Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 1
Era verão quando vi seu rosto


Notas iniciais do capítulo

Oi, eu sou a Drica e Além de Irmandade é uma história que já dura anos no meu coração e nos três computadores que eu tive desde o seu primeiro rascunho.
Eu comecei a escrevê-la sem pretensão, porque eu queria fugir das aulas chatas de química. Depois, continuei a escrever porque queria fugir da sensação estranha de não me sentir completa na faculdade. Parei de escrever por alguns anos porque (e aqui caberia um textão) eu me vi em um trabalho exaustivo e, mais tarde, em um relacionamento abusivo, do qual eu me livrei no mundo físico, mas que ainda borda pesadelos e dias de pura tristeza dentro do meu mundo emocional.
Além de Irmandade voltou como um resgate de mim mesma e dos personagens que me chamam quase todos os dias para me contar algo novo sobre eles. Eu amo isso. E por isso vou reescrever toda essa aventura sobre amor e autoconhecimento e, no processo, espero tocar o coração de alguém que precisa, assim como eu, de uma história pra mergulhar e se esquecer do mundo.
Obrigada aos leitores que me acharam até nos confins do Instagram para perguntar se tava tudo bem. Obrigada ao meu melhor amigo, Higgor, o eterno primeiro e o último leitor de Além de Irmandade, que me apoiou incondicionalmente. E ao Daniel, que fez essa linda capa que um dia, quem sabe, vai estar na prateleira de alguma livraria famosa.
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Cortada a faixa de reinauguração, podem entrar. Boa leitura :)



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Verão, 2014.

A mudança drástica chega para todo mundo, em algum momento. Ninguém é imune à vontade absurda que o Universo parece ter de nos ferrar. Meu pai costuma dizer que se ferrar é crescer, e, querendo ou não, não dá para não crescer. Ou seja: não dá para não se ferrar.

E para estar ferrado basta um instante. Em um dia como qualquer outro, seu pai pode entrar no seu quarto e dizer que está de casamento marcado e um contrato de compra de imóvel assinado. E o imóvel pode ficar em outra cidade, bem longe da escola ou da casa do seu melhor amigo.

É, esse era o novo roteiro que o Universo resolveu colocar no lugar do anterior, no qual eu era uma criança sem mãe e com dificuldade para socializar e expressar as próprias emoções. Era verdade que agora eu teria uma mãe. Mas, sei lá, será que para isso eu precisava perder todo o resto?

Geralmente, esse tipo de coisa acontece para que a gente resolva um problema que não tem solução porque, geralmente de novo, esse problema tem a ver com um padrão emocional esquisito, sobre um trauma obscuro que na verdade é bem comum, mas que vai nos ferrar pelo resto da vida.

O meu padrão certamente era algo entre me sentir deixado de lado e não fazer nada quanto a isso. Sobre não conseguir manter amigos na escola, sobre as decisões que meu pai tomava por nós dois e sobre as razões pelas quais minha mãe nos abandonou. Talvez o Universo só quisesse me fazer sentir tudo isso de novo, mas em um lugar diferente.

— É bem ali. Nossa casa nova. — Como se estivesse só esperando meu pai falar primeiro, logo depois a voz feminina do GPS anunciou o destino à nossa direita.

Meu pai deu a seta e endireitou o carro em frente a um portão cor de chumbo. Olhei pela janela. Por trás do ferro vazado do portão, e sob a forte chuva que nos perseguiu durante as quatro horas de viagem, a imagem da casa de dois andares parecia um sonho. Não exatamente um sonho bom. Estava mais para um daqueles que beiram o pesadelo, em que você se vê em um lugar estranho e tudo está meio azul e melancólico. Será que mais alguém sonhava azul?

— O que achou, Luca?

Olhei para o meu pai, que aparentemente estava procurando o controle remoto do portão nos bolsos da sua mala de mão. Quando seus olhos alcançaram os meus por um breve instante, eu soube que não poderia decepcioná-lo. Meus olhos miraram a casa outra vez. Era…

— Bem grande. — Foi o melhor que pude pensar para dizer. E pareceu o bastante para meu pai, porque sua animação parecia a mesma de um minuto atrás, não diferente de como ele estava antes da viagem estressante de quatro horas debaixo de uma tempestade, ou do momento em que ele tinha levantado da cama no Oompa Loompa mode on.

Ele estava feliz. E eu me sentia culpado por não estar.

— Seu quarto aqui é bem maior. Vai ter mais espaço pra você estudar e guardar as suas telas — ele ia dizendo à medida que testava os botões do pequeno controle. Eram só dois, então na segunda tentativa o portão se abriu.

Estacionamos na garagem de dois lugares. A outra vaga era de Amora, a noiva do meu pai. Ela estava para chegar a qualquer momento.

— Quer fazer as honras? — Depois que saímos do carro, meu pai se aproximou e tirou algo do bolso da sua jaqueta, estendendo em minha direção. Eram as chaves da nossa nova casa.

Qual seria sua reação se eu dissesse "não"?

Com um suspiro, peguei as chaves da mão dele e fui até a porta da frente, que era desnecessariamente grande. Quando encaixei a chave na fechadura, encarei o chaveiro brega que meu pai tinha mandado fazer. Era metade de uma casinha de prata, com uma janelinha em formato de coração e "Antony" gravado em letras cursivas na parte de trás (como se alguém precisasse colocar o próprio nome no chaveiro de casa). Amora tinha a outra metade da casinha em sua própria cópia da chave, com direito a nome gravado também.

Girei a chave e abri a porta. Não sei por que, mas eu estava esperando que a casa já estivesse toda mobiliada, como o mostruário de revista que eu sabia que era o sonho de consumo do meu pai. Mas havia só uns poucos móveis, aqui e ali.

— O restante das coisas chega amanhã — ele explicou, fechando a porta atrás de nós para que o vento gelado parasse de trazer os pingos de chuva para dentro. Pela primeira vez no dia, eu senti algum desânimo em sua voz. Acho que ele queria muito receber Amora com tudo pronto.

A primeira coisa que se via ao entrar eram as escadas e, ao redor delas, a visão se estendia por quase todo o andar. Aparentemente, meu pai tinha mandado derrubar todas as paredes da casa. Eu tinha visto uma foto, no celular dele, do primeiro andar antes da reforma, e naquele instante eu me sentia no final de um episódio de Irmãos à Obra, em que o conceito aberto seria o responsável por transformar a casa em um lar de verdade. 

Mesmo assim, conviver em conceito aberto era um desafio para alguém como eu, que adorava me esconder em cantinhos mesmo quando éramos só eu e meu pai em casa.

