Nefasto escrita por Ana Heifer


Capítulo 3
A Flauta e a Casa




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Fiquei parada no mesmo lugar durante algum tempo, apenas observando. Sem saber o que fazer, procurei algum lugar para me sentar. Andei até um dos troncos ao redor da fogueira, próximo à uma árvore grande, e comecei a prestar atenção na música. Olhei diretamente para a fogueira e meus olhos pareceram queimar.

A melodia tocada por Peter foi entrando em meus ouvidos e tentava me hipnotizar. Olhei para ele e vi que me encarava enquanto tocava. Não desviei os olhos dos dele. As pontas reluzentes das chamas da fogueira ficavam bem no meio de nossa linha de visão, dando um efeito estranho nas linhas do rosto de Pan. Não consegui controlar meus pensamentos, que começaram a me sufocar de um modo anormal, dançando soltos em minha cabeça enquanto seguiam a música. Minha visão embaçou, mas eu ainda podia ver os olhos que me fitavam fixamente, enquanto um sorriso de canto surgia suave nos lábios do flautista. A música era um tanto excêntrica, repetitiva, melancólica e grave. Minha mente começou a devanear em lembranças.

Houve um momento em que meu cérebro abafou todo o barulho, exceto o som da flauta. [ouça | baixe]

 

Não era uma coisa explicável, eu só sentia. Afetava meu sono todas as noites, por menor que fosse o pesadelo. Pessoas me perseguindo, pessoas me rejeitando, pessoas me esquecendo. Sempre algo desse tipo.

Eram tantos pensamentos e sensações juntos que eu me perdia dentro da minha própria cabeça. Tinha algo muito errado ali, mas não dava pra saber o que era. Na verdade, parecia não ser nada muito grande, mas sim uma mistura de inúmeras coisas pequenas, nenhuma "justa" o suficiente pra explicar a alguém o que eu andava pensado pra estar afetada assim.

Pra uma pessoa que convivia com tantas outras, se sentir sozinha era assustador, e isso acontecia com frequência pra mim. Eu sabia que não era normal se sentir estranha e deslocada mesmo com todos dizendo que eu era amada, que fazia parte do todo. Por que eu sempre precisava me provar, mostrar a mim mesma que estava mesmo tudo bem, que eu pertencia àquele lugar?

Não tinha como saber as respostas. Ter um péssimo relacionamento com meus pais podia não ser culpa minha. Estresse coletivo? A convivência de pessoas tão diferentes pode ser difícil. Ter medo de perder meus amigos, ou deles me rejeitarem, não era culpa minha. É natural, não? Ter medo que pessoas que você ama não sintam o mesmo por você, é normal...

Ainda assim, por que eu sentia o peso de tudo aquilo? Nada parecia estar dando errado. Será que eu era egoísta a ponto de colocar nas pessoas expectativas além do aceitável? Quem sempre acabava se afastando ou se pondo num plano diferente dos demais era eu. Não era culpa de ninguém.

Nesse caso, a culpa de querer ir embora pra longe de todos só podia ser minha.

 

Cada nota que soava na flauta causava em mim um sentimento etéreo, como se eu estivesse sonhando. Eu não me movia nem falava, e minha cabeça pendia para o lado. Quando me dei conta, estava respirando pesadamente, me sentindo perdida e desconfortável. Minhas pálpebras quase se fechando indicavam que meu controle sobre o corpo estava quase se perdendo, e uma lágrima se formou no canto do meu olho sem nenhuma razão aparente - exceto todos os pensamentos confusos dos últimos minutos. No exato momento em que ela escorreu, a flauta parou.

Pisquei duas vezes e endireitei a cabeça, recobrando a consciência. Passei a mão no meu peito sem entender porquê meu coração parecia tão apertado. Nada havia acontecido, certo? Vi Pan andando em minha direção e tentei afastar as formas estranhas que se construíam em minha mente. Ele me olhou de cima por um segundo, e em seguida se sentou ao meu lado.

— Você está bem?

Virei-me para ver seu rosto, que carregava uma expressão preocupada. Pareceu-me estranho, no entanto preferi acreditar que ele só estava sendo gentil. Limpei a garganta e tentei não dizer muita coisa.

— Talvez a música tenha mexido um pouco comigo.

O menino abaixou a cabeça, parecendo pensar nessa afirmação.

— É, ela é poderosa. Pode trazer sentimentos estranhos. Mas você vai ficar bem.

Ele apertou meu ombro num gesto de cumplicidade e depois se colocou de pé. Ergui meu rosto para encará-lo e em resposta, Pan deu um sorriso reconfortante.

— Se quiser, dance. Acho que os meninos ainda não se acostumaram com a novidade.

— E se... eu não quiser ficar?

