queria te dizer que nós vamos visitar os seus amigos com frequência, mas não posso te prometer isso, você sabe. 

Desviei o olhar, assentindo. Meu pai era basicamente o resolve-tudo da imobiliária na qual ele era sócio, a Moura&Mello. Mello era o nosso sobrenome e Moura, do sócio e amigo de faculdade dele. A sociedade não era meio-a-meio, porque a grana para começar o empreendimento veio quase toda do Moura, cujo primeiro nome eu nunca me lembrava, por mais que de vez em quando ele jantasse lá em casa. Meu pai entrou na sociedade com pouco mais de um salário mínimo da época, muito esforço e um bom feeling para os negócios. Com o tempo, ele conseguiu 30% da M&M Imobiliária e era mais que o suficiente para vivermos bem pra caramba.

O dom mágico do meu pai era saber lidar com imprevistos como ninguém (isso servia exclusivamente para a vida profissional). Estar sempre disponível para atender uma ligação e sair às pressas de casa porque alguém tinha feito confusão era o mínimo que esperavam dele na empresa. Não porque ele era obrigado a trabalhar tanto ou ganhasse mais por isso, mas porque ele acostumou as pessoas a esperarem isso dele. 

Às vezes, estávamos no meio de um filme quando o celular tocava. Outras vezes, no meio do jantar. Ele fazia uma barulheira para vestir o casaco, pegar as chaves e pôr os sapatos. Mas, depois que ele fechava a porta, deixava para trás um silêncio do tamanho de um elefante.

— Não precisa se preocupar, pai. — Sorri de leve para ele, as bochechas lotadas de torrada.

O que mais eu poderia exigir dele? Meu pai havia me criado sozinho com a cabeça lotada de inseguranças, enquanto dava a energia que não tinha para conquistar uma boa vida para nós dois. Era muito mais do que eu poderia ter feito no lugar dele. Provavelmente eu teria sido só um fracassado.

— Bom, eu sei que você vai conseguir fazer novas amizades na escola, você é um cara legal.

— Não vamos falar da escola, pai. — Fiz uma careta. — Eu fico com dor de barriga só de lembrar que em menos de duas horas eu vou estar no meio de um monte de gente estranha.

— Fica tranquilo, Luca. — Meu pai passou a mão na minha cabeça, fazendo alguns fios do meu cabelo escaparem do elástico. — Vai dar tudo certo.

Assenti, mesmo achando que não daria tudo certo. Pelo menos meu pai era idiota o bastante para achar que sim, e isso era legal.

Daniel desceu as escadas um minuto depois, vestindo o uniforme do nosso colégio. 

Apus era um colégio particular tradicional que, desde 1965, obrigava garotos a usarem a camisa enfiada por dentro da calça. O uniforme era um conjunto de calça e blazer pretos que, ainda bem, não tinham o mesmo corte de 50 anos atrás, e uma camisa branca simples de botões. Também tínhamos uma gravata, mas ela era obrigatória apenas para eventos e dias de apresentações.

No blazer, do lado esquerdo, estava bordado o brasão do colégio: uma ave parecida com um corvo, mas de cauda longa, e, em cada extremidade do pequeno corpo do animal, havia uma estrela, formando a constelação de Apus.

Mesmo que o uniforme fosse todo aquele exagero de formalidade, caía estranhamente bem em Daniel. E não era algo no nível de “até que tá legal”. Era no nível de “sou o protagonista de uma série colegial”. Isso me deixava levemente irritado, porque no meu corpo era como uma fantasia de adulto.

Daniel olhou para mim e deu um sorriso de canto.

— Pijama legal — ele disse, abrindo o armário para pegar uma xícara.

Olhei para minhas próprias roupas e percebi que estava usando o pijama de miniespaçonaves que ganhei de presente da minha tia no Natal do ano passado. Ela nunca soube aceitar que com o tempo eu cresci mentalmente além de fisicamente, e me dava essas coisas de criança. Mas eu gostava do pijama, era confortável e até que engraçadinho.

Me perguntei por que Daniel não tinha usado o nosso encontro de mais cedo para zoar o meu pijama, mas me lembrei de que eu estava praticamente coberto pela toalha de banho, fiel escudeira contra a imagem de um Daniel seminu depois do banho.

Ouvi meu pai dar risada e olhei para ele de cenho franzido. Ele cobriu a boca, mas seus olhos denunciavam o quanto estava se divertindo às minhas custas.

Suspirei, revirando os olhos. — Vou tomar banho.

Eu tinha basicamente 15 minutos para estar pronto, por isso fiz tudo correndo. Quase cheguei a cair no banheiro depois de sair do box sem me secar decentemente antes.  Talvez eu sequer tivesse escorregado no piso se ele não estivesse exageradamente úmido por causa do banho de Daniel, que nem dava para chamar de banho: o garoto praticamente se cozinhava à vapor. 

Atrasado ou não, eu tinha o que me pai chamava de sangue-de-preguiça, que me fazia agir como se eu tivesse tempo de sobra. Assim, no final dos meus apertados 15 minutos, eu ainda estava com a camiseta por fora da calça, de meias nos pés descalços e com os cabelos entre o úmido e o seco-embaraçado. Mas o que era isso quando eu podia admirar o cabelo impecavelmente seco e brilhoso de Daniel, que caía em cascasta toda vez que ele penteava os fios para trás com os dedos?

Eu odeio ele. Odeio ele e o cabelo seco dele.

Entramos no carro do meu pai às pressas. Mesmo que estivéssemos saindo bem cedo de casa em comparação ao horário de início das aulas no Apus, o tempo se espremia quando tínhamos três destinos diferentes com horários de chegada parecidos. Meu pai precisava nos deixar no colégio no máximo às 7h, para que Amora chegasse ao trabalho até às 7h30. Assim, ele conseguiria chegar até às 8h na M&M. 

Estávamos fazendo um experimento, porque Amora não queria poluir o mundo usando um carro a mais se pudéssemos ir todos juntos no carro do meu pai. Para ser sincero, eu não me importava muito em nos dividirmos em dois carros se isso me permitisse ter uma soneca mais comprida ou tempo extra para uma segunda torrada no café da manhã. Mas Amora era tão ecofriendly que eu me sentia mal só de ter esse tipo de pensamento preguiçoso perto dela. No entanto, se essa semana fosse um desastre de horários, meu pai e Amora iriam separadamente ao trabalho, revezando a nossa carona ao colégio. 

Qualquer uma das duas opções estava boa para mim, desde que Amora não fizesse todo mundo aderir à bicicleta e pedalar até o outro lado da cidade. Chegar suado e fedido na escola era coisa de pesadelo.

Mas logo no primeiro dia da nossa tentativa coletiva de ser menos filho da mãe com o planeta, eu sentia como se todo mundo estivesse inconscientemente me culpando pelos 10 minutos de atraso. Sendo que quem segurou o banheiro foi o Daniel. 

Cada passo que eu dava era movido pela força do ódio que eu estava sentindo por aquele garoto.

Com a mochila em um dos ombros, eu segurava meu par de All Stars amarelos com uma das mãos e, com a outra, uma escova de cabelo, o celular, os fones de ouvido e uma das minhas biografias de Van Gogh, para o caso de eu falir como ser sociável e não ficar sem ter o que ler no intervalo das aulas.