O hall de entrada era basicamente um pequeno espaço livre que dividia a sala de TV, à direita, e três cômodos menores, à esquerda. Um deles era uma sala ainda solitária, que estaria totalmente vazia se não fosse pela estante funcionando como divisória para sala de jantar, nos fundos. Por trás das prateleiras desocupadas da estante, dava para ver a ponta de uma mesa de madeira.

Os outros dois cômodos à esquerda eram os únicos que tinham paredes e portas fechadas, então imaginei que seriam o banheiro e o armário.

A sala à direita estava um degrau abaixo do restante do piso, e imaginei que quando estivesse toda mobiliada, seria um daqueles cantinhos aconchegantes que fazem a gente querer gastar um dia inteiro ali. Agora, no entanto, o suporte de parede para TV ainda estava sem TV, e o sofá enorme reinava solo, contornando em L duas paredes inteiras. Uma dessas paredes, a que dividia o hall da sala, era só uma meia-parede, honrando o conceito aberto. 

O mais legal sobre aquela parte da casa era o pé direito alto, que dava vista total da sala para quem quisesse se debruçar sobre o mezanino do andar de cima.

— Vou subir e escolher meu quarto — falei, indo em direção às escadas.

Eu tinha passado o último mês encaixotando todas as minhas coisas enquanto ouvia minha playlist triste de jazz e R&B. As caixas tinham sido transportadas para cá na semana passada, e estavam empilhadas no corredor do segundo andar desde então. Minha missão naquela tarde chuvosa era arrastá-las para o quarto e organizar tudo da melhor forma possível. E com "melhor forma possível" eu queria dizer encontrar ao menos o uniforme do Apus, meu novo colégio, somente para que, na manhã seguinte, ao invés de ficar procurando minhas roupas feito louco, eu pudesse perder um pouco mais de tempo dormindo ou tomando café da manhã.

Meu pai dizia que eu só era organizado para ganhar tempo para ser preguiçoso. Era uma ótima forma de me definir, para falar a verdade.

Eu mal tinha pisado no primeiro degrau da escada quando a voz do meu pai me fez travar:

— Não vai esperar o Daniel chegar pra escolherem o quarto juntos?

— Não.

Mas aí uma buzina soou lá fora e o celular do meu pai começou a tocar. Tarde demais para correr para o quarto e fingir que eu estava dormindo. Meu estômago deu um nó quando ele atendeu a ligação.

— Oi, Amora, algum problema?

O vento frio e molhado entrou quando meu pai abriu a porta para espiar lá fora. Eu puxei as mangas do meu moletom até que minhas mãos sumissem dentro delas. Um trovão barulhento me fez encolher de susto.

— Você colocou pilha no controle? — ele continuou, e eu supus que Amora não estava conseguindo abrir o portão para entrar. — Espera um segundo, vou tentar com o meu.

Meu pai pegou seu controle, até então largado sobre a meia-parede entre o hall e a sala, e testou os botões várias vezes. Enquanto isso, eu estava tentando decidir se ficava ali ou se aproveitava a confusão e fugia lá para cima, mas adiar o encontro não era cancelar o encontro.

— Não funcionou — ele disse, o celular grudado na orelha. — Será que acabou a luz?

Quando testou o interruptor ao lado da porta, nada aconteceu. Só outro trovão.

— Estamos sem energia, mesmo. Vamos ter que abrir no manual. Você tem a chave pra destravar o motor do portão? Quer que eu vá aí fazer isso? — perguntou, preocupado. Depois de uma pausa, ele finalizou: — Ah, ótimo. Vou esperar vocês aqui, então.

Meu pai deixou só uma fresta da porta aberta, parecia ansioso, os olhos grudados na cena caótica do lado de fora. Ouvi a porta do carro de Amora abrindo e meus olhos acompanharam a silhueta de um garoto de moletom de capuz e jaqueta jeans, mergulhando na tempestade.

Meus olhos voltaram para dentro de casa quando o controle remoto do portão escorregou das mãos do meu pai como se fosse sabonete no banho. Quando atingiu o piso, a carcaça abriu, a bateria voou para fora, e um dos botões veio parar perto dos meus pés, rodopiando feito uma moeda até parar quieto. 

Meu pai se abaixou na hora e, de joelhos, começou a juntar os pedaços. 

A cena era meio triste. A cada peça que ele juntava do chão, lançava um olhar para fora, onde os parabrisas do carro azul de Amora sacudiam para um lado e para o outro debaixo da chuva, e o garoto do moletom lutava para destravar o modo manual do portão. 

Eu sentia o nervosismo do meu pai como se minha cabeça fosse uma esponja. Fiquei olhando para ele, parado, sem saber se havia o que eu pudesse ou, mais importante, quisesse fazer.

Quando seus dedos longos e pouco delicados juntaram com tanto cuidado o pequeno botão largado ao lado dos meus tênis, apertei os dentes. E como se alguém tivesse soprado pó de epifania no meu rosto, entendi naquela cena o que significava gostar tanto de alguém para querer se casar.

Eu costumava pensar que casamento era quase como o último ponto de ônibus: dá para descer e finalmente ir para casa descansar. Mas o desespero do meu pai era de dar dó. Ele só queria impressioná-la, fazer com que tudo estivesse perfeito para Amora, bordar nuvens sobre o asfalto para que ela flutuasse ao invés de precisar tocar o chão. Talvez o casamento fosse ainda mais ansioso que dar as mãos ou apresentar a noiva para o filho. Talvez fosse um “eu te amo” tão forte que não se sabe o que vai ser depois.

E eu nunca havia visto tanta delicadeza no meu pai como foi para ele tentar encaixar aquele botão quebrado de volta no lugar.

Olhei para fora: o garoto encharcado no portão. Para dentro: meu pai em uma crise porque estava consertando um controle de portão elétrico no meio de um apagão. Algo subiu queimando no meu peito e eu peguei o guarda-chuva transparente que meu pai havia encostado ao lado da porta.

Abri o guarda-chuva e saí correndo até o portão, explodindo poças d’água com os pés. O vento frio atingiu meu rosto e, mesmo com o menor dos movimentos, meus lábios rasgaram. Passei a língua sobre eles e senti o gosto de sangue.

O garoto encharcado, Daniel, estava agachado do outro lado do portão, com o capuz cobrindo a cabeça. Ele tinha passado um dos braços pelas grades e tentava encaixar uma chave na pequena fechadura do motor elétrico, que estava do lado de cá. Era praticamente uma missão impossível.

Também me abaixei e fiquei de frente para ele, com o cabo do guarda-chuva apoiado no ombro. A parte do seu rosto que consegui ver primeiro foram os lábios, que tremiam de frio. O restante estava escondido pelo capuz.