Peter inclinou o rosto perante minha afirmação. Uma risada simpática saiu de sua boca e ele se agachou à minha frente, apoiando se em um joelho. Assentou seu braço esquerdo na perna dobrada, e com sua mão direita tocou meu queixo, mesmo sem qualquer malícia naquele ato.

— Ana, você já é uma de nós.

Com um último sorriso, ele se afastou. Voltou a tocar, com os olhos ainda cravados em mim.

{...}

Não sei dizer se foram minutos ou horas de música, danças selvagens, tambores, o sopro da flauta. O tempo passou rápido e aos poucos os meninos perdidos foram ficando cansados. Um a um, paravam de dançar e se recostavam nos troncos, em árvores ou deitavam no chão, com os capuzes ou os braços cobrindo os olhos. No final, só restou a mim, Pan, Félix e mais dois meninos que tocavam uma clave e um xilofone.

O brilho da fogueira ficava cada vez menos intenso. O som da flauta foi sumindo gradativamente, e num dado momento Peter Pan apenas passava o instrumento pelos lábios, sem emitir nenhum som. Ficou assim alguns minutos, de olhos fechados, e finalmente parou. Com o rosto sério, abriu os olhos e me encarou.

— Acho que já está na hora de dormir.

— Não estou com sono.

— Sei que não está. Nem se levantou pra dançar, é impossível que esteja com sono. — ele riu, se levantou e veio caminhando até mim. — Infelizmente, nós todos temos que ir dormir.

Peter estendeu a mão em minha direção, esperando que eu a segurasse.

— Esta noite você vai dormir na casa-da-caverna. Agradeça, não é todo dia que alguém dorme lá. Privilégio de nossa nova menina perdida.

Dei um sorriso irônica para o chão e virei o rosto para olhá-lo nos olhos, balançando a cabeça negativamente. Ele assumiu uma expressão de deboche.

— Caso prefira dormir aqui com os meninos eu não vejo problema. Lembre de que a floresta é fria, e a fogueira vai se apagar completamente em pouco tempo. Os garotos têm capas quentes e pesadas. Olhando pra você, diria que congelaria. Mas a escolha é totalmente sua.

Erguendo as mãos num sinal de rendição, deu um passo para trás e cruzou os braços, se escorando numa árvore, esperando minha decisão. Passei a mão no cabelo, impaciente, e me levantei.

— Ok, eu vou com você. Tem roupas nessa casa? Uma capa como a deles? Se vou ter que assumir o papel da "menina perdida", prefiro fazer direito. Olha pra mim, ainda estou de pijama.

Com um riso que tomou toda a clareira, ele pôs as mãos na cintura.

— Tudo bem, não é um acordo impossível. Vamos logo com isso.

Pan se virou e começou a entrar na floresta, sem aviso. Eu o segui com passos apressados. Parecia que o garoto desapareceria nas árvores a qualquer momento, mas ele não me deixou para trás.

{...}

Havia árvores, grandes arbustos e plantas em volta, nada mais além disso. Era um lugar bem escondido. Paramos frente à uma caverna com uma abertura mais ou menos do meu tamanho. Dentro dela, havia uma escada de mão de madeira, e uma luz amarelada vinha do alto. Peter me olhou.

— Você primeiro.

Virei-me para ele e suspirei.

— Como quiser.

Avancei para a entrada da caverna. Subir a escada sem muito esforço, rapidamente alcancei o topo e esperei por Pan na entrada do lugar.

Assim que ele terminou de subir, me atentei ao pequeno cômodo. Uma mesinha branca estava à esquerda, com uma toalha meio encardida e algumas tigelas. Em baixo dela, uma prateleira com um livro grosso e velho. Uma cadeira de madeira encontrava-se ao lado da mesa e, logo atrás dela, um biombo rústico. Bem no centro do quarto havia uma cama grande com uma grossa colcha branca, um tipo de dossel desajeitado ao lado e uma estrutura de ferro que a cercava. Logo atrás uma pequena janela deixava entrar uma luz azulada para contrastar com o brilho das velas que iluminavam tudo. Uma cortina branca estava presa ao teto, amarrada, e um baú de couro estava largado no chão. À minha direita, uma elevação no solo era o único espaço livre de objetos, e tinha apenas um velho tapete estendido.

Era quente ali dentro, e tinha um cheiro forte de terra e frutas. Peter percebeu que eu estava analisando tudo.

— É meio antigo. — sorriu.

— É aconchegante.

— Que bom. Sua nova casa é aqui.

Pan abriu os braços, abrangendo toda a casa-da-caverna. Não respondi o comentário.

Por mais que houvesse negado na clareira, eu estava exausta, com frio e tudo que eu queria era me deitar para descansar. Meus braços se arrepiaram com o vento gelado que entrou pela janela. Caminhei até a cama enquanto o menino observava meus movimentos com um sorriso fechado e calmo, sem o habitual semblante cínico. Sentei-me por cima dos lençóis.