一 O que é isso, a Bíblia? 一 Daniel perguntou assim que entrei no Civic e larguei minhas coisas no banco, fechando a porta do carro todo afobado. Ele não fez cerimônia nenhuma e já foi pegando o meu livro, folheando como se procurasse as figuras.

一 Qual foi o livro mais grosso que você leu? Chapéuzinho Vermelho? 一 devolvi a provocação e, sinceramente, nem eu vi aquilo vindo. Desde quando eu era respondão? Na verdade, desde quando eu desgostava de alguém com tanta facilidade?

Desde a portada na cara hoje de manhã?

Desde aquele olhar perverso de ontem à noite, depois de eu expressar meu sentimento responsável e sensato sobre não concordar em dar uma festa sem nossos pais estarem sabendo?

Ouvi Amora soltar uma risadinha no banco da frente. Meu pai estava quieto, tirando o carro da garagem. Espiei, pelo espelho retrovisor, seus olhos de chocolate espantados com a minha repentina rebeldia (ou coragem) para entrar numa discussão espontaneamente.

一 O livro mais grosso que eu li não sei, mas a pessoa mais grossa que eu já vi… 一 Daniel retrucou, daquele jeito todo metido.

一 Daniel… 一 Amora chamou a atenção do filho, mesmo que seu tom de voz denunciasse certo divertimento.

一 Foi ele que começou 一 o bebezão cruzou os braços e virou a cara.

一 Foi você que começou dizendo que meu livro era a Bíblia 一 me defendi.

一 Qual o problema? 一 Ele olhou para mim, as sobrancelhas escuras arqueadas. 一 Você tem algo contra a Bíblia?

一 O quê? Não! 一 Como ele tinha chegado naquilo?

Amora gargalhou e aquilo foi o suficiente para que Daniel e eu perdêssemos a vontade de continuar discutindo se isso fizesse de nós dois palhaços.

Meu pai ligou o rádio e imediatamente procurei meus fones de ouvido. Depois que minha playlist de andar de carro estourou nos meus ouvidos, procurei ocupar a cabeça só com as coisas que eu precisava fazer para me tornar um aluno apresentável.

Comecei desembaraçando os nós dos meus cabelos com a escova. Em momentos como esse, eu chegava a me questionar o que valia mais a pena: a sensação quentinha dos cabelos cobrindo a nuca ou a facilidade do lava-e-tá-pronto de um cabelo curto. Minha autoestima quase falida gostava da primeira opção, porque eu conseguia me gostar um pouco mais de cabelo grande. Mas a minha preguiça, às vezes, implorava pela tesoura.

Tirei do bolso do blazer os meus pares de brincos. Eu tinha dois furos de um lado e três de outro, um deles era um hélix que eu tinha feito no meu aniversário do ano passado, junto com o Matheus. Nós dois tínhamos furado a orelha, mas ele desistiu do piercing duas semanas depois, dizendo que não conseguia dormir sem esmagar a orelha e acordar morrendo de dor.

Eu sabia que o Apus tinha uma política meio rigorosa sobre acessórios e qualquer coisa que não fizesse parte do uniforme. Mas, pesquisando na página oficial do colégio no Facebook, vi que a maioria das garotas nas fotos usava brincos. Alguns garotos também. 

Podia até ser besteira, mas eu tinha uma estranha sensação de calma quando levava a mão às orelhas e dedilhava os meus brincos, todos pequenas argolinhas discretas. 

Depois de colocá-los, calcei meus All Stars (acabei batendo a cabeça no processo, quando meu pai parou um pouco bruscamente em um sinal vermelho). Por último, fiz contorcionismo para colocar a camisa por dentro da calça daquele uniforme brega. 

Nesse meio tempo, Daniel me deu umas olhadelas atravessadas. Será que para ele era engraçado me ver todo desengonçado, enquanto ele mesmo estava tinindo dentro do próprio uniforme? Provavelmente.

De qualquer forma, não tive muito tempo para encucar com isso. Quanto mais nos aproximávamos do Apus, mais os meus pensamentos pareciam nuvens vazias. Minhas mãos suavam e nem a minha mania familiar de mexer nos brincos dava conta da ansiedade.

Foram necessários pouco mais de dois segundos e uma curva suave à direita para que eu sentisse nada além de nervosismo ao ver o prédio do colégio surgindo no final da rua. A entrada, que era enorme, estava abarrotada de carros e vans escolares.

Segurei o tecido da minha mochila tão forte que as pontas dos meus dedos perderam a sensibilidade. 

— Se você for vomitar espera eu estar mais ou menos longe — Daniel disse, olhando para mim como se eu fosse o paciente zero de um vírus estranho.

— Luca, vai dar tudo certo. — Meu pai, aparentemente, não conhecia mais nenhuma outra frase de motivação.

— Eu volto pra pegar vocês na hora do almoço, vai passar depressa, vocês vão ver — Amora disse com um sorriso, olhando para nós dois no banco de trás. 

Seus olhos azuis conseguiram me passar certa calma, mas não durou muito.

O carro parou. Estávamos em frente ao Apus. Tinha muita gente. 

— Boa aula, meninos — meu pai desejou.

Daniel abriu a porta e pulou para fora do Civic. Eu repeti o gesto, mas já não sabia para onde ele tinha corrido. Eu estava sozinho. Claro, o que mais eu poderia esperar? Que ele me desse a mão e me levasse até minha sala de aula?

Olhei para cima, admirando a imponência do prédio principal, enquanto ajeitava a mochila nas costas. Como o Apus era um colégio antigo, dava para ver que a arquitetura preservada tinha um quê de construção portuguesa. Principalmente a fachada. 

Para entrar no Apus, havia dois portões. Um principal, que guardava o colégio junto dos muros altos, e, depois dele, outro menor, que era basicamente uma fileira de quatro ou cinco catracas, todas sob uma grande marquise que protegia os alunos do sol de verão das 7h10 da manhã. 

Comecei a ficar nervoso quando percebi que todo mundo usava uma carteirinha para liberar a passagem. Eu não tinha uma carteirinha.

Olhei em volta, procurando uma solução. Percebi que alguns alunos, perto da última catraca, estavam em uma fila um pouco mais lenta, justamente porque estavam assinando uma lista antes de entrar com uma carteirinha provisória. Andei até lá.

— Oi. Sou aluno novo. — Assim que chegou a minha vez, falei para a pessoa que estava atrás de um computador, dentro de um cubículo à esquerda da catraca, que parecia uma espécie de recepção ou guichê de informações. 

A mulher de cabelo bem preso me olhou, o rosto limpo de qualquer expressão.

— Não tem a carteirinha ainda?

Sacudi a cabeça em negação.

— Qual o seu nome?

— Luca.

— E o seu sobrenome, Luca? — ela perguntou, com gentileza treinada.

— De Mello.  — Fiquei envergonhado por não ter dito logo de cara. É que eu não era acostumado a sair falando meu nome, quem dirá nome e sobrenome.

Ela passeou os dedos pelo teclado do computador e, alguns instantes depois, passou uma carteirinha sem nome em um leitor de código de barras. Antes de entregá-la a mim, apontou para a prancheta com uma lista, que estava sobre o balcão.

— Você só precisa assinar a lista com seu nome, data e motivo de estar sem a carteirinha. Pode escrever que é aluno novo.

Enquanto eu preenchia a folha de papel, a mulher continuou a digitar no teclado. Ela fazia aquilo tão rápido que sequer precisava olhar para as mãos.

— Pronto — falei, largando a caneta ao lado da prancheta.