Quando notou minha presença, Daniel levantou o rosto na minha direção. Os fios do seu cabelo escuro como carvão estavam grudados no rosto com a água da chuva. Seus olhos eram da cor da tempestade que caía. Nos encaramos por dois segundos e, ainda protegido pelo meu guarda-chuva, estendi minha mão para ele.

Daniel demorou para entender o meu gesto, então olhei para a chave na mão dele e depois encarei seu rosto outra vez. Ele percebeu minha intenção e logo colocou o objeto na palma da minha mão, recolhendo o braço para perto do corpo logo em seguida. A ponta dos seus dedos estava muito gelada.

Encaixei a chave na fechadura do motor do portão, sentindo o olhar do garoto sobre o meu rosto. Ouvi um clique ao girar a chave.

— É só isso? — perguntei, devolvendo a chave para ele por entre as grades.

— Você tem que abrir essa portinha — Daniel respondeu, enquanto pegava o objeto da minha mão e o colocava no bolso do jeans ensopado. Sua voz era bonita, grave e doce.

— Mas eu abri.

— Eu quis dizer puxar. 

Puxei a tampinha da fechadura e ela abriu na minha direção, em um movimento duro. Quando olhei para frente, esperando um olhar de aprovação por ter feito a coisa certa (ou de reprovação por ter quebrado uma parte do motor que sequer abria), acabei dando de cara com um par de pernas. Daniel já tinha se levantado.

Fiquei em pé também e só então percebi que o garoto a minha frente era muito alto. Meus 1,74 estavam muito abaixo do topo da sua cabeça. Ele agarrou as grades do portão e começou a puxá-las pouco a pouco para esquerda, até que estivesse todo aberto.

Quando paramos para esperar Amora entrar com o carro, me senti estúpido por estar protegido pelo guarda-chuva enquanto ele continuava tremendo de frio sob a chuva forte. Engoli a vergonha e dei um passo para o lado, erguendo o guarda-chuva para que ele se abrigasse ali também.

Daniel me olhou de um jeito estranho e depois foi a sua vez de dar uma passo para perto. Ele acabou batendo a cabeça na parte de dentro do guarda-chuva porque eu não consegui levantar o suficiente para que ele coubesse ali embaixo. 

— Desculpe — ergui ainda mais o meu braço, mas ele acabou pegando o cabo da minha mão. Seus dedos gelados encostaram nos meus e eu quase deixei o guarda-chuva cair no chão.

— Deixa que eu… — ele começou, indicando que ele seguraria o guarda-chuva.

— Tá bom — falei logo, de uma vez.

Com as mãos livres, fechei o zíper do meu moletom até o pescoço e coloquei o capuz, puxando os cordões até que só minhas bochechas e nariz ficassem expostos. Por que eu estava com tanta vergonha? Era só um garoto dividindo um guarda-chuva comigo.

O silêncio constrangedor foi preenchido pelo som do acelerador do carro de Amora, passando pelo portão aberto. Agora, Daniel precisava fechá-lo outra vez. Ele olhou para mim, como se estivesse esperando algo, e me deu o guarda-chuva de novo.

Segurei-o sobre a sua cabeça, sentindo minhas costas se molharem um pouco, enquanto Daniel fechava o portão. Ele também travou o motor de volta para o automático, agachado assim como estávamos há um minuto.

Quando Daniel se levantou, fiquei na ponta dos pés para que ele não batesse a cabeça de volta na parte interna do guarda-chuva. Não saberia dizer se foi impressão, mas imaginei ter visto algo parecido com um sorriso no rosto dele. 

Daniel pegou o guarda-chuva das minhas mãos novamente, estávamos tão perto que dava para sentir seu perfume misturado com o cheiro de chuva. 

— Vai na frente, eu seguro.

Assenti e  movimento fez meu capuz escorregar da cabeça. Virei de costas para o Daniel e comecei a andar devagar. Ele estava logo atrás, feito um segurança, nos protegendo da chuva. Andei olhando para o chão e desviei cuidadosamente de uma poça na calçada. Mas acho que Daniel estava olhando para outra coisa, porque pisou na poça e espirrou água na minha calça.

— Merda, foi mal — ouvi ele reclamar.

Pressionei os lábios para não rir e senti o machucado na minha boca doer. 

Chegamos na porta e corri para dentro, como uma criança que se esconde atrás do pai quando está com medo de estranhos.

Daniel deixou o guarda-chuva do lado de fora da porta e entrou logo depois.

— Obrigado pela ajuda, meninos.

— Tudo bem — respondi, acanhado.

— Deixa eu apresentar vocês dois — ele disse animado e eu quis morrer. — Daniel, esse aqui é o Luca, meu filho. Luca, esse é o Daniel, seu novo irmão.

Daniel, encharcado e pingando água da chuva pelas roupas, lançou-lhe um olhar enviesado. Eu fui ainda mais óbvio e fiz uma careta bem expressiva de desgosto.

Meu pai era muito sem noção às vezes. Ele tinha essa mania de acreditar que era muito legal e que tudo o que dizia era incontestavelmente certo e cabia perfeitamente dentro da situação. Acontece que ele era só inconveniente mesmo. Quer dizer, que pai apresenta o filho da noiva como “seu novo irmão”? Ninguém vira irmão de alguém assim do nada.

O hall estava escuro, e a fraca luz do dia era o suficiente apenas para se enxergar contornos e a cor levemente bronzeada da pele de Daniel, que brilhava por causa da água da chuva grudada em seu rosto e na parte exposta do pescoço que o moletom não cobria.

Nos últimos meses, eu tinha evitado saber, falar ou pensar sobre esse garoto. Fingir que ele não existia por tanto tempo havia sido uma forma estúpida e infantil de atrasar esse momento. Mas agora ele estava na minha frente, e o que tinha sido minha estratégia para preservar minha estabilidade mental só serviu de efeito reverso. Nervoso, eu não conseguia falar nada.

Para ser sincero, eu queria empurrá-lo de volta para fora e deixar que Daniel vivesse na garagem até que eu me acostumasse com a ideia de que alguém desconhecido me veria tomar café da manhã de pijamas e colocaria a bunda na mesma privada que eu. Os próximos meses seriam uma luta pela minha própria privacidade.

Para nos salvar do silêncio constrangedor, veio o barulho da porta se abrindo abruptamente, e todos nós olhamos naquela direção. 

