Nefasto escrita por Ana Heifer


Capítulo 4
Brincadeiras




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Pan não se moveu. Mudei a direção do meu olhar para suas mãos. Ele segurava uma maçã muito vermelha e brilhante. Continuou me encarando, enquanto seus olhos brilhavam, ansiosos. Rapidamente os meninos aceitaram o convite do garoto - que pareceu mais uma ordem - e se levantaram apressados. Com as armas em punho, formaram um grande círculo delineando a clareira. Fiquei bem no meio da roda, sem entender, paralisada.

Ficou claro que eu não deveria me juntar ao circulo deles quando mexi minha perna e no mesmo instante Peter subiu a mão para me fazer parar, então esperei que dissesse alguma coisa. Não falou uma palavra sequer. Um silêncio quase mortal pesava sobre o acampamento, todos olhando para seu líder enquanto ele fitava meus olhos castanhos. Alguns segundos depois, Peter Pan começou a andar lentamente em minha direção.

Quando chegou perto, pegou minha mão e gentilmente me entregou a maçã, dando um sorriso frio a centímetros do meu rosto. Logo em seguida, deu alguns passos para trás.

— Félix, traga uma flecha e a besta! — ele gritou para o outro lado.

Félix apareceu do fundo da clareira e entregou nas mãos de Pan o que lhe foi pedido. A arma era feita de uma madeira escura e gasta. O garoto a ergueu na altura dos olhos para examiná-la.

Então, se virou para mim novamente.

— É um jogo simples. Eu chamo de tiro ao alvo.

— Muito original.

Diante desse comentário, Pan deu uma risada.

— Espero que saiba atirar. — ele sorria enquanto falava, se divertindo com tudo aquilo. — A maçã é seu alvo, a besta é sua arma. Tudo o que você precisa fazer é acertar — ele olhou em volta. — sem acertar a pessoa que estará com a maçã na cabeça.

— Vai me fazer acertar uma flecha em alguém?! — perguntei, incrédula.

— Algo assim. Não se preocupe, você pode escolher em quem quer atirar! — um riso sarcástico passou por seu rosto.

Olhei para ele, incrédula.

— Eu nunca atirei antes.

— Ora, há uma primeira vez para tudo!

— Você não faria isso com os meninos.

Os meninos riram. Pareciam não se importar com uma garota nova atirando na cabeça de um deles. Peter sorriu orgulhoso, olhando em volta, e deu de ombros para mim.

— Todos querem brincar.

Pan se aproximou de mim e estendeu a besta em minha direção. Segurei a arma sem entender onde ele queria chegar com tudo isso.

— Quero te dar mais uma motivação... — Peter se aproximou do meu rosto e falou baixo, próximo ao meu ouvido. — A ponta dessa flecha foi mergulhada em Sonho Sombrio.

— E o que isso quer dizer?

— É um veneno extraído de uma planta que existe apenas aqui na Terra do Nunca. Um pequeno corte com essa flecha e... — e com um último sorriso, se afastou e acrescentou em voz alta. — Bom, seja gentil.

Passei alguns segundos olhando em volta. Todos me analisavam fixamente e eu não sabia o que fazer, ou como escapar daquela situação. Eu precisaria escolher alguém.

Bom, não tinha muita alternativa.

— Peter Pan.

— O quê?

— Você. Escolho você.

Os meninos perdidos ficaram quietos, apenas esperando. Por segundos ele apenas me avaliou de cima a baixo, para então rir alto e estender a mão para que eu entregasse a maçã a ele.

— É, isso vai ser bom... — acrescentou, erguendo uma sobrancelha.

Calmamente se afastou alguns metros de mim, assumiu uma postura impecavelmente reta em frente a uma árvore e esperou que eu me ajeitasse. Suspirei, endireitei os ombros, subi a besta à altura da minha visão e ajeitei minha mão direita no gatilho. Tive que jogar a cabeça para trás, pois meu cabelo tinha ido parar na frente dos olhos. Eu não fazia ideia de como se usava aquela arma, o que me deixou mais tensa do que eu já estava.