— Eu acabei de fazer a solicitação da sua carteirinha, Luca. — Ela estendeu a mão e me entregou a carteirinha provisória. — Vai ficar pronta até a hora do seu intervalo, mas, se você preferir, pode passar na secretaria no final das aulas para pegar.

— Ah, tá bom. Muito obrigado.

A recepcionista sorriu, assentindo, e, logo então, passei pela catraca.

Entre jardins bem cuidados e grandes árvores alinhadas, o colégio se desenhava em um complexo de prédios de, no máximo, 4 andares cada. Todos os pequenos prédios estavam interligados por marquises e calçadas de pedra. O sol da manhã sublinhava os telhados timidamente, a grama ainda estava úmida por causa do temporal do dia anterior.

Os prédios mais novos eram quadrados, os mais antigos ainda tinham arcos e tijolinhos à mostra muito bem conservados. E mesmo que pudesse soar contrastante, era o tipo de mistura bonita, que me fazia sentir dentro de um cenário montado de um filme de romance adolescente.

E adolescente era o que não faltava ali. O burburinho me deixava quase tonto. A escola era enorme, e a quantidade de gente chegando era equivalente. 

Segui o corredor principal e passei pelo interior de dois prédios cheios de gente fuçando armários e conversando. Pareciam mais novos que eu, então eu só continuei seguindo em busca de um rosto de alguém de 15 anos.

Um minuto ou dez, não sabia dizer quanto tempo havia passado desde que comecei a flutuar pelo campus do Apus feito um fantasma que perdeu o rumo.

Havia tanta gente, tantas portas dentro de tantos prédios. Me arrependi por não ter clicado em “tour virtual” enquanto eu terminava de fazer minha matrícula no site, semanas atrás. 

Antes tarde do que nunca, tentei procurar um lugar mais calmo para me sentar e pesquisar o mapa do colégio no Google Imagens. Eu já sabia que era um lugar grande, mas evitei pensar muito sobre isso nos dias anteriores, assim como evitei pensar em um monte de outras coisas que precisavam de mais de dois neurônios e alguma inteligência emocional.

Andei até onde, de longe, eu tinha vislumbrado uma fonte de água. À distância parecia bem bonita, dessas que você imagina no centro de Roma num filme estilo Lizzie McGuire: Um Sonho Popstar. De perto, não era nada italiana, sem anjinhos de porcelana cuspindo água. Mas tinha o que eu precisava: lugar para sentar. 

Os bancos de concreto contornavam a fonte redonda, e algumas pessoas estavam sentadas ali, ouvindo música, lendo ou conversando. Encontrei um canto mais ou menos afastado dos outros estudantes e sentei no concreto gelado, largando a mochila ao lado quase como uma forma de anunciar: “proibido sentar aqui”.

Em poucos instantes, eu já tinha um mapa virtual do Apus na tela do meu celular e procurava, ansioso e de mãos trêmulas, o prédio da secretaria. Encontrei quando faltavam exatamente dez minutos para o horário de início das aulas, 7h30. Todo mundo em volta já começava a se movimentar preguiçosamente.

Agarrei a mochila e saí apressado até o prédio que, ainda bem, eu havia localizado assim que coloquei os olhos na paisagem ao redor. Sorte minha que estava perto, porque estava ficando quente. Enfiei o celular no bolso quando tive a certeza de que não erraria o caminho e ajustei as alças da mochila nas costas.

Não tinha quase ninguém andando naquela direção, era eu contra o cardume de uniformes cor de espaço-sem-estrelas.

O prédio parecia ser um dos mais antigos do campus, as paredes tinham tijolos à mostra, em terracota desbotado pelo tempo e infiltrado por plantinhas, dessas que se agarram em muros. Ainda assim, a porta de vidro era moderna e deslizava facilmente ao abrir.

Assim que entrei, me vi dentro de um hall enorme e vazio. Do lado esquerdo, um corredor com cerca de seis portas. Do lado direito, a mesma coisa. Olhei para cima, onde uma placa informativa suspensa mostrava a palavra mágica “Secretaria” seguida de uma seta para direita. A sensação de estar no lugar certo foi como um sopro de alívio nas bochechas.

O primeiro sinal para o início das aulas tocou e foi como se o som estridente do alarme se materializasse em um empurrão nas minhas costas, fazendo meus pés se apressarem na direção do corredor da direita.

Conferi porta por porta. Sala dos professores, Monitoria I, II e III, e, finalmente, Secretaria. Assim que coloquei os olhos sobre a porta certa, algo me segurou no lugar.

Perder-se, abrir portas, falar com gente. Tudo parecia um pesadelo. Precisei respirar fundo antes de continuar.

Estendi a mão até a maçaneta. Puxei, mas era de empurrar. Então empurrei.

A nuvem escura de falta de sorte que estava sobre a minha cabeça desde que levantei da cama (ou desde que nasci) fez chover também na pobre pessoa que estava tentando sair da secretaria ao mesmo tempo em que empurrei a porta para entrar. A garota se desequilibrou com o empurrão que dei na porta e, por tabela, nela também.

Não tinha onde se segurar, porque as suas mãos estavam ocupadas com uma pilha enorme de papel. As folhas voaram como asas de borboleta, em câmera lenta, enquanto o segundo sinal chamando às aulas tocava ainda mais agudo.

Tentei alcançar os braços da garota, estendidos no ar como se tentassem se segurar nas correntes de ar, mas a gravidade foi mais rápida do que meu reflexo e ela caiu em um baque doído. 

Seus cabelos cheios e ondulados, presos em um rabo de cavalo bem alto, cobriram seu rosto. Eles tinham mechas coloridas em azul, verde e roxo. A saia do uniforme estava levantada, o que me desesperou por um segundo. O quão brava ela ficaria comigo se alguém visse a calcinha dela?

Mas logo suspirei aliviado quando notei que 1) a legging que ela usava por baixo da saia ia até os joelhos e 2) não havia ninguém ali além de nós. 

Quando a última folha de papel caiu sobre o piso, acordei para a realidade e fui ajudar a garota. Me agachei ao seu lado, enquanto ela colocava os cabelos de volta para trás.

— Desculpe, eu não vi você saindo — falei, remexendo impacientemente os meus brincos.

Os olhos da garota encontraram os meus e senti um frio no estômago, do tipo que dá medo. Eles eram cor de mel diluído, quase transparentes, frios e decididos.

Mas então a seriedade deixou seu rosto como se alguém a tivesse soprado dali, e, suavemente, um sorriso gentil se abriu.

— Não foi culpa sua, não tinha como a gente adivinhar que você tava de um lado e eu do outro.

Ela abaixou a saia como se não fosse problema algum que alguns segundos atrás a peça estivesse tal qual um guarda-chuva invertido. Eu não soube o que responder, ou se existia chance de respostas, então eu só comecei a recolher os papéis espalhados pelo chão.

— Tudo bem, pode deixar comigo. Você vai se atrasar pra aula.

— Eu não sei onde é a aula — confessei de um jeito meio triste, meio conformado. Dois sinais já tinham tocado, e a menos que houvesse um terceiro, era tarde demais para não estar atrasado.

— Então você é aluno novo! — ela exclamou, enquanto se espremia debaixo de uma fileira de cadeiras almofadadas para juntar as folhas que tinham ido parar lá. — Bem que eu te achei difícil de reconhecer. Não tem muito menino de cabelo comprido e bonito igual o seu por aqui. Ah! Peguei.