Amora segurou a porta com o quadril, já que os braços estavam ocupados empilhando três caixas que pareciam pesadas. Enquanto ela entrava, o vento forte trouxe metade da tempestade para dentro, um relâmpago clareou o céu seguido de um trovão. Meu pai correu para ajudar a noiva com as caixas e, enquanto ele fechava a porta, os dois trocaram um sorriso amoroso.

E foi aí que me dei conta de que, a partir daquele momento, querendo ou não, aquela seria a minha família. E eu precisava admitir que fiquei horrorizado e meio deprimido com essa percepção. Eu estava muito bem sem uma mãe e como filho único, obrigado. 

Mas, por outro lado, ver meu pai feliz dava algum sentido àquele caos. Eu ainda tinha 15 anos e uma vida pela frente. Já meu pai tinha passado anos me criando sozinho, lidando com a experiência de abandono, sem esperança de encontrar um novo amor. Eu não poderia ser egoísta a ponto de privar meu pai de viver algo tão especial e merecido quanto estar perto de alguém que o amava de verdade. Finalmente, ele poderia recomeçar longe de tudo que o lembrava a minha mãe.

Mesmo que não fosse o que eu queria, era o que ele precisava. 

Amora e seu filho também estavam mergulhando no desconhecido. Estávamos todos no mesmo barco. Alguns mais empolgados que outros, era verdade, mas todos em um lugar novo e repleto de um futuro incerto.

— Eu tentei trazer o máximo de caixas que eu consegui, mas ainda sobraram algumas no porta-malas. — Amora dividiu o peso com meu pai, que só não se apropriou de todas as caixas porque ela insistiu que se não carregasse pelo menos uma se sentiria inútil. — Acho que é melhor esperar a chuva passar pra pegar as outras, se não vai trazer mais sujeira aqui pra dentro.

Amora, então, percebeu que eu estava ali, e, como se eu tivesse brotado do chão de repente, ela arregalou alegremente seus olhos azuis e sorriu para mim. — Luca, oi! Eu não te enxerguei aí quando entrei; esse clima de hoje deixou tudo muito escuro, pena que acabou a luz. Como é que você está?

— Bem — respondi, tímido, colocando os cabelos atrás da orelha.

Eu gostava de Amora, gostava muito. Perto dela o meu pai ficava notavelmente feliz e, apesar desse jeito meio afobado e expansivo – que inclusive combinava muito bem com a expansividade do meu pai, de forma que ele se assossegava por influência da personalidade forte dela –, todas as vezes que ele a trouxe para casa, Amora soube me tratar com a privacidade que eu tanto prezo, e, ao mesmo tempo, conseguia ser muito carinhosa comigo. Ela era daquele jeito que somente mães que amam ser mães conseguem ser.

Mesmo assim, eu ainda não tinha me acostumado totalmente a ela. Não nos víamos com tanta frequência porque quem se dispunha a viajar horas para que pudessem se ver, na maioria das vezes, era o meu pai. Será que Daniel também tinha ido com a cara dele da mesma forma que eu tinha simpatizado com Amora?

— Vocês chegaram quando, Tony? — Amora olhou para meu pai, limpando os tênis no tapete. 

— Tem uns 10 minutos. — Ele ajeitou melhor as caixas nos braços. — Pra onde essas aqui vão?

— Pro nosso quarto. — Amora olhou para mim. — Falando nisso, já escolheu o seu quarto, Luca?

— Não deu tempo. — Meu tom de voz provavelmente entregou o quanto eu queria ter feito isso antes que eles chegassem, porque Daniel me encarou de um jeito meio irritado. Ou ele estava me achando um babaca por estar falando com Amora normalmente sendo que para ele nem oi direito eu dei.

— Não se preocupe, Dandan. — Amora leu a expressão do filho. — Os quartos são exatamente iguais. Um deles tem uma sacada maior, mas é pouca coisa.

Eu não sabia se me encolhia de vergonha alheia ou se ria por causa do apelido. O garoto deveria ter mais de 1,80 e o apelido dele era Dandan. Parecia… desproporcional. Mas era fofo.

— Mãe! — Daniel demonstrou todo seu constrangimento com uma expressão impagável. Pressionei meu lábios, me segurando para não rir, e meu machucado doeu outra vez. Mesmo assim, a vontade de rir me deu algum tipo de conforto momentâneo.

— Amora, isso aqui é pesado — meu pai reclamou, tomando atenção exclusiva da noiva. — Vamos levar as coisas lá pra cima e os meninos decidem sozinhos qual quarto fica com quem.

— Ah, sim, vamos. — Amora sorriu e logo se virou para as escadas. Mas parou um segundo depois e virou o rosto em nossa direção: — Nós vamos pedir o jantar mais tarde, meninos. Por enquanto só arrumem as coisas de vocês. E, Daniel, vá direto tomar um banho, ok? O chuveiro é à gás então não precisa de luz elétrica pra água quente, ainda bem. — Então, se virou para o meu pai outra vez e o seguiu escada a cima. — Quando é que o pessoal da mudança vai chegar com o restante das coisas, Tony? Temos que ver o horário certinho porque nós vamos estar no trabalho e os meninos...

A voz de Amora foi sumindo aos poucos, e Daniel e eu restamos sozinhos no hall, em silêncio. Eu estava muito nervoso, então simplesmente dei as costas para ele e comecei a subir as escadas. 

Daniel não disse nada, mas logo seus passos ecoaram pelo hall, junto aos meus. A água dentro dos tênis dele faziam splish-splash cada vez que Daniel pisava nos degraus. 

Paramos em frente a duas portas de madeira clara, no corredor abarrotado de caixas de papelão com a nossa mudança. Atrás de nós havia apenas o mezanino e a vista de cima da sala de TV.

Era fácil deduzir quais eram as portas dos nossos futuros quartos, porque, tirando elas, restavam apenas duas, à direita. Uma delas era do banheiro e a outra, de onde vinham as vozes do meu pai e de Amora, era o quarto dos dois.

— Pra mim tanto faz — Daniel disse. 

— Pra mim também. 

Olhei para a porta do banheiro. Talvez fosse melhor ficar com o quarto mais próximo dele. Sem falar que o quarto perto do banheiro também tinha vista pros fundos da casa, onde estavam o jardim e a piscina. Era fácil me imaginar estudando com aquela vista.

Apontei para o quarto mais a direita.

— Eu fico com aquele — dissemos ao mesmo tempo. 

Olhei para Daniel depressa e, infelizmente, ele estava apontando para o mesmo quarto que eu estava.

— Achei que pra você tanto fazia — ele falou, erguendo as sobrancelhas; elas eram tão escuras quanto a cor dos seus cabelos e faziam seus olhos claros destacarem.