Nenhum dos meninos reparou no medo que eu sentia. Era insano, pois eles olhavam a cena com ares ansiosos, com expectativa. Desejavam ver como aquilo iria acabar. Parecia que a morte era apenas um jogo para todos eles. Qualquer arranhão com aquela flecha envenenada o mataria, e Pan não estava nem sequer relutante. Sua cabeça erguida equilibrava a maçã perfeitamente. Seus braços estavam cruzadas na frente do corpo. Ele me media com olhos ferozes e atentos, mas sua expressão era completamente tranquila. Esperava meu tiro tanto quanto os outros.

— Atire logo, Ana. — disse, baixo.

Minhas mãos tremeram e eu segurei a arma com mais força. Respirei fundo sem tirar os olhos de Pan nem por um instante. Tentei posicionar a flecha na direção da maçã.

— Vamos, o que está esperando? — Peter me desafiou, fazendo-me tremer novamente.

Os nós dos meus dedos já estavam brancos por causa da força com que eu segurava a arma. Não tinha como evitar, eu teria que atirar mais cedo ou mais tarde. Meu corpo enrijeceu.

— Está com medo? — o garoto provocou, falando mais alto, sorrindo e erguendo uma sobrancelha.

Olhei no fundo de seus olhos. Na ponta da flecha, o veneno preto brilhava. Concentrei-me. Alinhei a flecha com a maçã mais uma vez. Meus pulsos doíam, mas continuei firme. Puxei o ar mais uma vez, e Pan amenizou sua expressão irônica. O tempo pareceu correr em câmera lenta quando apertei o gatilho.

O tranco da besta puxou meu braço para trás e soltei a arma involuntariamente. Pan se mexeu tão rápido que a maçã caiu no chão. Quando vi, ele já estava segurando a flecha que, acidentalmente, havia sido disparada diretamente contra seu peito.

Ele a tinha segurado no ar, pouco antes de atingi-lo. Quando me olhou, carregava uma mistura de surpresa e satisfação em seu rosto. Os meninos perdidos gritavam a plenos pulmões e pulavam felizes, não parecendo se importar com minha falha quase trágica. Eu não acreditava no que acabara de acontecer.

Vendo minha cara de espanto diante da situação, Pan começou a rir.

— Não achou divertido, Ana?!

Chutando a maçã para o lado, Peter caminhou até mim. Seus olhos me viam de cima, penetrantes e ameaçadores. Então se virou subitamente para o círculo à nossa volta.

— Meninos, tragam uma espada. Temos uma menina perdida!

Os meninos gritaram em festa. Um garoto baixo, de cabelo preto e pele escura, com olhos castanhos e inocentes, se aproximou. Disse que seu nome era Isaac, que estava contente com minha chegada e que me achava muito bonita. Não aparentava ter mais que 11 anos. Ele me entregou uma espada (cujo cabo era feito de madeira e a lâmina, de ferro) juntamente a uma bainha de couro gasta. Passei a mão em seu cabelo para agradecer e ele retribuiu com uma reverência.

Um a um os jovens começaram a se dispersar. Alguns lutavam entre si, outros foram ajeitar e afiar suas armas e uma terceira parte comia algumas frutas diferentes. Pan, que continuou ao meu lado, com Felix logo atrás, pôs a mão em meu ombro, me olhando com atenção.

— Você é uma de nós agora, Ana. É igual a nós. — ele pronunciava cada palavra num tom baixo, enquanto sorria sinceramente. Estava claramente feliz.

— Eu podia ter te matado. — olhei com remorso para ele ao pensar no que poderia ter acontecido. Ele apenas riu.

— Ora, não se preocupe com o que não pode controlar. Esse é o jogo!

{...}

Logo após esse estranho episódio, Pan me pediu para ir com ele à floresta. Com minha nova bainha presa ao quadril e a espada em seu devido lugar, o segui. Ele me levou para um lugar afastado do acampamento. Ficava bem na ponta da floresta, um grande abismo estava à nossa frente, e não havia saída a não ser recuar para as árvores. Pan andou até a beira do precipício e voltou-se para mim, que ainda estava parada na orla da floresta. Ergueu uma das mãos ao lado do corpo e uma grande espada, com a lâmina fina e brilhante, se materializou em sua palma. Ele me olhou, me desafiando.

— Vou te dar mais uma chance de acabar comigo e veremos como se sai.