Minhas orelhas se esquentaram de vergonha. Meu cérebro não sabia formular uma resposta. Por que eu era assim? Era só um comentário sobre o meu cabelo.

— O que aconteceu aqui, Maria Eduarda? — uma outra voz preencheu o espaço do meu constrangimento e, de alguma forma, me senti agradecido por isso. 

Havia uma senhora de óculos de meia-lua, que eu não tinha notado antes, espiando por trás de uma bancada alta. Abaixado no chão, eu só conseguia ver seu rosto maduro, sobrancelhas grossas escuras e os cabelos tomados por fios brancos presos com um palito indiano.

— Não foi nada, nós só trombamos — a garota respondeu, se levantando e desamassando o tecido da saia plissada xadrez. Ao contrário do que eles mostravam em Rebelde, as saias do uniforme chegavam ao joelho.

Maria Eduarda pegou os papeis que eu recolhi e me agradeceu em voz baixa pela ajuda, enquanto estendia a mão livre para me ajudar a levantar também.

— Ei, Maya, você consegue ver de qual sala ele é?

Enquanto Maria Eduarda ajeitava os papéis usando a superfície da bancada, Maya me espiou curiosa por cima das lentes dos óculos.

— Aluno novo? 

Assenti.

— E como você se chama? — foi Maya quem perguntou, mas as duas estavam olhando atentas em minha direção.

— Luca de Mello.

— Luca de Mello… — Maya repetiu em voz alta, soletrando meu nome enquanto digitava no teclado do computador à sua frente. Diferente da recepcionista nas catracas, ela digitava bem devagar. — Segundo ano B.

— Meu Deus, você tá na minha turma! — Maria Eduarda cobriu metade do rosto com o maço de papel, como se estivesse cobrindo a boca com a mãos, mas sem poder usar as mãos.

Senti algum tipo de alívio por ter encontrado, tão ao acaso, uma colega de classe. Consegui sorrir pela primeira vez desde que coloquei os pés para dentro daquele enorme colégio.

— Obrigada, Maya. Estamos atrasados. — Maria Eduarda puxou a manga do meu blazer por um segundo, antes de falar: — Vamos.

— Obrigado — falei para Maya, que assentiu com um sorriso e ajeitou os óculos na ponte alta do nariz.

Segui Maria Eduarda para fora do prédio da secretaria e, ali fora, o sol parecia mais forte e mais quente do que antes. Andamos lado a lado, de olhos apertados por conta da claridade do dia, seguindo por uma calçada de pedra coberta.

— Luca, né?

— É.

— Eu sou a Maria Eduarda, mas ninguém me chama assim, só os professores e a Maya. Pode me chamar de Madu, tá bom?

Assenti. Meu Deus, eu era horrível para manter uma conversa normal.

— Ainda bem que te achei, hein? Imagina você perdido por aí. O Segundo B fica naquele prédio ali. — Madu apontou para a direção onde estávamos seguindo. Havia três prédios iguais, um ao lado do outro.

— Qual dos três?

— O do meio. O primeiro, da esquerda, é dos primeiranistas. Depois tem o dos segundanistas e o último é do pessoal do terceiro. 

Apesar de serem três, os prédios pareciam uma única peça, com formato de ferradura. No centro da construção, solitária, ficava uma árvore enorme, que parecia ter muitos anos de vida. Em volta dela, a grama mais fofa e verde que eu já tinha visto.

Entramos no prédio do meio depois de subir uma porção de degraus e atravessar uma porta de vidro. Antes de irmos muito longe, um senhor surgiu em nossa frente feito assombração, nos fazendo pular para trás com o susto. 

— O segundo sinal já bateu — ele disse, sua voz era rouca e o seu cabelo era… Algo como o cabelo daquele zelador de Harry Potter que tinha uma gata. —  Precisam notificar o atraso na secretaria e pegar a autorização.

Mas nós acabamos de sair de lá…

— Eu fiquei encarregada de levar este aluno novo pra sala de aula, por isso atrasamos um pouquinho.

Madu tinha um sorriso confiante no rosto e estava me usando para passarmos pelo zelador sem autorização. Bom, desde que a gente não precisasse voltar à secretaria e chegar ainda mais atrasados na aula, por mim tudo bem.

— Você é aluno novo? 

Uma das piores partes sobre ser aluno novo é ter que passar o dia respondendo a essa mesma pergunta.

— Sim — falei, mas não pareceu que um simples “sim” fosse o suficiente para convencê-lo. Olhei para Madu, esperando que ela me ajudasse, mas ela só ergueu as sobrancelhas e esperou que eu falasse um pouco mais. — Eu fui até a secretaria pra ver qual era a minha turma, e a Maya... Ela…

— Me pediu para guiar o Luca até a sala dele, que por acaso é a mesma que a minha. Além do mais, eu preciso entregar os formulários de inscrição para os clubes antes que fique muito tarde e atrapalhe a aula do professor Estevão. 

Ao ouvir o nome do professor, o senhor fez uma sutil careta de nervosismo.

— Você está com a sua carteirinha de estudante aí? — ele perguntou para mim.

Acho que ele queria comprovar se eu era mesmo aluno novo. Será que a Madu era uma atrasada recorrente? Ou, pior, uma mentirosa frequente?

— Eu ainda não tenho uma.

— Vou ter que verificar seu nome no sistema.

Ouvi um suspiro e olhei para Madu a tempo de vê-la revirando os olhos. Perdemos mais dois minutos indo até uma salinha de vidro, que parecia ser a torre de vigia dos atrasados, para que o zelador conferisse a minha matrícula e a solicitação de carteirinha que eu havia feito mais cedo. 

Fomos liberados “só desta vez” e seguimos apressados em direção ao elevador. Madu apertou o botão com o número 3 e as portas de metal se fecharam. Acima da porta, um painel de números digitais mostrava o horário: 07h38.

— Não se preocupe, só estamos oito minutos atrasados.

— E isso não é bastante?

— Não se você estiver comigo. — Madu sorriu e eu fiquei sem entender a resposta, então ela continuou: — Eu sou representante da turma e presidente do grêmio estudantil. Nem sempre eu chego no horário porque, geralmente, as reuniões do grêmio atrasam um pouco. Os professores já estão acostumados.

Eu não sabia o que responder, então falei a primeira coisa que me veio à cabeça:

— Parece cansativo.

— E é mesmo — Madu confirmou, abraçando o maço de papéis com mais força. Algo diferente e determinado flutuou por seu olhar, e de repente aquela resposta pareceu como a ponta de um iceberg. Acho que havia muito mais sobre o motivo pelo qual Madu escolheu fazer algo tão trabalhoso do que caberia em uma conversa de elevador.

As portas se abriram quando chegamos ao terceiro andar e, como se eu tivesse ganhado um banho de água fria, percebi que estava prestes a entrar na minha nova sala de aula, com gente estranha e que já se conhecia. Respirei fundo uma, duas, três vezes enquanto seguia a figura colorida de Madu. Seus passos firmes no chão eram toda a confiança que eu desejava ter mas nunca tive.

Paramos em frente à porta e, enquanto dava duas batidinhas para anunciar nossa presença, Madu me lançou um sorriso gentil, quase como se quisesse me confortar. Acho que meu nervosismo estava óbvio para qualquer um àquele ponto. Emprestei um pouco daquela sensação que a garota emanava, de que tudo era extremamente natural e corriqueiro, e fingi que estava tudo bem, numa tentativa desesperada de enganar a ansiedade.