— Você disse primeiro que tanto fazia. Eu só concordei pra ser educado — rebati, cruzando os braços. 

— E não quer mais ser educado? — Pelo tom de voz, parecia que Daniel estava prestes a rir. Mas eu não sabia se era rir de achar engraçado ou rir de achar idiota.

— Eu pensei melhor. 

— Eu também, e eu quero o quarto da direita. 

— Eu também quero. 

— Também quer o quê? — Era a voz do meu pai. Ele e Amora estavam voltando do quarto deles. 

Ao invés de responder meu pai, apenas olhei para o Daniel.

— Estamos brigando pelo quarto da direita — ele contou. 

— Mas os quartos são idênticos, meninos. E o quarto com a sacada maior nem é esse, é o da esquerda — meu pai falou, meio frustrado e com aquela voz que adultos usam com crianças. Ele não queria que o filho dele estivesse brigando com o filho da noiva dele.

E realmente não chegava a ser uma briga. Mais ou menos.

— Por que você não pode ficar com o quarto da esquerda, filho? — Amora intercedeu por mim. Às vezes, eu sentia que ela estava mais do meu lado que meu pai. Ele tinha essa mania de querer agradar as outras pessoas e eu acabava entrando na onda para agradar ele. Era um ciclo sem fim.

— É que, pra gravar, o quarto da direita é melhor, fica mais longe do movimento da rua.

— Gravar o quê? — perguntei, curioso. 

— Eu tenho um canal de jogos no YouTube — Daniel respondeu, olhando para mim por um segundo.

— Ah… — Será que ele era mais um daqueles garotos que jogavam Minecraft e começavam o vídeo gritando um “FALA, GALERA”?

Amora voltou a falar:

— As paredes são bem grossas e o vidro das janelas e da sacada é bem reforçado, por causa da segurança, então também abafa bastante o som — argumentou, olhando para o filho. — E eu fico feliz ao quadrado, porque você não vai ouvir o barulho de fora, mas também  não vai acordar a vizinhança, amém, graças à Deus.

Quanto ao Minecraft eu ainda não sabia, mas pelo jeito ele gritava, sim. Eu mal podia esperar para saber como era morar com um youtuber que costumava acordar os vizinhos.

— Bom, se as paredes são grossas, eu fico com o da esquerda. — Daniel não olhou para mim quando disse, apenas saltou por sobre uma das caixas de papelão e foi conferir seu quarto novo. Ele abriu a porta e olhou lá dentro brevemente. — Legal. — Depois saiu em direção ao banheiro. — Vou tomar um banho, tô congelando. Mãe, traz uma toalha pra mim? 

— Tá, só hoje, porque eu sei que você vai passar meia hora procurando mesmo que eu te fale onde as toalhas estão. — Amora se virou e começou a andar em direção ao próprio quarto.

— E shampoo e sabonete também! — Daniel gritou do banheiro.

— E as palavras mágicas? — ela gritou de volta. 

— Você é linda! 

— Correto! 

Meu pai deu risada, e eu acabei sorrindo junto. Parte por causa deles, parte porque eu tinha conseguido o quarto que eu queria.

— Sua cama já tá no quarto — meu pai contou, na falta do que dizer. 

— Sério?

Ele assentiu. 

— Compramos o mesmo modelo pra você e pro Daniel. Não tem os outros móveis, mas pelo menos não vai precisar dormir no chão. 

— Vou ver — falei, desviando de duas caixas para chegar na porta.

O meu quarto era grande, branco e vazio. As cortinas ainda não tinham sido postas, e estavam amontoadas em um canto, no chão. A cama era mesmo o único móvel ali, mas parecia confortável. Na outra casa, eu tinha uma cama de solteiro espremida entre a janela e uma escrivaninha. Essa era de casal, com bastante espaço dos dois lados para trocar o lençol sem drama. 

Corri até ela e me joguei no colchão. As molas me lançaram para cima uma única vez e balançaram quase nada antes de parar. Era macio. 

— Gostou? — Ouvi a voz do meu pai na porta. 

Olhando para o teto, levantei o braço direito e depois o polegar para cima. 

— Que bom, o colchão foi caro — ele falou, mas não era como se realmente se importasse com o preço. Ele só falava coisas assim porque tinha medo de que eu me tornasse uma pessoa que não sabe dar valor às coisas que tem. — Só não vai dormir aí agora, tem que pelo menos trazer as suas caixas pra dentro, combinado?

Levantei o braço e o polegar outra vez e depois disso ouvi seus passos se afastarem.

Demorei alguns segundos apreciando a maciez da minha nova cama antes de levantar para fechar a porta. Amora passou bem na hora, carregando uma toalha branca e uma cestinha com shampoo, sabonete e uma esponja. Ela sorriu para mim assim que nossos olhos se encontraram, sem interromper a caminhada até o banheiro, de onde já dava para ouvir o barulho de chuveiro ligado e água caindo no piso. 

Uma nuvem de vapor de água quente saiu da fresta da porta quando Amora entrou, e, por um segundo, eu vi Daniel lutando para tirar a camiseta encharcada, colada na pele. Amora riu e começou a ajudá-lo. 

Fechei a porta do quarto, antes que eu invadisse a privacidade de Daniel, e me encostei na porta. No mesmo instante, meu celular vibrou no bolso do moletom. 

Havia uma mensagem de uma hora atrás e outra que tinha acabado de chegar. As duas eram do Matheus, meu melhor amigo. Ele era meio que meu único amigo também. Nossos outros amigos eram primeiro amigos dele e depois meus. O que significava que Matheus tinha sido meu único amigo próximo desde a segunda série, época em que ele se mudou para a mesma rua que a minha e nossos pais começaram a revezar a carona até a escola.

“Me avisa quando chegar”.

“Aqui já parou de chover”.

Digitei uma resposta:

“Aqui ainda tá chovendo. E estamos sem luz”. 

Ele visualizou na hora e começou a digitar. 

“Sério? O tio Tony deve ter ficado triste”. 

Fui até a cama e me sentei no colchão enquanto escrevia a resposta:

“Pior que sim. Ele queria que os móveis já estivessem aqui, mas tudo que temos é um sofá, uma mesa, uma estante e três camas”. 

“Amanhã já vai fazer sol e o resto das coisas vão poder ser entregues”. 

— Espero que sim — falei em voz alta. 

Outra mensagem do Matheus surgiu na tela:

“E falando em três camas… Como foi com o filho da noiva do tio Tony?”.

“O filho dela não é tão legal quanto ela. Acabamos de discutir pra ver quem ficava com o melhor quarto (eu acabei ganhando graças a Amora). Sem falar que meu pai apresentou ele pra mim com a gloriosa frase “esse aqui é seu irmão” ???????”