— Só vejo uma cama.

— E esperava outra?

— Foi você quem me mandou vir até aqui!

— E então?

Ele ergueu uma sobrancelha e sorriu.

— Tenho algumas roupas guardadas no baú, caso quiser. Pode se trocar atrás do biombo, eu não vou olhar.

Pisquei os olhos um tanto incrédula e fui até baú que ele havia indicado. Subi a tampa pesada e olhei lá dentro. Várias peças de couro e outras feitas de algodão se encontravam ali, em cores que variavam entre verde, marrom e preto. Puxei uma calça parecida com a que ele usava e uma camisa de um verde muito escuro, com mangas médias. Ficariam grandes em mim, mas eu conseguiria usar.

Fechei a tampa do baú segurando as roupas na mão. Quando olhei para a cama, Pan estava sentado na beirada já sem sua camiseta, e não pareceu dar a mínima para minha presença, distraído demais tirando os braceletes de couro dos braços. Desviei o olhar e andei um pouco mais depressa para trás do biombo de madeira, na tentativa de evitar deixar o ambiente desconfortável. Mesmo sem levantar a cabeça, o garoto soltou uma risada baixa.

Quando terminei de me trocar, caminhei até a cama e olhei para Pan, que estava com os pés ainda no chão mas as costas apoiadas no travesseiro. Ele parecia esperar.

— O que foi? — perguntou, mas parecia já saber o que me incomodava pelo sorriso no rosto.

— Você não espera que eu deite aí com você.

Ele ficou olhando para meu rosto e abriu ainda mais o sorriso.

— Eu te ofereço uma cama para passar a noite e você recusa. Que falta de educação!

— Que ótima sua oferta. Com você aí?

— Não é como se eu fosse te abraçar à noite, certo?

— Não me convenceu.

Suas sobrancelhas ficaram um tanto franzidas. Pan deu de ombros.

— Como quiser.

Ele se levantou, passou por trás de mim, pegou uma capa dentro do baú e sentou-se na cadeira. Deu um último sorriso para mim e as velas do pequeno cômodo subitamente se apagaram.

— Boa noite, Ana. — pude ouvi-lo dizer.

Inclinei minha cabeça para o lado e murmurei um "boa noite" confuso. Andei até a cama, tentando não tropeçar no escuro, e deitei-me. Depois de algum tempo, tendo acostumado minha visão ao breu, observei Pan, que já dormia. Fechei os olhos.

Não senti o tempo passar (e talvez não passasse mesmo) enquanto eu me perdia tentando entender como tratei esse dia de forma tão normal, sendo que nada daquilo parecia sequer verdadeiro. Possivelmente algumas horas correram antes que eu adormecesse.

{...}

— Có, có!

Mas que...?

De uma só vez, sentei-me na cama. O grito de alguém imitando um galo me despertou abruptamente. A lembrança da realidade que eu vivia agora veio em cheio de uma só vez. A ilha, a fogueira, a casa. E claramente a voz que gritou era a de Pan, embora ele não estivesse ali no quarto.

Uma luz branca começou a incomodar meus olhos, e precisei abri-los. Ao sair da cama, quase caí de joelhos por tropeçar num par de botas de cadarço que foi deixado ali ao lado. Tinham o tamanho dos meus pés. Um bilhete dentro de uma delas dizia "calce e ache o caminho para o acampamento". Olhei para a cadeira onde Peter havia dormido, e ali estava uma calça preta de couro, uma camiseta verde escura costurada com retalhos e uma pesada capa, todos claramente feitos à mão, mas com uma precisão quase impecável.

Vesti-me e achei uma tigela com água na mesinha para lavar meu rosto. Penteei o cabelo com as mãos sem dar muita diferença, afinal batiam na altura do ombro.

Desci as escadas da casa-da-caverna e saindo pela abertura da grande pedra, vi que à minha frente parecia haver uma trilha. Era a única direção que eu tinha para seguir, então comecei a andar.

{...}

Por pura sorte - ou, quem sabe, magia - consegui chegar ao acampamento depois de sair da trilha três vezes e lutar para encontrá-la novamente.

Ao entrar na clareira, todos os meninos me olharam ao mesmo tempo. Peter Pan estava no canto conversando com Félix, de costas para mim. Quando me viu, Félix sinalizou minha chegada para o amigo, apontando com a cabeça. Pan se virou, sorriu e olhou em volta, para os garotos sentados no chão.

Reparei que todos tinham espadas, bestas de madeira, arcos e flechas em mãos. Retornei meu olhar para Pan, que me encarou com sua sobrancelha esquerda significativamente levantada e um sorriso satisfeito em seu semblante. Olhava para mim como se me desafiasse e caminhou até o meio da clareira, sem tirar os olhos dos meus.

— Meninos, vamos brincar!

 


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