Madu não esperou o professor dizer que podíamos entrar. Abriu a porta e fez sinal com a cabeça para que eu a seguisse. Em um segundo, todas as cabeças estavam viradas em nossa direção. O silêncio que se fez era afiado como uma agulha.

— Maria Eduarda — o professor falou, como se constatasse os pensamentos em voz alta. Logo depois, ele me encarou com olhos confusos.

— Oi, professor Estevão. Esse aqui é o Luca, aluno novo. — Aonde quer que eu olhasse, havia outro par de olhos curiosos me encarando. Então, para evitar um colapso, encarei o chão. Madu continuou, no mesmo embalo confiante: — Você pode dar uma olhada no espelho da sala pra ver onde o Luca vai se sentar? Enquanto isso, eu vou distribuir rapidinho esses formulários pra inscrição nos clubes.

O professor Estevão encarou Madu com uma expressão cansada, mas conformada. Coçou os cabelos curtos da nuca com ar de impaciência e se dirigiu à mim:

— Bem-vindo, Luca. Eu vou conferir o seu lugar no espelho, como a senhorita Maria Eduarda pediu.

Madu deu uma risadinha enquanto o professor se sentava atrás de sua mesa para verificar o meu lugar no mapa da sala, no computador. Apenas juntei as mãos em frente ao corpo, sem graça, e torci silenciosamente para que aquilo durasse menos que um minuto inteiro.

— Luca — ouvi a garota dos cabelos coloridos chamar por mim. — Me ajuda a entregar os formulários? Pode começar por essa fila e eu começo pelo outro lado da sala.

Mal tive tempo para assentir e Madu já havia colocado metade da pilha de papéis nas minhas mãos. Bom, aquilo era melhor do que ficar parado feito uma estátua na frente de todo mundo. 

Todas as mesas dos alunos eram duplas, o que me fez ficar também duplamente nervoso sobre ter que dividir meu espaço com alguém. Eu odiava a ideia.

Enquanto entregava os formulários, tentei não encarar ninguém e, ao mesmo tempo, prestar atenção nos lugares vagos. Havia quatro deles, mas não tinha como saber se estavam sem dono ou se pertenciam a alguém que não tinha ido à aula.

Será que eu sentaria com o garoto cochilando no fundo? Com a garota no site de fanfiction, lendo no celular escondido entre as páginas da apostila? Ou ao lado do menino de topete que achava que ninguém havia percebido ele tirando punhados de Cheetos de dentro da mochila?

— Fernando! — ouvi o professor chamar. Ao mesmo tempo, o garoto do Cheetos deu um pulo na carteira e deixou alguns salgadinhos caírem no chão. Quem flagrou a cena deu risada. — Eu já cansei de te dar advertência por comer durante a aula. Por favor, limpe o que você deixou cair e guarde o restante pro intervalo, combinado?

O garoto bufou mas pediu desculpas, juntando os Cheetos um por um, como se estivesse com dó de jogá-los fora. Acabei simpatizando com ele, principalmente porque a cena fez com que as pessoas parassem de olhar só para mim.

Madu já tinha terminado de distribuir a sua parte dos formulários quando acabei de entregar a outra metade. Ela havia subido no pequeno tablado onde ficava a mesa do professor, que era dois degraus mais elevado que o piso da sala de aula. Os dois conversavam enquanto Madu apontava para alguma coisa na tela do computador.

Fui até lá para levar os formulários que sobraram, e, assim que me viu, Madu sorriu animada. Entreguei os poucos papéis que restaram enquanto ela falava:

— Vamos ser colegas de mesa.

— É sério? — Arregalei os olhos. Parecia coincidência demais ter encontrado Madu ao acaso e, ainda por cima, ter sido colocado como colega de mesa dela.

— Você ia ficar com o Joaquim, o dorminhoco do fundão. Mas conversei com o professor e achamos melhor colocar a Ana Paula com ele. Ela senta comigo e eu posso te dizer que ela é uma matraca. Ela e o Joaquim vão ser a dupla perfeita, porque ele odeia conversar e ela não vai deixar ele dormir durante a aula.

Madu era como um pequeno furacão que, ao invés de bagunçar as coisas por onde passava, as colocava em seu devido lugar. Acho que não havia ninguém que se encaixasse melhor no papel de representante de classe, afinal.

— Professor, eu só vou puxar a orelha do pessoal sobre a inscrição nos clubes e já te deixo continuar a aula, tá bom?

— Seja breve, Maria Eduarda. — O professor Estevão parecia ansioso. Mas também parecia satisfeito com os métodos da Madu para fazer o Joaquim acordar e a Ana Paula falar menos, porque logo pediu para a tal garota-matraca mover suas coisas para a mesa compartilhada com Joaquim, que acabou acordando no processo. 

Me senti um pouco mal, como se fosse minha culpa que Ana Paula estivesse perdendo uma colega de mesa legal como a Madu. Mas não era como se eu tivesse opção ou, principalmente, não era como se eu fosse louco o suficiente para recusar um lugar na segunda carteira da fila da parede (pertinho da janela!). Depressa, e o mais discretamente possível, me ajeitei em minha mesa, agora com o meu próprio formulário em mãos.

— Pessoal! — Madu chamou a atenção de todos. — Hoje é quarta-feira e vocês tem até a sexta pra preencher o formulário e decidir qual das atividades extracurriculares vão fazer este ano. O quanto antes vocês fizerem, mais altas as chances de conseguirem vaga nos clubes que vocês querem entrar.

Enquanto Madu falava, olhei para a primeira página do formulário. Havia uma lista quilométrica de atividades, metade delas eram esportes. O formulário, Madu explicou, tinha uma parte online, que era a principal garantia de uma vaga no clube escolhido. Eu precisaria acessar a página do clube no site do colégio e colocar o código do meu formulário na lista virtual. Era como uma fila por ordem de chegada.

Comecei a me desesperar quando percebi que algumas pessoas estavam acessando o site pelo celular para não perder as vagas nos clubes favoritos. E eu sequer havia escolhido um para mim.

— Mesmo assim, o formulário que eu e o Luca entregamos pra vocês hoje é importante, não vão perder ou também perdem a vaga. E não esqueçam: me entreguem até sexta-feira. — Madu sorriu, finalizando seu comunicado. Algo na forma como ela citou meu nome me fez sentir como se fizesse parte da turma desde sempre, o que foi como uma injeção de alívio nas veias.

— Obrigado, Maria Eduarda. — disse o professor. — Vamos começar a aula.

O professor Estevão dava aula de Geografia. Eu não era muito fã da matéria, mas fiz o meu melhor para prestar atenção nos slides com desenhos de rocha e camadas do solo. Madu, ao meu lado, havia espalhado uma porção de canetas coloridas e post-its pela mesa. O gesto despreocupado dela me fez ficar mais seguro para fazer o mesmo, porque eu adorava tirar todas as minhas canetas do estojo e deixar as páginas do meu caderno tão coloridas quanto os quadros que eu pintava.

— Meu Deus, que cor linda a dessa caneta — Madu sussurrou ao meu lado, olhando para minha ponta fina azul-lilás. Ela tinha sido um achado, a única vez que encontrei uma cor como aquela em uma das muitas lojas de papelaria que eu frequentava. 

— É uma das minhas favoritas. Você pode pegar emprestado quando quiser. 