“O tio Tony kkkkkkkkkk”. 

“Não é engraçado”. 

“Desculpa (rindo mesmo assim)”. 

Revirei os olhos. No mesmo instante, ouvi um grito animado do meu pai, lá do andar de baixo:

— A luz voltou! A luz voltou!

— Uhul! — Amora gritou de algum outro canto da casa. Dei risada. 

“A energia voltou” digitei. “Preciso trazer minha mudança pro quarto e achar meu uniforme. E com sorte morrer antes de ter que ir pra escola amanhã”.

“Credo, não faz piada com morte”.

“É que eu tô muito ansioso”.

“Vai dar tudo certo. As aulas começaram faz só dois dias, tem muita gente que falta. Com certeza você vai encontrar um amigo que também é novato e tá tão nervoso quanto você”.

“Sei lá, ultimamente o universo tá de mal comigo”.

Não esperei para ver a resposta do Matheus. Só bloqueei a tela, enfiei o celular no bolso e me joguei de costas no colchão. Ouvi quando Daniel saiu do banheiro, revirou alguma caixa e caminhou até o seu novo quarto. Será que as paredes eram realmente tão reforçadas assim? Mas depois que ele entrou, não ouvi mais nenhum barulho. 

Após alguns minutos aproveitando meu colchão novo, resolvi me levantar e fui em direção ao corredor. Quanto antes eu trouxesse as caixas para o quarto, antes eu poderia descansar (ou sufocar de ansiedade até o dia seguinte). 

Assim que saí do quarto, respirei fundo, as mãos na cintura, encarando as torres de caixas de papelão. Metade delas estava rabiscada com minha letra, em giz de cera colorido. A outra metade era de Daniel. 

Ele aparentemente era bem prático e eu conseguia ver isso só pela forma como tinha classificado suas caixas com os essenciais “ROUPA”, “TÊNIS” e “COISAS”, escritos em canetinha preta numa caligrafia de quem tinha feito aquilo às pressas (ou a letra dele era só feia mesmo).

As minhas caixas eram praticamente um universo paralelo, com muito mais que três itens. Para os calçados, por exemplo, eu tinha escrito “pé” em amarelo. As meias também estavam ali. Havia duas caixas só para as minhas tintas, e elas se diferenciavam por “GUACHE” em letras maiúsculas vermelhas e “à óleo” em minúsculas azuis. A diferença entre maiúsculas e minúsculas não tinha critério nenhum além do fato de eu achar que algumas palavras ficam melhores em caixa alta e que outras são o oposto.

A forma como todas as minhas coisas estavam misturadas às coisas de Daniel me dava dor de barriga, daquele tipo que parece que vem da alma e que deixa com vontade de vomitar um monte de nervosismo e reclamação. A sensação de precisar separá-las era quase como um grito inconsciente. 

Tirei um elástico do bolso do meu jeans e, enquanto dava um jeito de amarrar o cabelo, esquadrinhei o corredor abarrotado de bagunça. Meus olhos congelaram em um Daniel de cabelos úmidos e moletom, distraído com o celular, sentado sobre uma das caixas que, infelizmente, não estava com a letra desleixada dele. 

Minha dor de barriga foi alimentada com ódio borbulhante quando li “telas”, em giz de cera verde, no espaço entre uma panturrilha e outra do garoto. 

Pisquei devagar, olhando a cena. Daniel deu uma risada para o que quer que estivesse lendo na tela do celular e, no processo, a tampa da caixa pareceu afundar.

Eu peço pra ele levantar?

Eu evito contato e espero ele sair?

— Perdeu alguma coisa aqui? — A voz de Daniel não era grosseira, apesar de a pergunta em si ser muito. Alguma coisa sobre o garoto encharcado e quase tímido havia ficado lá fora, na chuva.

— Você tá sentado nas minhas telas. — Apontei para a caixa na qual a bunda dele estava muito bem acomodada.

Daniel olhou para baixo. Depois pra mim. Depois para a caixa de novo. E aí levantou.

— Telas, tipo, de pintura? — Ele fez um movimento para tirar a tampa da caixa e eu vi minha vida passar diante dos meus olhos. Pulei na frente e fechei os dois centímetros de tampa que Daniel já tinha aberto.

Ele me encarou surpreso e eu devolvi um olhar que era uma mistura de ofendido, incrédulo e muito, muito, irritado. Assim de perto e com a luz do corredor acesa dava para ver: seus olhos eram a mistura perfeita entre o cinza e o azul.

— Por favor, não mexa nas minhas coisas — pedi e comecei a arrastar a caixa para longe dele, na direção da porta do meu quarto. Estava um pouco pesada.

Daniel, por alguma razão, ficou olhando. Foram cinco segundos bastante constrangedores, até ele acabar com o barulho solitário da caixa arrastando no piso de madeira:

— Então você é tipo um pintor?

Que pergunta estranha. Ele queria puxar assunto?

— Enquanto uns são pintores, outros são youtubers — murmurei comigo mesmo.

— Hein? — Será que ele tinha escutado?

— Eu disse que não sou pintor, só gosto de pintar de vez em quando.

Se ele tinha escutado o lance do youtuber, resolveu ignorar e continuou de onde eu parei:

— E não é a mesma coisa?

— Não.

Coloquei a caixa dentro do quarto e fui buscar outra. Não olhei para o Daniel outra vez, para ver se ele sacava que eu não queria conversar. Funcionou, porque ele não disse mais nada e escolheu uma “COISAS” para usar de assento dessa vez. O que me deixou aliviado e pronto para ignorá-lo pelo resto da arrumação, e, com sorte, pelo resto do dia.

A sorte durou dez minutos. Parei na metade do trajeto com “PAPEL & pincel” quando escutei o barulho de plástico e metal caindo no chão. Olhei para trás e vi Daniel revirando todas as caixas “COISAS” e espalhando pelo chão as benditas COISAS. 

Fiz uma careta e continuei a cuidar do meu próprio trabalho. Três caixas depois, voltando de dentro do meu quarto, me deparei com um tripé no meio das COISAS,  no meio do corredor. Fiquei parado olhando, tentando entender que droga estava acontecendo.

Daniel juntou, da bagunça do chão, o que parecia ser um microfone bluetooth e o prendeu como um grampo na camiseta. Passou alguns instantes ajeitando algo no celular, que estava seguro no tripé. E, do nada, começou a falar sozinho, olhando para a câmera frontal ao mesmo tempo em que deslizava o dedo pela tela do aparelho. Estava lendo comentários. Era uma live.

