Aqui no Mar escrita por Vatrushka


Capítulo 5
Alana




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/795286/chapter/5

 

Percorria os corredores, apressada.

Meus olhos percorriam atentamente cada fresta, canto e segredo que perpassava meu caminho. Onde demônios estão essas duas? Já é o terceiro dia de festejo e não as vejo em lugar nenhum.

Para meu profundo alívio, encontrei Aquata e Arista cochichando em um canto. Me aproximei a passos largos, apressada. “Por onde estiveram? Estava preocupada!”

Elas trocaram risinhos e olhares cúmplices. Revirei os olhos, disfarçando a minha curiosidade. O que foi que aprontaram?

Terão o resto da vida para me contar, concluí. “É melhor que voltem para o salão agora. Papai já notou que não estão lá.”

E é bom que tenham uma boa desculpa, pensei comigo mesma, enquanto nós três voltávamos ao baile. Papai não tem muita paciência com aventuras.

Pelo menos estavam se divertindo… Attina e eu estávamos uma pilha de nervos, do início ao fim daquele pandemônio caótico que chamavam de festa. Que péssima ideia de nos voluntariarmos para ajudar o papai – os nós de minhas costas pareciam estar quase petrificados.

Se bem que, mesmo se não nos voluntariássemos, acabaríamos envolvidas na organização de todo o jeito. Embora fique lisonjeada que papai confie tanto em nós, sinto que ás vezes somos sobrecarregadas. As duas mais velhas, as mais responsáveis.

Papai brincava, falando que a coisa tinha “desandado” desde o nascimento de Adella – pois todas as outras filhas que nasceram após ela acabaram ficando um tanto quanto… Inconsequentes.

Para não dizer doidas.

Chegando ao salão, fiz questão de dispersar minhas irmãs na multidão na forma mais natural possível. Assim teriam menos problemas.

Suspirei. Quando que isso vai acabar? Eu quero dormir…

Conferi minha imagem no espelho colado à parede, só mais uma vez. Tinha pânico que todo o meu inegável cansaço estivesse transparecendo em minha aparência – seja em postura ou como olheiras.

Para a minha alegria, não. Sabia disfarçar muito bem, com atuação e maquiagem.

Modéstia a parte, eu estava muito bonita. Como sempre.

“Não haviam me avisado que Narciso compareceria.” Uma voz debochada me tirou a atenção de meu reflexo.

Me voltei à mulher que puxara assunto, com um sorriso cortês. “Oh, não, não, não.” Brinquei de volta. “Ele não é tão bonito quanto eu.”

A mulher bufou, sorrindo. A estudei por alguns segundos, tentando reconhecê-la. Tinha longos e lisos cabelos ruivo-escuros. Sua maquiagem era escura e de tons terrosos, assim como suas roupas.

“Não se lembra de meu nome, não é mesmo?” Ela pareceu ler os meus pensamentos, despreocupada.

Normalmente morreria de vergonha em admitir, mas àquela altura da festa, nem me importava mais. “Mil perdões.” Dei de ombros, derrotada.

“Está tudo bem. Eu imagino, deve estar sendo complicado. Você está só subindo e descendo há dias, cuidando de tudo e de todos o tempo todo, para que esteja tudo perfeito. Tão atribulada, dificilmente lembraria de uma deusa menor. Ainda mais com tantas celebridades presentes.” Ela deu de ombros. “Sou Nêmesis.”

“Oh. Sim.” Recordei-me. “Confesso que não a imaginava assim.”

Ela ergueu a sobrancelha. “Já me imaginou alguma vez?”

Eu sorri. “Todos nós temos estereótipos em nossas cabeças, creio eu. Só não achava que seria tão… Tranquila.”

Seu tom de voz era baixo, seu semblante beirava ao tédio e sua postura parecia confortável com o ambiente.

A única coisa que parecia destoar – talvez fosse coisa de minha cabeça – eram seus olhos. Escuros, profundos, densos e inabaláveis. Pareciam carregar toda a sede por vingança do mundo.

E estavam colados aos meus. Pareciam escanear a minha alma. Abriu um sorriso, erguendo a sua taça. “Que bom que te surpreendi.”

Ela tomou um gole de sua bebida antes de continuar. “Mas confesso que também me surpreendi com você.”

“É mesmo?” Cruzei os braços, genuinamente curiosa. “E como?”

“Não enxergo Poseidon com bons olhos.” Disparou, sem cerimônias. Nêmesis parecia ter montado o dossiê de cada um dos deuses presentes ali – meu avô não parecia ter passado em seu crivo de aprovação. “E estava predisposta e pensar mal de toda a sua descendência. Mas vejo que me enganei. Parece ser uma companhia muito agradável.”