— Sério? Obrigada. Você também pode usar qualquer uma das minhas.

Sorri, assentindo. Eu provavelmente demoraria um mês para tomar coragem e emprestar uma caneta dela sem me sentir envergonhado, mas eu gostava de pensar que esse dia chegaria, do mesmo jeito que eu me sentia feliz ao imaginar que eu conseguiria conversar com a Madu como conversava com o Matheus.

Depois de o professor passar a teoria, tínhamos um tempo para fazer os exercícios da apostila antes da correção. Cada dupla podia se ajudar nessa parte, então a sala estava um pouco menos silenciosa e mais parecida com qualquer turma barulhenta de ensino médio. Madu, de vez em quando, mexia no celular ou perguntava se eu precisava de ajuda.

— Ei, Luca — Madu chamou, ao mesmo tempo em que empurrava seu celular em minha direção. — Coloca seu número aqui, eu vou te adicionar no grupo que eu tenho com meus amigos no Whats. 

Olhei nervoso para os números na tela do celular.

— Se você não quiser, não tem problema. — Madu estava prestes a pegar seu celular de volta. Pode ser que eu tenha feito uma careta muito estranha e tenha passado a impressão errada. Não era que eu não quisesse, era só que eu nunca tinha feito parte de um grupo de Whatsapp antes. Matheus já tinha insistido nisso algumas vezes, mas eu sempre me esquivava. 

— Eu quero, sim. — Segurei o celular antes que ela pegasse de volta e comecei a digitar o meu número. — É que eu sou meio envergonhado às vezes.

Madu sorriu. — Não tem problema, eu tenho certeza que você vai gostar do pessoal do nosso grupo. 

— São todos aqui da sala?

— Sim, deixa eu te mostrar. — Madu chegou perto e apontou para um dos cantos da sala, suas unhas estavam pintadas de azul. — Aquele do topete é o Nando. — Era o garoto do Cheetos. —  Na mesa atrás dele, tem o Cadu, que também é o meu namorado. — A voz de Madu automaticamente mudou para um tom mais doce ao falar do garoto de pele marrom e cílios compridos e bonitos. —  E, por último... — Ela se virou para o fundo da sala, apontando para o último lugar da fila ao lado da nossa. — O Vitor. Ele é bem quieto na maior parte do tempo, acho que vocês podem se dar bem.

Vitor estava concentrado em sua apostila, com os fones de ouvido plugados e as mangas da camiseta branca de botões dobradas até os cotovelos. Seu rosto e pescoço eram floridos de pintinhas, os cabelos eram daquele tipo curto na nuca e de franja grande o suficiente para colocá-la atrás da orelha. 

Virei depressa para frente, antes que eu me deixasse ficar admirando um garoto por tempo demais. Seria estranho.

 No mesmo instante, notificações começaram a surgir na tela bloqueada do meu celular, que até então estava esquecido ao lado do estojo.

Você foi adicionado ao grupo “Ninguém sai”

Madu: 

Gente, esse é o Luca, digam oi

 

Nando: 

Oi, Luca!!!

 

Cadu: 

Bem-vindo ao grupo, Luca :)

 

Vico: 

Oi :)



Oi, obrigado (:

 

Madu: 

Quem vai me ajudar hj no intervalo? 

 

Nando: 

O Cadu :p

 

Madu: 

Estão todos convocados

 

Nando: 

Não vai dar folga nem pro Luca? Ele acabou de chegar kkk

 

Ajuda pra quê, Madu?

 

Nando: 

Hj é dia de barraquinha

 

Madu: 

Barraquinha é o caramba

Eu preciso ficar no STAND do grêmio e recolher os formulários de inscrição pros clubes. 

Falando nisso, vão continuar no mesmo clube este ano?

 

Cadu: 

Acho que sim

 

Vico: 

Pensando ainda

 

Nando: 

Eu gostaria de fazer uma solicitação pra senhora presidente do grêmio

 

Cadu: 

Lá vem

 

Nando: 

Eu quero fundar um novo clube

 

Madu: 

Clube de comer?

 

Cadu: 

De comer enquanto joga videogame

 

Nando: 

Como vcs sabiam? kkkkk

 

Me diverti vendo os quatro conversando até a hora de corrigir os exercícios. Tivemos dois tempos de Geografia e um de História antes do intervalo. 

Assim que o sinal tocou, descemos todos juntos até o térreo pelas escadas, porque havia muita gente esperando o elevador. Iríamos fazer uma parada no refeitório e depois seguiríamos até o stand/barraquinha do grêmio, fazer companhia para a Madu. 

Fora da sala estava muito quente, sorte que eu havia tirado o blazer do uniforme um pouco antes de sairmos.

— Já decidiu pra qual clube vai entrar, Luca? — Cadu puxou assunto. Madu e ele desciam as escadas de mãos dadas.

— Ainda não. Acabei não vendo a lista toda — respondi, um pouco aflito. Eu não queria acabar indo para um clube horrível porque demorei muito para me decidir.

— O clube de teatro ainda não fechou as vagas — foi Madu quem disse, enquanto balançava com carinho as mãos dadas com Cadu. — Esse ano vamos caprichar na peça. Por que não se inscreve, Luca? Eu sei que você disse que era tímido, mas o teatro pode te ajudar nisso.

Eu definitivamente não queria ir para o clube de teatro. Uma vez eu tentei fazer aulas particulares, mas assim que tivemos que incorporar animais e sair miando, mugindo e cacarejando pela sala, percebi que o negócio não era para mim.

Tentei mudar o foco da conversa para não precisar dizer “não” para a Madu.

— Além de ser representante de classe e presidente do grêmio você ainda tá no clube de teatro?

Cadu deu risada enquanto Madu comprimia os lábios de um jeito faceiro. Antes que ela respondesse, Nando entrou na conversa. Ele estava dois degraus na frente, ao lado de Vitor, e comia o que sobrou dos seus Cheetos.

— A Madu não aguenta ficar parada. Faz parte do plano de revolucionar o colégio.

Antes que eu pudesse perguntar que tipo de plano era aquele, chegamos ao térreo e o barulho de conversa e cheiro de fritura me distraiu. O refeitório ficava logo à frente, depois de grandes portas de vidro. Era um espaço compartilhado entre os três prédios, como um saguão principal. Havia mesas grandes e pequenas e uma espécie de jardim central, onde ficava uma árvore enorme.

— Bonita, né? — Madu comentou quando me viu admirando a árvore de folhas caídas. — É um salgueiro. Tá aqui desde antes de o colégio ser construído, não puderam derrubar, então tiveram que construir o refeitório em volta dela.

Aquela parte do Apus era, de longe, a mais bonita que eu tinha visto até então. Morri de vontade de pintar o salgueiro.

Depois de comprarmos sanduíches na cantina, seguimos Madu até o stand do grêmio, que ficava no térreo do nosso prédio. Não era uma barraquinha, como o Nando tinha brincado. Era só uma mesa com um pôster pendurado que dizia “Formulários de Inscrição Obrigatória para as Atividades Extracurriculares”. 

Havia três cadeiras ali, que rapidamente foram tomadas por Nando, Cadu e Madu. Vitor se sentou na própria mesa e eu o imitei, sentando ao seu lado e aproveitando a sensação das pernas balançando no ar. Dali, ainda dava para observar o movimento no refeitório pelas paredes de vidro, e, de vez em quando, eu virava o pescoço para admirar o salgueiro e as pessoas sentadas debaixo dele, conversando, comendo e dando risada.