— Meu Deus, que vergonha — suspirei, arrastando outra caixa para dentro do quarto. Aquela era uma das últimas e finalmente eu poderia me trancar ali e fingir surdez até a manhã seguinte ou até eu ficar com fome o suficiente para sair. O que provavelmente seria logo.

Quando enfim terminei, ao som dos comentários e risadas de Daniel, fui buscar um copo de água no andar de baixo. Nem quando eu fazia meia hora de Just Dance eu ficava com tanta sede. Eu precisava voltar a me exercitar ou morreria de cansaço antes dos 30.

Meu pai e Amora estavam se ajudando na cozinha, e ver a cena me deixou um pouco menos estressado. Enquanto meu pai tirava pratos, xícaras e vasilhas de uma caixa, Amora os organizava nos armários e gavetas. Toda a cozinha era clarinha: as paredes, os armários e as bancadas com acabamento em mármore. Fazia parecer ainda mais ampla do que já era. Mesmo com tudo isso, a parte mais bonita era a vista. Logo depois da porta dupla de vidro que dava para os fundos da casa, havia uma piscina bem grande e azulzinha, transbordando com a água da chuva.

Meu pai me viu primeiro quando entrei no cômodo.

— Luca, já terminou?

Amora parou o que estava fazendo só para me dar um sorriso caloroso. Seus olhos azuis estavam tão brilhantes quanto os do meu pai, a aura dos dois era uma coisa só. Sorri de volta para ela.

— Eu só terminei de colocar as minhas caixas pra dentro do quarto — respondi, enquanto abria a geladeira. Ali dentro havia apenas duas garrafas d’água e um pote de manteiga lacrado. Peguei uma garrafa. — Ainda falta… Tudo.

Amora deu risada.

— O que foram aqueles barulhos lá em cima agora há pouco? — meu pai quis saber.

— O Daniel. Ele tava procurando um tripé — falei, olhando em volta. — Onde ficam os copos?

— Ainda não ficam, querido. — Amora respondeu, com um ar bem humorado, e apontou para algum lugar atrás de mim. — Estão naquela caixa.

Me virei. Havia meia dúzia de caixas sobre a mesa de jantar. Fui até lá e, depois de pegar um copo de vidro em uma delas, o levei até a pia para tirar o pó acumulado. 

— Por que o Daniel precisa de um tripé a essa hora? — Amora murmurou como se estivesse falando consigo mesma, mas me olhou, esperando que eu soubesse o motivo.

— Acho que ele tá fazendo uma live — respondi, enchendo o copo com a água da garrafinha. Tomei tudo em três goles rápidos. — A gente só tem essa água?

— Gelada, sim. Mas o filtro da torneira já está funcionando, filho. 

— Ah, ok. 

Enchi a garrafa com a água do filtro e a devolvi para a geladeira vazia.

— Amanhã nós vamos passar no mercado, mas o café da manhã de amanhã tá garantido. E hoje tem pizza.

Enquanto falava, meu pai mexia no celular. De repente, a voz de Daniel veio dos alto falantes do aparelho. 

Ah, não.

— O Daniel está mesmo fazendo uma live enquanto arruma o quarto, ele é muito criativo. — Meu pai olhava todo impressionado para a tela. — Não é, Luca?

Ah, não.

Meu pai me mostrou o celular. O título da live, no canal do Youtube de Daniel, era “ME MUDEI: ARRUME MEU QUARTO COMIGO”, seguido de emoji de casa, emoji de caixa de papelão (eu nem sabia que existia um) e emoji de coração vermelho. Surpreendentemente, havia umas seiscentas pessoas vendo o Daniel arrastar caixas.

Dei um risada amarela, que foi uma mistura estranha de um suspiro e um murmúrio. Tentei falar outra coisa para disfarçar:

— Você é inscrito no canal dele?

— Ah, sim. Ele me ensinou como fazer. 

Dei um sorriso-mais-ou-menos e larguei o copo na pia. 

— Vou subir. Me chamem quando a pizza chegar.

Enquanto eu subia as escadas e ouvia Daniel conversando com as pessoas que assistiam sua live de mudança, minha mente resolveu repetir em looping a cena em que meu pai empurrava o garoto na minha direção e dizia “esse é o seu novo irmão”. 

À noite, enfim, nos sentamos todos juntos para comer pizza e tomar Coca-cola na sala de jantar, que dividia o cômodo com a cozinha. Eu e Daniel estávamos em silêncio enquanto Amora e meu pai conversavam sobre os últimos detalhes do casamento, agendado para a próxima semana.

Enquanto eu lentamente tirava os tomates da minha fatia de pizza, questionava a capacidade daqueles dois para conversar de forma tão animada depois de um dia longo como aquele. Sem falar que Amora tinha dirigido cinco horas e meia para estar ali. Ainda assim, seus olhos brilhavam como se tivesse acabado de acordar de um sono revigorante. O amor às vezes era estranhamente assustador.

Eu mesmo me sentia podre de cansaço. E Daniel não parecia muito diferente de mim. Acho que depois de conversar tanto com seus live-espectadores, estava cansado demais para falar qualquer coisa. Ele apenas se jogou na cadeira ao meu lado e estava na mesma posição há 20 minutos, enquanto meu pai e Amora revezavam entre mastigar e falar.

— E nós precisamos deixar tudo pronto pros meninos ficarem sozinhos aqui em casa durante a nossa lua de mel, Tony – Amora disse ao meu pai, afobada e gentil.

Daniel se ajeitou na cadeira e eu engasguei com a Coca-cola, numa crise de tosse. Meu pai se esticou por cima da mesa e deu batidas nas minhas costas que mais pareciam socos. Tentei desviar enquanto reclamava:

— Pai — tosse, tosse. —  Você quer me ajudar ou me bater?

— Desculpe, filho — ele voltou a se sentar enquanto pegava meu copo de Coca-cola e o estendia em minha direção. Quando tomei um gole do refrigerante, a coceira na garganta parou.

Eu tinha me esquecido completamente de que precisaria ficar sozinho com Daniel durante duas semanas e meia, enquanto meu pai iria para Miami e eu para a escola. Eu estava mais nervoso do que ficaria se não tivesse cometido o erro de jogar o nome de Daniel no Google, horas atrás, e encontrado seu Facebook. Dois minutos dentro do feed dele foram suficientes para me convencer de que ele era um encrenqueiro.

— Não precisa preparar nada, não — Daniel falou de boca cheia, causando uma careta involuntária de “eca” no meu rosto. — Um cartão de crédito e as chaves do carro são tudo o que a gente precisa.