Tentei ignorar o formigamento de minha barriga. Já sabia o que aquela reação significava, e a oprimia sempre que podia.

Fiz o que normalmente não faria: busquei direcionar o assunto para outro assunto que não eu. “E o que fez meu avô a você?”

Ela ergueu a sobrancelha. Algo em sua expressão remetia à nojo. “Não é necessário me atacar diretamente para me ofender. Qualquer injustiça cometida a qualquer um automaticamente me afeta.”

Assenti. “Se refere ao fato de meu avô ter traído a minha vó?”

Ela riu. “Espero que me perdoe a sinceridade, mas as questões matrimoniais de Poseidon pouquíssimo me importam.”

Franzi o cenho. O que mais poderia ser, então?

Ela olhou ao redor, verificando se estávamos sendo observadas. “Você me acompanharia até a varanda?”

Aceitei e convite e para lá nos encaminhamos. Aproveitamos a brisa refrescante, em aparente calmaria. Levaram alguns minutos de silêncio – ela admirando a vista, e eu, afastando pensamentos indevidos – para que ela voltasse a falar.

“É um pouco ultrajante para mim que ninguém nunca se lembre, ou o responsabilize pelo o que fez.” Suspirou, murchando os ombros. Vendo que ainda sim eu não compreendia ao que se referia, jogou uma dica: “Medusa…?”

“Oh.” Me surpreendi. Não estava nem perto de meus palpites. “A mulher estuprada que virou um monstro, e depois foi decapitada, e que a cabeça se juntou ao escudo de Atena?”

“Me surpreende que fale disto com tanta naturalidade.” Nêmesis confessou.

“Perdoe-me a insensibilidade.” Tentei me retratar. “Nunca parei para pensar muito nela.”

Automaticamente me senti mal. Tentava não me abalar com as maldades do mundo. Não é como se eu fosse capaz de detê-las.

Nêmesis franziu o cenho. “Depois deste horrível episódio, eu fui até o Submundo. Exigi que Hades retirasse Medusa do Tártaro e a permitisse reencarnar em uma existência pacífica, muito, muito longe do litoral. Hades não exitou em fazê-lo.”

Sorri, bem mais leve por saber. “Que bom. Realmente fico feliz.”

“A questão…” Retomou Nêmesis. “É que Poseidon continua impune por suas atrocidades. Ele e tantos outros. E não posso fazer muito a respeito, não com Zeus limitando meus poderes… Aliás, este é outro que tem uma longa lista a se checar comigo…”

“Imagino.” Confessei. Nunca havia imaginado no lado de Nêmesis, tendo que assistir de perto os deuses contradizerem todos os dias seus conceitos mais básicos de justiça. Deve ser insuportável. Ser sufocada pelos próprios poderes, por não poder usá-los.

Me apoiei na sacada. “É horrível, não é? Ter que se submeter sempre a algo que discorda.”

“Nem me fale.” Suspirou. “E a ideia de simplesmente não ter escolha se não acatar… Angustiante. E ainda ter que fingir que festejo, quando queria… Ah, nem vou me detalhar muito nisso, se não, não pararei tão cedo.”

Eu ri. “Eu prefiro não pensar muito nessas coisas, se não elas me consomem.”

Nêmesis deu de ombros. “Talvez eu devesse tentar, também.”

Ela olhou para mim, com um leve sorriso. Senti um ímpeto de beijá-la, mas não poderia.

Pelo menos não ali.

Será que ela estaria tendo a mesma ideia que eu? Ou eu estava imaginando coisas?

“Não quer ir até um lugar mais calmo?” Ela me sugeriu, quase me fazendo dar um pulo. Senti a adrenalina percorrendo as minhas veias.

“Eu não deveria…” Murmurei. Não era correto. “Se papai descobrir...”

“Até quando vamos deixar homens nos impedirem de fazer o que queremos?” Sua pergunta acertou-me como uma flecha.

Contra aquilo, eu não tinha argumentos.

Até porque concordava absolutamente.

“É claro, não vou te obrigar a nada que não quiser.” Admitiu Nêmesis, aproximando-se um pouco de mim. “Mas poderia te oferecer uma massagem… Consigo sentir sua tensão daqui.”

Meu coração se acelerou ainda mais do que eu pensava que era possível. Estava morta de medo... Mas também de desejo.

Attina que me perdoe por deixá-la sozinha por alguns minutos… Concluí.

Acabaram sendo algumas horas.

Me atrevo a dizer que talvez as melhores de minha vida.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Aqui no Mar" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.