Fiquei meio sem graça ao lado de Vitor, porque ele havia sido o único com que eu não tinha conversado ainda. Tentei não ligar muito para isso, afinal, a própria Madu havia dito que ele era quieto. E, mais do que ninguém, eu entendia as pessoas quietas. 

De qualquer forma, o silêncio foi preenchido pelas conversas entre os quatro, e eu não me importei em não entender as piadas internas. Eu já estava suficientemente feliz por ter sido acolhido pela Madu e o grupo de amigos dela.

— Gente — Madu falou, interrompendo a sessão de risadas depois de uma tentativa falha que Nando fez de contar uma piada. —, aquele ali não é o tal do youtuber que o Nando gosta?

Seus olhos amendoados estavam mirados em algum ponto atrás de mim, na direção do refeitório. Olhei para trás no mesmo instante, com um pressentimento ruim que se cumpriu como uma profecia quando vi a cena: um amontoado de gente em torno de Daniel, como se ele realmente fosse uma celebridade. Um dos seus braços estava sobre os ombros de uma garota loira bonita, os dois tiraram uma selfie juntos e ela agradeceu muito discretamente com um beijo no canto da boca dele. Revirei os olhos.

— É ele mesmo! — Nando se engasgou com o pedaço de sanduíche e Cadu começou a bater nas costas do amigo, segurando a risada.

— O Daniel? — perguntei, só por via das dúvidas. Ainda havia esperanças de que houvesse, sei lá, um outro youtuber na mesa ao lado.

— Você vê os vídeos dele também? — Os olhos de Nando brilharam em minha direção. 

— Na verdade, não. — Dei um sorriso sem graça e Nando me devolveu uma careta de confusão.

— Mas então como você sabe que o nome dele é Daniel?

— Ah, ele é filho da noiva do meu pai — respondi, sem saber esconder o desânimo no meu tom de voz. — A gente mora junto agora.

— E por que parece que você odeia isso? — Madu se pronunciou, com os olhos curiosos.

— Porque é meio esquisito começar a morar com alguém que eu não conheço.

Eu queria falar logo que eu não gostava do Daniel, mas se eu fizesse isso, passaria a impressão errada de que eu era um odiador de pessoas. Quer dizer, o Daniel deveria ter uma imagem de pessoa legal nas redes sociais, e contra minha palavra era a palavra de Nando, que faltava chorar de emoção ao ver o Daniel a alguns metros de distância.

— Faz sentido. — Madu assentiu para minha resposta, mas eu tive a impressão de que ela sabia que eu estava contando uma meia-verdade. — Vocês se mudaram pra cá há pouco tempo?

— Ontem — respondi.

— E por que vocês se mudaram? — Dessa vez, foi Vitor quem fez a pergunta. Fiquei um pouco nervoso com o olhar dele sobre mim. Acho que era porque eu não esperava que ele fosse puxar conversa comigo.

— O meu pai vai se casar outra vez e, como a filial da imobiliária em que ele é sócio fica aqui em Alto Norte, também vai poder ganhar mais  — respondi, olhando para Vitor também.

— E a sua mãe? — Nando quis saber.

Pisquei surpreso, não esperava que fossem me perguntar isso assim, na lata.

— Meu Deus, Nando, você é muito intrometido — Madu deu bronca. — Você não pode sair perguntando o que quiser sem nem pensar antes.

— Foi só uma pergunta! — Nando fez bico.

— Tá, mas e se a resposta pra essa pergunta deixar o Luca desconfortável?

— Ah, como eu vou saber?

— Eu não sei quase nada sobre a minha mãe — respondi, antes que a discussão dos dois ficasse pior. — Ela foi embora de casa quando eu era muito pequeno.

Nando ficou em silêncio e Madu olhou para ele de cara feia, como se dissesse “viu, só?”.

— Sinto muito, Luca — Cadu comentou.

— Tá tudo bem — dei de ombros, olhando para o meu sanduíche pela metade, de repente sem mais vontade de comê-lo.

— Galera, é impressão minha ou o Daniel tá vindo pra cá? — Nando quebrou o clima chato em dois segundos com aquela frase. Sua voz era a mais empolgada possível. 

Meu pescoço quase quebrou quando olhei desesperado para trás, só para confirmar que Daniel estava mesmo andando em nossa direção enquanto olhava para… mim. Quando nossos olhos se encontraram, ele sorriu e acenou. Apenas fiz uma careta, o que fez com que ele alargasse o sorriso.

Virei para frente de novo e comecei a pensar, eu e meus botões, sobre o motivo provável pelo qual Daniel decidiu desfilar até ali. Encarei meu sanduíche e esperei. Somente quando a sombra de Daniel tocou minhas mãos foi que ergui a cabeça e encontrei os olhos claros.

— Luca.

— Oi. — Apertei meu sanduíche involuntariamente. A maionese escorreu para fora do pão e pingou no meu dedo.

— Minha mãe mandou mensagem dizendo que vai atrasar um pouco pra pegar a gente.

— Tá bom — levei a mão à boca e suguei a maionese enquanto assentia. 

Daniel me olhou estranho. E eu fiquei estranho.

— Quer me dar o seu número pra eu te avisar quando ela chegar?

— Eu… Não trouxe o celular. — Meu Deus, por que eu menti? — Encontro vocês na saída.

Daniel estreitou os olhos. De repente, Nando se pronunciou:

— Como assim não trouxe o celular, você até respond…

— Nando! — Madu interrompeu, e tanto eu quanto ele pulamos de susto. — Você não vai dizer oi pro Daniel? — E então ela olhou para o garoto em pé a minha frente. — Ele é super seu fã, sabia?

— É mesmo? — Daniel deu um daqueles sorrisos brancos e perfeitos e simpáticos enquanto eu agradecia a inteligência divina da Madu para mudar de assunto. 

— Eu sou viciado nos seus vídeos, vejo todos. — Nando sorriu de orelha à orelha, ele estava muito animado.

— Valeu! Quando quiser, cola lá em casa pra gente jogar algo juntos.

— Sério? — os olhos de Nando pareciam os do gato de botas versão pidonho.

— Claro, dá pra você voltar pra casa comigo e o Luca algum dia depois da aula.

— Nossa, ia ser muito legal. Valeu pelo convite.

— Por nada. — Daniel sorriu como uma miss universo e depois voltou os olhos para mim. — Agora eu vou voltar. Até depois.

— Até — respondi.

Então ele se virou e foi embora. E todo mundo tinha me visto mentir sobre não ter levado o celular. Não consegui olhar para nenhum deles, estava com medo de perguntarem porque fiz aquilo. Mas nem eu sabia ao certo. Foi automático, como um mecanismo de defesa ou um instinto de sobrevivência.

Graças aos céus, duas garotas se aproximaram para entregar os formulários para a Madu. Isso, junto de um Nando emocionado e falante depois de ter conhecido o youtuber favorito, serviu para distraí-los.

Terminamos de comer enquanto conversávamos. Madu, Cadu, Nando e até o Vitor fizeram mais perguntas sobre mim. No final do intervalo, eles já sabiam onde eu morava — perto da casa da garota que o Nando estava a fim —, que eu gostava de pintar e de escrever e que o meu primeiro bichinho de estimação foi um peixinho azul. Quando o sinal tocou para voltarmos para a sala, eu estava contente por tê-los conhecido.