O menino endireitou o tronco, dobrou levemente os joelhos, jogou a mão esquerda para trás e, com a direita, apontou perigosamente a espada em minha direção. O medo e o espanto me fizeram recuar mais alguns centímetros dentro da mata. Peter Pan gargalhou.

— Mas que coragem! Uma oponente ameaçadora.

O garoto parecia saber que essas palavras me incomodariam.

— Não quero acabar com você, não vou te machucar. Ande.

— Nunca lutei.

— Vamos logo! Confie em mim!

Palavras estranhas de se dizer enquanto se empunha uma espada contra mim, mas caminhei com passos pesados em sua direção e puxei minha espada da bainha, tomando cuidado para não cortar meu próprio rosto com o movimento desajeitado. A lâmina reluziu.

— Acho melhor você vir primeiro. Não quero te matar. — ele disse, rindo.

— Mas não sei o que fazer.

— Você é melhor que isso. Sinta!

Aquela palavra foi ao mesmo tempo arrepiante e encorajadora. Meus pensamentos me diziam que eu fracassaria, que em segundos estaria caída no chão, com algum grave ferimento. Contudo, eu sabia que Pan não era uma ameaça - ou pelo menos contava com isso - e eu seria capaz de lutar.

Tomei ar e desferi um golpe contra Pan, que teria acertado seu braço se ele não houvesse esquivado com tanta destreza. Ele me analisou, mas ficou parado. Não atacou. Apenas esperava meu próximo movimento.

Investi contra ele uma segunda vez, e ele se defendeu com a espada. Trocou o pé de apoio e aguardou o terceiro ataque, que eu direcionei na barriga. Mais uma vez, defendeu. Virou a espada habilidosamente nas mãos e lançou sua lâmina contra mim, e por puro instinto levantei o braço, evitando o golpe. Tentei atingir sua mão, logo depois sua cabeça, seu ombro, sua coxa e seu pescoço, mas o menino defendeu todas as minhas investidas. Eu manuseava a espada com uma agilidade que eu não sabia que possuía.

— Eu disse. — Peter deu um sorriso feroz.

Nós dois girávamos num eixo invisível, tentando nos atingir, mas a velocidade com que manuseávamos as espadas era quase idêntica, e ambos conseguiam defender-se. Cada vez que Pan desferia um golpe, eu podia enxergá-lo antes mesmo de acontecer, e a espada se movia praticamente sozinha. As armas pareciam dançar. A batalha seguia um padrão, o som agudo que as lâminas faziam quando se chocavam já formava um ritmo. Nenhum dos dois se cansava, nossos corpos giravam cada vez mais rápido, os ataques estavam mais violentos e minha cabeça rodava, não entendendo como eu conseguia me defender sem quase ver a espada de Pan. Era puro instinto.

Finalmente, Pan vacilou e olhou para meu braço na tentativa de desferir um golpe que me fizesse soltar a espada, mas eu consegui barrá-lo e, com o mesmo objetivo que ele, mirei sua mão. Entretanto, ao dar o golpe, meu pé escorregou, e a espada passou direto em seu rosto. Assustada, fiquei imóvel.

O corte foi pequeno e superficial. Dele escorria uma linha fina de sangue. O menino parou de se mexer. Olhou em meus olhos, levou a mão até o ferimento e o tocou com os dedos indicador e médio e depois os olhou. Vendo o sangue, ajeitou-se e ficou reto, saindo da posição de batalha. Encarou-me novamente.

E sorriu.

— Vejam só quem conseguiu! Estou impressionado.

A espada em sua mão desapareceu magicamente. Ele ergueu uma das sobrancelhas.

— Você me surpreendeu.

Ele se aproximou de mim, segurou meu queixo com uma de suas mãos e moveu levemente meu rosto, como se procurasse algum corte ou arranhão nele. Depois ergueu-o, para que meus olhos ficassem na linha dos seus.

— E agora você precisa conhecer a ilha.

Peter pegou minha mão e a colocou na barra de sua camiseta, me pedindo pra que segurasse.

— Claramente vou cair se segurar só aí.

Foi minha vez de levantar uma sobrancelha. Ele riu da minha atitude e, em seguida, envolveu minha mão com firmeza e pulou da ponta do penhasco. Segurei um grito, e ele nos puxou para cima numa velocidade impressionante.

Antes de perceber, eu já estava no céu.

 


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