Se Daniel estava pedindo as chaves do carro, ele já tinha feito 16 e tinha licença provisória para dirigir. Então, ele era um ano mais velho do que eu. Amora ou mesmo meu pai já deveria ter me dito algo sobre isso, mas quando se tratava de Daniel, eu me esforçava para esquecer.

— Um cartão de crédito? – Amora olhou para o filho, com um ar preocupado. — Eu estava pensando em deixar uma mesada para cada um gastar com o lanche da escola e alguma saída com os novos amigos. Não acho muito prudente deixar um cartão com você, Daniel. — Ela olhou para o meu pai. — Tony, o que você acha?

— Acho que não tem problema, eles já são bem crescidos pra saberem que não podem sair comprando tudo. Sem falar que qualquer compra com o cartão fica no extrato, e nós vamos ficar de olho.

Assim que meu pai fez a leve ameaça, olhei para Daniel, para conferir sua reação. Ele estava sorrindo de um jeito meio diabólico e ali eu entendi que eu precisava ficar longe dele e dos seus planos durante o tempo em que Amora e meu pai estivessem fora. E depois disso também.

Apenas continuei a comer minha pizza gordurosa em silêncio, não queria me meter.

— O que você acha, Luca? – meu pai perguntou, parecendo adivinhar minha vontade de não participar daquilo.

— Tanto faz – respondi indiferente, percebendo o olhar esquisito de Daniel sobre mim; eu só esperava que ele não estivesse pensando algo como “vai ser fácil controlar esse mosca-morta”.

— Tudo bem então, mas tenham juízo, meninos – Amora disse, concluindo o assunto cartão de crédito para em seguida voltar a falar sobre o casamento com meu pai.

Desliguei-me do ambiente família-no-jantar e me concentrei em tirar as rodelas de tomate da minha terceira fatia de pizza, preocupado com o que seria da minha vida dali para frente. Eu apenas esperava com todas as minhas forças que Daniel ficasse na dele e não fosse dessas pessoas intrometidas que acham que com um pouco de convivência já podem sair falando e fazendo o que bem entendem.

— Você não gosta de tomate?

A voz masculina infelizmente não era a do meu pai.

Olhei para Daniel e depois para os tomates abandonados no meu prato.

— Não — respondi em voz baixa.

Espiei meu pai e Amora conversando, um ao lado do outro na mesa, e me certifiquei, aliviado, de que eles não notariam qualquer que fosse a coisa ao redor deles com muita facilidade. Esse tipo de coisa de gente apaixonada.

— Mas tomate é bom — Daniel disse de cenho franzido.

Reparei que no prato dele, como meus tomates, algumas azeitonas haviam sido deixadas de lado.

— Azeitona que é bom — falei, olhando para ele.

— Azeitona é ruim.

— Tomate é ruim.

— Posso ficar com os seus tomates?

— O quê? — Foi minha vez de franzir o cenho; ou ele estava brincando ou não conhecia nenhum tipo de regra social da boa noção. — Não!

— Eu deixo você ficar com as minhas azeitonas — ele disse.

— O problema não é esse — esclareci. — Você não acha estranho pegar comida do prato de alguém que você acabou de conhecer?

— Eu não. — Ele me olhou por um segundo e depois engarfou dois dos meus tomates, colocou-os na boca e voltou a me olhar com naturalidade, enquanto eu olhava sem reação para suas bochechas cheias. — Você acha?

— É meio nojento.

— Por quê? Você não cuspiu nos tomates, nem nada.

Eu não disse nada. Não tinha o que dizer de uma frase daquelas. Apenas me concentrei em terminar de comer a pizza depressa para que eu pudesse sair dali. Daniel ficou dando umas risadinhas por um tempo, o que me levou a imaginar que ele só tinha pegado meus tomates para fazer graça. Quer dizer, aquilo tinha sido estranho.

Quando terminei de comer, pedi licença e fui levar meu prato até a pia da cozinha. Queria subir, tomar um banho e dormir. Amanhã era uma quarta-feira de aula na escola nova e eu precisava descansar se quisesse parecer uma pessoa de verdade às seis da manhã.

Daniel levantou da mesa logo depois. Chegou até a pia e deixou o prato em cima do qual eu tinha acabado de largar ali, esbarrando seu braço no meu. Olhei feio para ele, que, sem tirar os olhos dos nossos pais na mesa de jantar, perguntou:

— O que você acha de uma festa? — Sua voz estava baixa, quase num sussurro. Isso não era lá muito necessário, porque Amora e meu pai estavam na bolha do amor.

— O quê? — Continuei encarando seu perfil, confuso.

— Uma festa enquanto eles não estiverem aqui. — Ele me encarou com os olhos claros brilhando, como uma criança prestes a fazer besteira.

Por um momento fiquei parado o encarando. Seu era rosto levemente bronzeado, provavelmente porque antes de vir para cá morava perto da praia. Sua pele não tinha sequer um defeito, parecia pincelada com sol cintilante.

— Ah, tá bom — falei irônico, desviando o olhar por um segundo. Eu simplesmente não podia ficar comparando a pele de um garoto a coisas cintilantes. — Você vai convidar quem? Seu amigo imaginário? Nós não conhecemos ninguém nessa cidade.

— Relaxa, em uma semana eu consigo uns cinquenta convidados. – Ele deu risada e bagunçou meus cabelos, saindo da cozinha.

Primeiro o tomate e agora meu cabelo? Por que Daniel tinha que ser tão inconveniente?

O segui escadas a cima, ajeitando os fios do cabelo que estavam fora do lugar. Eu não o cortava desde o começo do ano passado, então ele teve tempo para crescer até cobrir o meu pescoço (e para ficar bagunçado com facilidade também). 

Antes que Daniel entrasse em seu quarto, o chamei pelo nome.

— O que foi? — ele já estava com a mão na maçaneta.

— Eu não acho que é uma boa ideia.

— O que não é uma boa ideia?

— A festa. Não concordo com isso.

Ele sorriu, e, por um instante, foi como se eu estivesse encarando um vilão (de uma série americana em que todos os antagonistas são bonitos, mas, ainda assim, um vilão).

— Você não precisa concordar. 

Então entrou no quarto e fechou a porta, me deixando sozinho no corredor.

Eu estava mesmo ferrado.


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Notas finais do capítulo

Ufa. Esse é um baita momento especial pra mim. Se você quiser comentar vai ser legal.
Eu também tô lá no Twitter: @wtfapus e no Instagram @enredocriativo, com uma escola de escrita criativa que é um projeto (iniciado pelo meu melhor amigo Higgor) cheio de amor e posts lindões para quem ama escrever e quer pensar fora da caixa.

E aí, tomate ou azeitona?



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