Depois de dois tempos exaustivos de Matemática e mais um de Literatura, o sinal anunciando o final das aulas tocou. Madu me deu tchau às pressas, dizendo que estava atrasada para uma reunião do grêmio. Cadu foi junto para deixá-la na sala de reunião antes de ir para casa.

Nando já tinha saído também, porque ele ia embora com a van escolar e não podia se atrasar ou era deixado para trás. 

Comecei a guardar meus materiais com calma (afinal, Amora iria se atrasar e eu tinha tempo de sobra), e me surpreendi quando Vitor se aproximou e apoiou o quadril na parte da mesa de Madu, cruzando os braços.

— Sua madrasta vai atrasar, né? — Era estranho pensar em Amora como madrasta, mas não deixava de ser verdade. Em algumas semanas, meu pai e ela estariam oficialmente casados. 

Assenti, impressionado por Vitor ter prestado atenção no que Daniel havia dito mais cedo. 

— Mas tudo bem — falei, fechando o zíper da mochila. —, porque eu ainda preciso buscar a minha carteirinha na secretaria.

— Quer companhia? Meu irmão vem me buscar depois da faculdade e, como a nossa aula acaba no mesmo horário, sempre fico sem ter o que fazer enquanto espero.

— Claro — sorri, animado. — Eu meio que me esqueci a direção da secretaria também.

Vitor riu. — Logo, logo você se acostuma.

Quando chegamos à secretaria, tivemos que esperar alguns minutos para sermos atendidos por Maya, que era a única secretária ali. Havia outros alunos novos retirando a carteirinha, entregando documentos de matrícula ou simplesmente largando seus formulários para os clubes em uma pilha enorme no balcão – o que me fez lembrar que eu precisava decidir logo para qual dos clubes iria me inscrever.

— Qual é o seu clube? — perguntei ao Vitor, enquanto esperávamos minha vez, sentados nas cadeiras almofadadas.

— Tênis. Até ano passado, pelo menos — ele respondeu.

— Você vai mudar?

— Ainda não decidi — Vitor deu de ombros. — E você?

— Também não decidi.

— Você disse que gosta de pintar. Se eu não me engano, tem um clube de pintura.

— Sério? — Como a lista de clubes era quilométrica, acabei não lendo toda ela para chegar na letra P de Pintura. Parecia o clube certo para mim. Algo que não fugia tanto da minha zona de conforto como todas as outras coisas que estavam acontecendo na minha vida.

— Próximo! — ouvi Maya chamar e me levantei, era a minha vez.

Assim que peguei a minha carteirinha das mãos de Maya, deixei um muxoxo escapar. A minha foto três por quatro (que meu pai tinha trazido ao Apus em uma das suas visitas à cidade para conferir a reforma da casa) era péssima. Eu estava com olhar de peixe-morto e o cabelo tragicamente bagunçado.

Ouvi o Vitor dar risada enquanto eu me despedia de Maya e enfiava a carteirinha no bolso, envergonhado. Começamos a caminhar para fora do prédio, lado a lado.

— Por favor, se você viu, finja que não.

— Não tá ruim.

— Tenho certeza de que qualquer uma tá melhor que a minha.

— A minha não.

— Eu duvido.

— Deixa eu te mostrar. — Então Vitor se contorceu para alcançar um bolsinho na parte de trás da mochila, sem precisar tirá-la das costas. 

Senti-me extremamente frustrado por reparar em como a camiseta branca do uniforme se estreitou contra o corpo do Vitor enquanto ele pegava a carteirinha. Mordi as bochechas por dentro e olhei para o outro lado, com uma sensação horrível de estar fazendo algo errado. 

— Aqui — Vitor chamou e me entregou sua carteirinha.

Deixei escapar um sorriso. Era uma foto dele quando criança, não tinha nada de constrangedor. Suas bochechas apenas eram mais rechonchudas e seu cabelo mais desgrenhado, o resto estava idêntico ao que ele era hoje: cílios grandes, pintinhas e enormes olhos castanhos.

— Quantos anos você tinha aqui? — perguntei, enquanto devolvia a ele o objeto.

— Dez.

— Deve ser legal estudar aqui desde sempre. 

— Nem tanto — ele ergueu as sobrancelhas, parecendo ponderar sobre o assunto. — Tem algumas coisas nesse colégio que são estranhas.

Franzi o cenho.

— Tipo o quê?

— Tipo a diretora. Ela é meio pirada.

Não pude perguntar o que ele queria dizer com “meio pirada”, porque o celular do Vitor vibrou e ele disse que o irmão havia chegado. Fomos juntos até a saída e nos separamos depois de passarmos as carteirinhas pela catraca. 

Quando me vi perdido em meio ao formigueiro de alunos do lado de fora, debaixo do sol ardente do meio-dia, me arrependi por não ter dado o meu número de celular ao Daniel. Tentei não me desesperar e procurei um lugar para esperar por Amora sentado.

No caminho para um banco de madeira vago, perto de alguns outros alunos que pareciam esperar suas caronas, percebi uma movimentação. Acabei encontrando Daniel, outra vez, no centro de um amontoado de pessoas. Passei reto e fui até o banco.

Um depois do outro, os fãs de Daniel foram indo embora. Eu queria mexer no celular enquanto esperava, mas ficaria sem graça se Daniel acabasse me vendo com o celular nas mãos depois de eu ter mentido sobre tê-lo deixado em casa. O que era ridículo, porque Daniel deveria ter me visto escutando música com o celular mais cedo, no carro.

Apenas peguei minha biografia de Van Gogh na mochila enquanto tentava não me sentir horrível por ter mentido por nenhum motivo plausível.

Concentrado no livro, me assustei quando alguém se sentou ao meu lado.

— Lendo a Bíblia? — Daniel perguntou, apoiando o cotovelo no apoio do banco.

Apenas olhei para ele em silêncio e depois voltei a ler. Mas eu só fingi porque não conseguia me concentrar na leitura com ele me encarando.

— O que foi? — perguntei, fechando o livro.

— De 0 a 10, o quanto você me odeia?

Dez!

— Por que tá perguntando isso?

— Porque você mentiu sobre o celular só pra não precisar me dar seu número.

Engoli em seco. Eu não esperava que ele fosse me confrontar assim. Acabei travando e não consegui me explicar, como se existisse uma explicação. 

— Olha, não tem problema se você não quer me dar seu número, tá? — Será que ele tinha um lado bom? — Mas em troca seria legal se você ficasse de boa sobre a festa que eu tô querendo dar lá em casa.

Tinha muita coisa errada naquela última frase. Começando por “em troca” e terminando com Daniel falando tão naturalmente “lá em casa”. Parecia um pesadelo.

— Eu meio que não preciso fazer nada em troca por não querer te dar meu número.

Daniel suspirou e olhou para frente. Seu rosto, de perfil, parecia perfeito para um desenho. Me odiei por me sentir mal por ele. Se eu não tivesse surtado e mentido…

— Duas condições — falei, e, no mesmo instante, os olhos azuis acinzentados de Daniel cravaram nos meus. — Sem chamar gente demais e, por favor, sem envolvimento com drogas.

Daniel sorriu torto.

— Relaxa, sou do tipo irresponsável inteligente. Vai ser só uma festinha.

Algo sobre o brilho travesso nos olhos claros de Daniel me fazia temer a palavra festinha.


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Notas finais do capítulo

De 0 a 10, o quanto vocês amam o Daniel?

Até o próximo capítulo!



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